A Carta aos Romanos: Capítulo XIV
Perguntaram-me certa vez numa reunião se eu comeria de tudo (a ênfase estava em “tudo”). Respondi muito à vontade: “O que contamina a pessoa não é o que entra pela boca, mas o que sai da boca; isto, sim, contamina a pessoa” (Mt 15.11).
Uma das pessoas presentes se indignou de tal modo com a minha resposta que, por um bom tempo, deixou de frequentar meus devocionais e sermões. Ao que parece, minha liberdade representou um grande problema íntimo para ela.
Acolham quem é fraco (v. 1-12)
A graça jamais deverá degenerar em passe livre para uma liberdade equivocada. Por isso Paulo alerta: “Acolham quem é fraco na fé, não, porém, para discutir opiniões” (Rm 14.1). Em vez disso, a diretriz do nosso comportamento deve ser o amor: “Portanto, o cumprimento da lei é o amor” (Rm 13.10b).
O amor deve determinar o meu comportamento. Ele é o padrão daquilo que faço. Trata-se do amor a respeito do qual lemos que “é paciente e bondoso. O amor não arde em ciúmes, não se envaidece, não é orgulhoso, não se conduz de forma inconveniente, não busca os seus interesses, não se irrita, não se ressente do mal. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. O amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba” (1Co 13.4-8a).
Pessoas com comportamentos diferentes
A igreja de Jesus se compõe de pessoas com caráteres, visões, opiniões, tendências e impressões diferentes, sem que haja entre elas “diferenças de classe”. Ninguém é mais ou menos valioso. Também diferentes comportamentos (desde que não pecaminosos) não são melhores nem piores; muitas vezes são apenas diferentes.
Paulo expressa isso ao escrever que “um crê que pode comer de tudo, mas quem é fraco na fé come legumes” (Rm 14.2). Com isso, porém, a Bíblia enfatiza não só a diversidade, mas também que essas diferenças não devem ser motivo de conflitos, já que, quanto à vida espiritual, não importa se alguém come determinados alimentos ou abre mão deles. A renúncia também não fará dele um cristão melhor. Por isso, devemos respeitar e aceitar uns aos outros com suas particularidades.
Alimentos são uma questão secundária. Afinal, a Bíblia diz: “Quem come de tudo não deve desprezar o que não come; e o que não come não deve julgar o que come de tudo, porque Deus o acolheu” (Rm 14.3). No entanto, é justamente nessas questões secundárias que tendemos a desvalorizar o outro, a condená-lo e a insistir em ter razão. Mas não deve ser assim: “Quem é você para julgar o servo alheio? Para o seu próprio dono é que ele está em pé ou cai; mas ficará em pé, porque o Senhor é poderoso para o manter em pé” (Rm 14.4).
Nas questões secundárias da vida cristã não devemos ser nem juízes do nosso irmão, nem nos tornarmos sua consciência, padrão e diretriz. Todo crente responde por si próprio diante do seu Senhor. Ainda que veja e trate certas coisas de outra forma: “Alguns pensam que certos dias são mais importantes do que os demais, mas outros pensam que todos os dias são iguais. Cada um tenha opinião bem-definida em sua própria mente” (Rm 14.5).
Como cristão, devo respeitar a liberdade do outro e cultivar pessoalmente uma vida pura diante de Deus.
Vida em liberdade
Como cristãos, temos liberdade nas questões secundárias. “Quem pensa que certos dias são mais importantes faz isso para o Senhor” (Rm 14.6a), e quem não dá maior importância aos dias, também o faz para o Senhor.
Jesus Cristo é a diretriz – como cristãos, pertencemos a ele, a ele seguimos e servimos, e estamos à disposição dele. Não importa o que façamos ou deixemos de fazer, é para glorificá-lo que o fazemos. É nesse sentido que Paulo prossegue ao escrever que “quem come de tudo faz isso para o Senhor, porque dá graças a Deus. E quem não come de tudo é para o Senhor que não come e dá graças a Deus” (Rm 14.6b).
Trata-se do mesmo princípio que encontramos também em Colossenses 3.17: “E tudo o que fizerem, seja em palavra, seja em ação, façam em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai”.
Portanto, quer eu coma ou beba, esteja acordado ou durma, trabalhe ou festeje, guarde determinados dias ou não, minha vida pertence a Jesus Cristo, “porque nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si. Porque, se vivemos, é para o Senhor que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor” (Rm 14.7-8).
Mesmo nas questões secundárias da vida cristã, o que importa não é nossa própria satisfação, mas apenas e tão somente Jesus Cristo. Nossa vida e mesmo a nossa morte pertencem a ele: “Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e tornou a viver: para ser Senhor tanto de mortos como de vivos” (Rm 14.9). Quem é filho de Deus não pertence mais a si mesmo, mas o efetivo propósito e o objetivo da morte de Jesus e de sua ressurreição são o domínio de Deus sobre a nossa vida.
Responsabilidade perante Deus
“Nas questões secundárias da vida cristã não devemos ser nem juízes do nosso irmão, nem nos tornarmos sua consciência, padrão e diretriz.”
Nosso modo de vida como cristãos não é indiferente: “Você, porém, por que julga o seu irmão? E você, por que despreza o seu irmão? Pois todos temos de comparecer diante do tribunal de Deus. Como está escrito: ‘Por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho, e toda língua dará louvores a Deus’. Assim, pois, cada um de nós prestará contas de si mesmo diante de Deus” (Rm 14.10-12). Somos, portanto, responsáveis diante de Deus, e assim também devemos levar um estilo de vida exemplar: “Portanto, deixemos de julgar uns aos outros. Pelo contrário, tomem a decisão de não pôr tropeço ou escândalo diante do irmão” (Rm 14.13). Como cristãos, devemos adotar uma conduta marcada pela consideração, por respeito e por estima.
O amor como defensa (v. 13-23)
“‘Todas as coisas me são lícitas’, mas nem todas convêm. ‘Todas as coisas me são lícitas’, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6.12). Como cristão, posso comer o que me apeteça, posso beber aquilo de que gosto, vestir o que me agrada e celebrar culto em qualquer dia. Tudo isso posso fazer – como cristão, tenho essa liberdade: “Eu sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que nada é impuro em si mesmo, a não ser para aquele que pensa que alguma coisa é impura; para esse é impura” (Rm 14.14).
No mesmo fôlego, porém, Paulo limita essa liberdade ao dizer que “se o seu irmão fica triste por causa do que você come, você já não anda segundo o amor. Não faça perecer, por causa daquilo que você come, aquele por quem Cristo morreu” (Rm 14.15).
Na Alemanha, existem rodovias em que posso correr o quanto eu quiser. Apenas as barreiras de segurança à esquerda e à direita me limitam, bem como o respeito aos outros motoristas. As barreiras na estrada da nossa liberdade são o amor. É dentro de seus limites que posso usar e aproveitar a minha liberdade. Todavia, a liberdade não é um guarda-chuva sob o qual posso cultivar um estilo de vida egoísta ou provocar o irmão ou a irmã a pecar. O amor é o limite da liberdade, sendo respeitoso, vivendo de forma responsável e em mútua consideração.
“Vivamos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedeiras, não em imoralidades e libertinagem, não em discórdias e ciúmes” (Rm 13.13). A Bíblia nos oferece as mais diversas barreiras, dentro de cujos limites podemos nos mover, como por exemplo:
“Mas você ensine o que está de acordo com a sã doutrina. Quanto aos homens idosos, que sejam moderados, respeitáveis, sensatos, sadios na fé, no amor e na perseverança” (Tt 2.1-2).
“Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o pensamento de vocês” (Fp 4.8).
“Do mesmo modo, quanto a mulheres, é necessário que elas sejam respeitáveis, não maldizentes, moderadas e fiéis em tudo” (1Tm 3.11).
Essas são barreiras que delimitam uma vida cristã. O que não deve acontecer em nossa liberdade cristã é que seja “difamado aquilo que vocês consideram bom” (Rm 14.16). Isto que é bom não é ninguém menos que o próprio Jesus.
Com que frequência e rapidez esquecemos que o importante é, afinal, Jesus, seu nome, sua glória, sua honra; em resumo, sua pessoa. Este “bom” não deve ser blasfemado.
Tenhamos cuidado, portanto, de não cairmos em trivialidades, perdendo de vista o principal, Jesus Cristo, “porque o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Aquele que deste modo serve a Cristo é agradável a Deus e aprovado pelas pessoas” (Rm 14.17-18).
Embora a comida e a bebida constituam necessidades básicas da vida, elas não devem ser o principal – este é Jesus Cristo.
Marcados por Jesus
Como redimidos e filhos de Deus, nossa vida pertence a Jesus Cristo. Nossa vida deve ser marcada por ele, por seu caráter e por sua natureza, de modo que que devemos buscar “justiça, paz e alegria” (Rm 14.17).
Paulo está consciente de que nós mesmos não somos capazes disso. Dependemos da ajuda de Deus. Por isso, ele acrescenta: “no Espírito Santo” (Rm 14.17c). É o Espírito de Deus em nós que efetiva isso.
Justiça, paz e alegria são sempre frutos e obra do Espírito Santo. Eles aparecerão à medida que vivo com Jesus, seguindo-o e mantendo com ele um relacionamento intenso por meio da leitura da Bíblia e a oração. Já de manhã cedo Jesus pode ser nosso primeiro pensamento. Durante o dia ele quer me acompanhar, e à noite posso deitar-me sabendo que ele está presente. Davi já expressou essa experiência ao dizer que “tu me cercas por todos os lados e pões a tua mão sobre mim” (Sl 139.5).
Tal pessoa sabe que “bem-aventurado é aquele cuja força está em ti, em cujo coração se encontram os caminhos aplanados! Quando passa pelo vale árido, faz dele um manancial; de bênçãos o cobre a primeira chuva” (Sl 84.5-6).
Justamente quando tivermos de lutar com dificuldades, sendo talvez até mesmo confrontados com doença e dores, podemos ter consciência da proximidade e da ajuda de Deus.
Feliz renúncia
“Assim, pois, sigamos as coisas que contribuem para a paz e também as que são para a edificação mútua” (Rm 14.19). Na igreja de Jesus, o que importa não é prevalecer. Pelo contrário, trata-se de companheirismo e dedicação mútua com o objetivo de seguir a Jesus, glorificá-lo e servi-lo.
Essa mutualidade deve ser marcada pelo respeito: “Não destrua a obra de Deus por causa da comida. Todas as coisas, na verdade, são puras, mas não é bom quando alguém come algo que causa escândalo” (Rm 14.20).
É melhor renunciar a algo do que causar escândalo com aquilo: “É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa que leve um irmão a tropeçar” (Rm 14.21).
Paulo renuncia em consideração à frágil consciência do outro, por amor e respeito. Uma liberdade genuína não precisa requerer todos os direitos, mas é capaz de renunciar por amor, para conquistar o “fraco” e ajudá-lo a seguir Jesus. Afinal, a Bíblia diz: “Levem as cargas uns dos outros e, assim, estarão cumprindo a lei de Cristo” (Gl 6.2).
“A fé que você tem, guarde-a para você mesmo diante de Deus. Bem-aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova. Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer, pois o que ele faz não provém de fé; e tudo o que não provém de fé é pecado” (Rm 14.22-23).
A fé autêntica vive com consciência limpa, porque busca o melhor para o outro a fim de conquistá-lo. Nesse estilo de vida não haverá nada que o separe dos outros crentes, nem de Deus. A Bíblia chama esse crente de bem-aventurado. Ele é uma fonte de paz e contentamento.