Lamentações – Parte 2: Um Panorama

O que este livro representa para Israel e para nós, hoje?

Capítulo 3: O lamento de Jeremias – seu sofrimento e consolo

Nos primeiros versículos somos informados do quanto Jeremias sofre e se lamenta. Ele sofre com a impiedade do povo e sofre por causa da miséria e da destruição criada pelos babilônios, tal como consta também em Jeremias 8.21: “Tenho o coração partido por causa da ferida da filha do meu povo. Estou de luto; o espanto se apoderou de mim”.

Ao longo de décadas, Jeremias se desgastou falando, constantemente alertando que Deus não se deixa escarnecer e que completará aquilo que anunciara por meio de Moisés. Basta lembrar de Deuteronômio 28, que inclui a advertência de que, em caso de apostasia do povo e desobediência à voz do Senhor, ele seria maldito na cidade e no campo. Também se diz ali que “maldito será o fruto do seu ventre”. E acaso não lemos como as mães comiam o fruto do seu próprio ventre?

O paralelismo entre Deuteronômio 28 e aquilo que Jeremias escreve em suas lamentações é espantoso. O povo não tinha desculpa, porque deveria ter sabido o que implicava cuspir no rosto do Deus dos seus pais. E ainda que não se lembrassem mais das palavras de Moisés, profetas tais como Jeremias lembravam o povo daquilo e apelavam para que eles se convertessem. Não havia, porém, disposição para conversão. Aquilo deve ter sido arrasador para Jeremias. Não é doloroso quando, por exemplo, oramos insistentemente por nossos filhos, e estes só riem e vão levando sua vida ímpia, sem qualquer reconhecimento de pecado e temor a Deus?

No versículo 8, Jeremias comenta então que suas orações parecem não estar sendo atendidas: “Mesmo quando clamo e grito, ele fecha os ouvidos à minha oração” (Lm 3.8). Isso lembra muito Jó, que também se lamentou, duvidando se Deus ouviria seu clamor e muito menos o atenderia (Jó 19,21). No versículo 18, então, Jeremias verbaliza seu desespero ao se queixar: “Não tenho mais forças. A minha esperança no Senhor acabou”.

Seria esse o fim de Israel? O reino do norte praticamente não existia mais – há muito tempo os assírios haviam dispersado o povo entre as nações. Para o reino do sul previa-se o mesmo destino. Desta vez seriam os babilônios que derrotariam e deportariam o povo, condenando-o ao esquecimento. Jerusalém fora destruída e o templo não passava de um monte de entulho. A solução final para os judeus, milênios antes dos nazistas, parecia assunto resolvido e coroado de grande sucesso. Trevas profundas baixaram sobre a terra e não havia luz nenhuma, nada mais que o inferno na terra. Contudo, a partir do versículo 19, Jeremias deixa de olhar para as circunstâncias e passa a buscar alguma luz. Ele olha para a frente e, esperançosamente, para a graça de Deus. Ele percebe um vislumbre de esperança.

“Quero trazer à memória o que pode me dar esperança. As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se a cada manhã. Grande é a tua fidelidade. ‘A minha porção é o Senhor’, diz a minha alma; ‘portanto, esperarei nele’” (Lm 3.21-24).

Jeremias procura o consolador para sua imensa aflição, buscando a luz em meio às trevas. Ele sabe que não há vales tão escuros que Deus não possa livrá-lo de lá. Como diz mesmo um certo hino? “Quão fundo posso cair quando tudo se desmancha? [...] Nunca mais fundo do que na mão de Deus”.

“O Senhor não rejeitará para sempre. Ainda que entristeça alguém, terá compaixão segundo a grandeza das suas misericórdias. Porque não aflige nem entristece de bom grado os filhos dos homens” (v. 31-33).

Deus não tem prazer na morte do pecador. Ele não castiga por ter prazer nisso, mas para induzir o seu povo a se converter. Eles não creram nas palavras, então houve necessidade de agir. Jeremias sabia disso: “Por que se queixa o homem? Queixe-se cada um dos seus próprios pecados. Nós pecamos e fomos rebeldes, e tu não nos perdoaste” (v. 39,42).

Deus puniu Judá por sua persistência em pecar, mas ele não rejeitou seu povo. Deus sempre atinge seu objetivo com o seu povo – e aqui principalmente com o remanescente – porque ele é fiel, e é exatamente nesse fato que Jeremias se apoia. Em toda a sua aflição, com todas as lágrimas e em todo o luto, olhava para aquilo que Deus prometera. Sim, Deus anunciara a maldição (Dt 28), mas da mesma forma também sua graça e a restauração do povo de sua aliança. Até chegar lá, porém, havia uma trajetória dolorosa e terrível diante da qual Jeremias só conseguia chorar amargamente. “Os meus olhos choram, não cessam, e não há descanso, até que o Senhor atenda e veja lá do céu. O que vejo entristece a minha alma: o sofrimento de todas as filhas da minha cidade” (Lm 3.49-51).

Não lembra isso inevitavelmente que, séculos depois, o Senhor Jesus também chorou e se lamentou diante dos pecados de Jerusalém e dos seus líderes? “Jerusalém, Jerusalém! Você mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, mas vocês não quiseram!” (Mt 23.37).

E, perdoem-me pela franqueza, mas digo que também hoje correm lágrimas nos céus diante da impiedade que se pratica na terra. Se ainda houver um feriado que o homem deveria guardar de coração, este é o Dia de Arrependimento e Oração, mas em vez dele prefere-se celebrar o Dia Christopher-Street[1], do qual participam até dignitários espirituais... É realmente de chorar!

Capítulo 4: O lamento de Jeremias por seu povo

O quarto canto engata nos dois primeiros e novamente começa com um abatido suspiro. Jeremias começa expressando que são os pecados de Judá que induziram Deus a um juízo tão intransigente. O juízo de Deus é a resposta aos pecados de Israel: “Porque a maldade da filha do meu povo é maior do que o pecado de Sodoma... Tudo isso aconteceu por causa dos pecados dos seus profetas e por causa das maldades dos seus sacerdotes, que derramaram no meio dela o sangue dos justos” (Lm 4.6,13).

Esse capítulo descreve o terrível período do cerco e da fome decorrente dele, além da subsequente destruição da cidade ímpia. Jeremias fala de bebês morrendo de sede porque suas mães não queriam ou nem podiam mais amamentar (Lm 4.3,10). Em vez de alimentar os bebês, como até os chacais fazem, os bebês alimentavam seus pais quando estes os devoravam. E aqui não se trata de linguagem figurada, de alguma metáfora, uma parábola ou algo assim – não, aquilo era a amarga realidade (Lm 2.20). E mesmo essa circunstância já fora anunciada em Deuteronômio 28: “Na angústia e no aperto em que vocês ficarão com o cerco dos seus inimigos, vocês comerão o fruto do seu ventre, isto é, a carne de seus filhos e de suas filhas, que o Senhor, seu Deus, lhes der” (Dt 28.53; cf. Lv 26.29; Jr 19.9).

A fome foi tão violenta que Jeremias escreve: “Mais felizes foram as vítimas da espada do que as vítimas da fome; porque estas se definham atingidas mortalmente pela falta do produto dos campos” (Lm 4.9).

Podia considerar-se feliz aquele a quem a morte atingira por meio da espada, porque essa morte era rápida, mas morrer de fome é bem diferente e nos transforma em canibais. Sim, a culpa de Israel, a culpa de Jerusalém, era maior que aquela de Sodoma. Por quê? Porque Israel contemplara a glória de Deus, a Shekhinah; porque Deus habita no templo em meio ao seu povo. Porque Deus se havia revelado por meio dos seus profetas e porque o povo tinha acesso a Deus por meio dos sacerdotes, o culto e os sacrifícios.

Israel tinha muitos privilégios, mas a estes também correspondia uma enorme responsabilidade, o que acabou levando a que Jerusalém não fosse apenas derrotada, mas que a cidade e seus habitantes definhassem e morressem sob grande sofrimento. Como deve ter sido grande a ira de Deus para ele não só entregar o seu povo à morte, ou ao exílio e à prisão, mas os entregar como ovelhas desprotegidas para serem devoradas pelos lobos. “O Senhor deu cumprimento à sua indignação, derramou o furor da sua ira; acendeu fogo em Sião, que consumiu os seus alicerces” (Lm 4.11).

Quem poderia ter imaginado que o próprio Deus lançaria seu povo, sua cidade e seu templo aos inimigos, para que estes os devorassem? “Nem os reis da terra, nem todos os moradores do mundo acreditavam que o adversário ou inimigo pudesse entrar pelos portões de Jerusalém” (Lm 4.12). Todavia, esse juízo foi o ato justo e santo de Deus diante de um povo integralmente depravado. Deus advertira continuamente o seu povo, e agora havia chegado o ponto em que não poderia mais haver misericórdia. “A ira do Senhor os espalhou; ele já não dá atenção a eles. Não respeitaram os sacerdotes, nem se compadeceram dos anciãos” (Lm 4.16).

E com isso passamos ao quinto e último canto.

Capítulo 5: Uma oração de Jeremias por seu povo

No seu último lamento, Jeremias ora pedindo que Deus não se afaste por completo, mas que, em vez disso, se lembre da grande miséria do seu povo: “Lembra-te, Senhor, do que nos aconteceu; considera e olha para a nossa desgraça” (Lm 5.1).

Jeremias sabe que, se Deus não se lembrar de nós, só nos resta dizer: “Ai de nós e ai do povo que vive sem Deus”. Jeremias apela a Deus, e chega a pressioná-lo com essa pergunta que abala o coração: “Por que te esquecerias de nós para sempre? Por que nos desampararias por tanto tempo?” (Lm 5.20).

Ainda pouco antes da destruição de Jerusalém, Jeremias escrevera em sua palavra profética uma promessa divina: “Jamais rejeitarei toda a descendência de Israel – isso está fora de cogitação!” (Jr 31.37). Acaso essa palavra teria perdido a validade? Acaso Deus diria algo e não agiria de acordo? Assim, Jeremias confia em seu Deus, porque o conhece. Jeremias está convicto de que Deus cumprirá sua palavra e, por isso, dirige um segundo pedido ao único, santo e verdadeiro Deus Criador – ele pede por restauração, pede um fim feliz: “Converte-nos a ti, Senhor, e seremos convertidos; renova os nossos dias como antigamente” (Lm 5.21).

Esse pedido é praticamente o cerne da lamentação de Jeremias: “Renova os nossos dias como antigamente!”. Em outras palavras: “Reconcilia-te conosco”. Nos ouvidos de Jeremias ainda ressoava a palavra de Deus prometendo em meio à mensagem do juízo: “Porém, mesmo naqueles dias, diz o Senhor, não os destruirei completamente” (Jr 5.18). Jeremias sabia que Deus atingirá sua meta com um remanescente do seu povo. Contudo, fazer que a miséria seja esquecida, que a culpa cometida seja apagada da memória, rasgar a fatura, pagar o salário do pecado de uma vez por todas, passar da morte para a vida e se apresentar justificado diante de Deus – como se faria isso?

É possível que Jeremias tivesse saudades dos bons velhos tempos, mas não poderia haver retorno – o que acontecera não poderia ser desfeito. Haveria, sim, necessidade de um recomeço... “As coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17b).

Esse recomeço só seria possível mediante um novo relacionamento, só por meio do perdão, só mediante uma conversão, só pela graça, possível só por meio do próprio Deus, conforme consta aqui: “Traze-nos tu de volta a ti!”. Só seria possível por meio de uma nova aliança. Assim, não é de se admirar que justamente o livro do profeta Jeremias (o autor de Lamentações) aponte para essa nova aliança, essa aliança da graça fundamentada em Jesus Cristo (cf. Jr 31). O Senhor Jesus, o Redentor prometido, é aquele que reconcilia o povo com Deus e no qual a graça de Deus se tornou homem. Jeremias acaba encerrando as Lamentações com um leve sopro de dúvida quando pergunta: “Por que nos rejeitarias de vez? Por que ficarias tão enfurecido contra nós?” (Lm 5.22).

Jeremias sabia que a culpa era tão grande que seria justo e evidente que Deus rejeitasse definitivamente o seu povo. Ainda assim, porém, ele cria que exatamente isso não aconteceria (cf. Lm 3.31-32; Jr 46.28).

Que misericórdia, que graça, que fidelidade, que reconciliação! Deus sempre cumpriu sua Palavra. Deus sempre se manteve fiel às suas promessas... E ele o fará até o fim dos tempos. Isso vale para Israel, mas também para você, para a igreja de Deus, para mim e para todo aquele que confia em Deus. Porque a graça do Senhor se renova a cada dia e grande é sua fidelidade. “Não se enganem: de Deus não se zomba. Pois aquilo que a pessoa semear, isso também colherá. Quem semeia para a sua própria carne, da carne colherá corrupção; mas quem semeia para o Espírito, do Espírito colherá vida eterna” (Gl 6.7-8).

Nota

  1. Um dia de celebração do homossexualismo (N. do T.).

Thomas Lieth é pregador e responsável pelo trabalho editorial da Chamada na Suíça.

sumário Revista Chamada Janeiro 2023

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