Cinco Marcas de uma Igreja Cristocêntrica
Quatro marcas de uma igreja centralizada em Cristo já foram analisadas. Neste texto, a última marca desta minissérie é apresentada.
5. Uma igreja cristocêntrica é marcada pela proclamação do evangelho
Afirmar que uma igreja deve proclamar o evangelho pode parecer uma obviedade, mas infelizmente muitas igrejas ditas evangélicas têm se afastado desse princípio básico. Eu me recordo de um pastor, bastante concorrido e famoso, que, pregando sobre evangelização, descreveu uma oportunidade em que ele “evangelizou” uma criança. A criança havia sido suspensa da escola por roubar bolachas de um colega. Ele, mais que depressa, saiu de onde estava, foi comprar alguns pacotes de bolacha e deu para a criança. Em suas próprias palavras: “Naquela situação, dar bolachas é evangelizar”. Eu, pessoalmente, espero que a criança tenha gostado das bolachas e, talvez, isso até tenha sido um ato de bondade, mas certamente não foi anunciar as boas novas.
Examinando ainda superficialmente o livro de Atos, percebe-se que, em toda pregação do evangelho no Novo Testamento, Jesus Cristo e sua obra são os elementos centrais da pregação. Por exemplo, quando Pedro pregou no dia de Pentecostes (At 2.14-36) o centro de sua pregação foi um só: Jesus Cristo crucificado, morto e ressurreto. Pela ação do Espírito Santo, a reação dos ouvintes foi: “Que faremos, irmãos?” (At 2.37). A partir daí, Pedro responde: “Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos seus pecados, e vocês receberão o dom do Espírito Santo”.
A definição mais concisa de Paulo sobre o evangelho é a passagem de 1Coríntios 15.3-4: “Antes de tudo, entreguei a vocês o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. Salta aos olhos que a pregação do evangelho é, mais uma vez, a pregação sobre Jesus. Uma frase tão curta deve ser lida com cuidado, para que os elementos fundamentais do evangelho não sejam perdidos. Eu vejo sete elementos que deveriam ser centrais na pregação do evangelho.
O primeiro elemento é bastante simples: o evangelho foi recebido! No caso de Paulo, ele o recebeu diretamente de Cristo, a quem ele encontrou na estrada de Damasco. Nós recebemos o evangelho por meio de uma longa linha de pessoas. Paulo exorta Timóteo: “Quanto a você, permaneça naquilo que aprendeu e em que acredita firmemente, sabendo de quem você o aprendeu” (2Tm 3.14). Um depósito nos foi confiado. Temos de tomar muito cuidado de evitar dois extremos: (1) continuar repetindo o que recebemos sem examinar seu conteúdo – por isso Paulo acrescenta: “... e em que acredita firmemente...” – e (2) abandonar a mensagem que nos foi confiada em busca de descobertas novas e diferentes.
O segundo elemento está em uma só palavra: Cristo! A expressão é usada por Paulo 379 vezes em suas cartas. O sentido é claro e amplamente documentado. Cristo é o Messias prometido, é o Filho de Deus, é o criador e sustentador do universo. Uma passagem paulina que expressa bem a pessoa de Cristo é Colossenses 1.15-20. A pessoa de Cristo é o centro de sua pregação e mesmo de sua vida (Gl 2.20). A pregação do evangelho tem de ser centrada na pessoa de Cristo. Qualquer pregação, ação, ou evento que não pregue a pessoa de Jesus, não pode ser chamado de evangelização.
O terceiro elemento é um choque: Cristo morreu! O dilema teológico da morte de Cristo tem sido amplamente debatido. No entanto, é inegável que Cristo morreu. Ao mesmo tempo, precisamos afirmar que nem Deus, nem a segunda pessoa da trindade morreram. Isso resultaria no fim do universo, pois Colossenses 1.17 afirma que “nele tudo subsiste”. Segundo R. C. Sproul, no livro The Truth of the Cross [A verdade da cruz]: “Foi o Deus-homem quem morreu, mas morte é algo experimentado apenas pela natureza humana, pois a natureza divina não é capaz de experimentar a morte”.[1]
O quarto elemento é igualmente chocante nos dias de hoje: nossos pecados! A ideia de pecado pressupõe um padrão absoluto. Isso tem sido atacado e negado com frequência ao longo da história, particularmente em nossos dias. Infelizmente, mesmo pastores e líderes têm minimizado pecados com a desculpa de formação, dilemas sociais ou circunstâncias amenizadoras. Pecado significa que estamos separados de Deus e em rebeldia contra ele. Não é algo temporário ou condicional. Nascemos em pecado e a consequência dessa condição é a separação eterna de Deus, ou seja, a morte. A realidade do pecado diante de Deus é o que nos leva ao arrependimento. Se reconheço que sou pecador, com todas suas implicações eternas, então reconheço que esse caminho me levará à ruína.
O quinto elemento, repetido duas vezes, é: segundo as Escrituras! Já discutimos anteriormente a questão da autoridade das Escrituras, mas é muito marcante que, em sua definição do evangelho, Paulo volte a destacar a autoridade da Palavra. Qualquer apresentação do evangelho que não esteja tanto alinhada como embasada na Palavra é, no mínimo, duvidosa.
O sexto elemento é que Cristo foi sepultado. O sepultamento tem um aspecto não só de finalidade, como também de separação da corrupção. Corpos eram enterrados para que não contaminassem os vivos. O significado do sepultamento é justamente marcar a transição da vida para a morte. Paulo destaca o mistério da morte e nova vida espiritual e o poder da ressurreição ao declarar em Romanos 6.4: “Fomos sepultados com ele na morte pelo batismo, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós andemos em novidade de vida”.
O sétimo e último elemento do evangelho é justamente a ressurreição. A ressurreição é a vitória final sobre a morte instaurada pela rebelião humana. Em 1Coríntios 15.54-55, lemos: “E, quando este corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade e o que é mortal se revestir de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: ‘Tragada foi a morte pela vitória’. ‘Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?’”.
Ao ler todas as pregações do evangelho no Novo Testamento, a fórmula é esta: quem é Jesus e o fato de que ele morreu por nossos pecados e ressuscitou. Quem se arrepende de sua rebeldia contra Deus e aceita sua obra salvadora é salvo! Uma igreja cristocêntrica pode e deve expressar a transformação que o Espírito opera na vida daqueles que seguem a Jesus, no entanto, isso ainda não é evangelização ou proclamação.
Ao longo dos anos, tenho ouvido a seguinte frase atribuída a Francisco de Assis: “Pregue o evangelho todo o tempo. Se necessário, use palavras”[2] Essa citação tem dois problemas. O primeiro é que não há nenhum registro de que Francisco de Assis tenha dito algo assim. Pelo contrário, ele era um pregador apaixonado, muito embora enfatizasse, com toda correção, que as palavras devem primeiro tocar o coração do pregador e só depois devem ser proferidas. O segundo problema, e talvez o mais grave, é que essa afirmação simplesmente não está de acordo com a Palavra. O dr. Duane Litfin, presidente emérito do Wheaton College, em um artigo sobre essa dicotomia pregação/prática afirmou: “É simplesmente impossível pregar o evangelho sem palavras. O evangelho é inerentemente verbal, e a pregação do evangelho é um comportamento inerentemente verbal”.[3]
O argumento teológico para isso é amplo e sólido. Em primeiro lugar, Deus criou o mundo por sua palavra (Sl 33.6,9). O relato da Criação em Gênesis 1 e 2 apresenta um Deus que fala e, ao falar, coisas vêm à existência. De maneira correlata, Eva foi tentada por um discurso. Nessa conversa com a serpente, ela decidiu (assim como Adão) não dar ouvidos às palavras de Deus, mas ouvir a serpente. Adão (Gn 3.17) é repreendido por ter dado ouvidos à sua mulher (relegando as palavras de Deus a um segundo plano). Daí em diante, toda intervenção de Deus vem por meio de seu falar. Ele fala com Caim (Gn 4.6,10), fala com Noé (Gn 6.13), faz uma aliança com Noé por meio de sua palavra (Gn 9.8-17). Ele fala com Abrão estabelecendo sua aliança. A partir dessa aliança, Deus continua falando a esse povo que escolheu para si. O restante do Antigo Testamento é um relato do falar insistente de Deus, diretamente ou por meio de anjos ou profetas. Sem dúvida, Deus fala. Se o Criador do universo trouxe tudo à existência por meio de sua Palavra, como podemos pensar em evangelizar sem palavras?
Em Cristo, somos então apresentados à sua Palavra personificada (Jo 1.14). Jesus Cristo é a representação exata de Deus, sendo ele mesmo Deus. O autor de Hebreus nos mostra Jesus como o ápice da revelação do “falar” de Deus em Hebreus 1.3: “O Filho, que é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela sua palavra poderosa...”.
Por fim, Paulo traz à tona essa necessidade de uma evangelização por meio de palavras ao perguntar em Romanos 10.14-15: “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: ‘Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!’”.
Realmente, como um mundo perdido e rebelde pode ouvir a mensagem de salvação se não há quem pregue? No entanto, repare na frase: “... como crerão naquele de quem nada ouviram?...”. Na base, na essência da atividade evangelizadora, está a proclamação das boas novas de Jesus.
Com toda a certeza, não estamos aqui afirmando que uma vida correta e coerente com o evangelho não seja importante – é evidente que, caso o evangelho não seja visto em nossas vidas, nosso testemunho terá muito pouco impacto. Ao mesmo tempo, o poder do evangelho não está em nosso testemunho, mas em sua verdade inerente. Paulo mesmo afirma em Romanos 1.16-17: “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego. Porque a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá por fé’”.
Se há uma característica marcante é que uma igreja cristocêntrica é evidenciada pela proclamação (com palavras) da pessoa e obra de Jesus Cristo. Na verdade, esse é talvez seu principal propósito! Assim, uma igreja cristocêntrica:
- faz da proclamação do evangelho sua prioridade. Certamente, a proclamação não nega nenhuma das demais prioridades, mas deve ter um caráter primário. Essa proclamação deve fazer parte de sua pregação e de seu ensino. Deve fazer parte de seus programas e seus eventos e deve ser uma das expectativas de todo cristão maduro.
- proclama as boas novas de Jesus por meio de palavras, com clareza e ousadia. Com excessiva frequência, nos preocupamos em ofender aqueles que não conhecem a Jesus. Muito embora não tenhamos o direito de ofender quem quer que seja, por mais diferente e mesmo oposto ao evangelho esse indivíduo viva, não podemos deixar de apresentar a Jesus.
- apresenta o evangelho na íntegra, conforme o recebemos. Todo cristão consciente se preocupa em dar passos na evangelização, buscando apresentar as boas novas de forma que o ouvinte possa absorver e aceitar cada um de seus conceitos básicos. Ao mesmo tempo, um evangelho incompleto não é o evangelho.
“Se o Criador do universo trouxe tudo à existência por meio de sua Palavra, como podemos pensar em evangelizar sem palavras?”
A igreja de Jesus Cristo está passando por um período de grande questionamento. Questionamentos internos e externos têm desafiado qualquer líder sério. Lembro-me das palavras de Paulo em Atos 20.29-31:
“Eu sei que, depois da minha partida, aparecerão no meio de vocês lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. E que até mesmo entre vocês se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás de si. Portanto, vigiem, lembrando que, durante três anos, noite e dia, não cessei de admoestar, com lágrimas, cada um de vocês”.
De fora da igreja, “lobos vorazes” têm tentado atacar e destruir o rebanho. Homens e mulheres que odeiam o nosso Senhor e, consequentemente, odeiam a sua igreja. O número de ataques verbais, virtuais, em protestos e, em alguns contextos, até mesmo ataques físicos causando danos materiais e pessoais têm aumentado. Dentro da igreja também estão se levantando homens perversos que torcem a verdade e tentam reduzir a igreja a algo mais aceitável pelo mundo, mas que abandona nossa identidade e propósito. O propósito deles não é glorificar ao Pai ou a Jesus, mas obter credibilidade e admiração do mundo.
Essas crises não deveriam nos surpreender. A mentalidade do mundo é contrária ao Senhor Jesus. Quando a Palavra fala que o mundo jaz no Maligno, não significa apenas que pessoas cometem pecados, mas que o Maligno está orquestrando a mentalidade mundana. A mensagem da igreja é e sempre será um escândalo para os que não creem. Mais do que isso, eles sempre odiaram a luz, até que sejam alcançados por ela. O próprio Senhor Jesus nos advertiu em João 15.18-21:
“Se o mundo odeia vocês, saibam que, antes de odiar vocês, odiou a mim. Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas vocês não são do mundo – pelo contrário, eu dele os escolhi – e, por isso, o mundo odeia vocês. Lembrem-se da palavra que eu disse a vocês: ‘O servo não é maior do que seu senhor’. Se perseguiram a mim, também perseguirão vocês; se guardaram a minha palavra, também guardarão a de vocês. Tudo isso, porém, farão com vocês por causa do meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou”.
Minha oração é que mais e mais pastores e líderes que amam a Jesus se levantem e conduzam suas igrejas com o foco na pessoa de nosso Senhor. Que, ao adorarmos, amarmos, fazermos a vontade de Deus e proclamarmos sua verdade, o mundo veja Jesus!
Notas
- R. C. Sproul, “Did God Die on the Cross?”, Ligonier Ministries, 23 mar. 2016. Disponível em: https://www.ligonier.org/learn/articles/it-accurate-say-god-died-cross.
- Jonatan Rocha do Nascimento, “Coisas que São Francisco NÃO disse! (Parte 1)”, Medium (blog), 29 abr. 2016. Disponível em: https://jonatanrn.medium.com/coisas-que-s%C3%A3o-francisco-n%C3%A3o-disse-parte-1-aca7196382c5.
- Ibid.