Cinco Marcas de uma Igreja Cristocêntrica

Nesta minissérie, cinco características de uma igreja onde Cristo está no centro são enfatizadas. Nesta edição, veremos a terceira marca.

Uma igreja cristocêntrica é marcada pela vontade de Deus

3. Uma igreja cristocêntrica é marcada pela vontade de Deus – Palavra de Deus

A terceira marca de uma igreja cristocêntrica, buscar cumprir a vontade de Deus, subdivide-se em: (1) Palavra de Deus e (2) transformação contínua. É indiscutível que Jesus era marcado por buscar realizar a vontade de Deus. Em João 6.37-38 temos o registro de suas palavras: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. Jesus deixa claro que sua vontade está em plena submissão à vontade do Pai. Quanto mais nós, como sua igreja, deveríamos ter nossa vontade submetida à dele! No entanto, há uma outra passagem que merece nossa atenção ao examinarmos a questão da vontade de Deus. Trata-se de Mateus 12.46-50. Ali, lemos que a família de Jesus o procurou enquanto ele ministrava. É muito provável que eles quisessem colocar limites no ministério de Jesus, por isso mandaram chamá-lo. Lemos a resposta de Jesus nos versos 48-50:

“... ‘Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?’ E, estendendo a mão para os discípulos, disse: ‘Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, aquele que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’.”

Jesus estabelece duas verdades importantes para nossa discussão: (1) seus discípulos, aqueles que o seguiam, seriam conhecidos como sua família. Essa verdade foi proclamada de forma especial pelo apóstolo Paulo. Por exemplo, em Efésios 2.19, Paulo escreve: “Assim, vocês não são mais estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus”. A igreja é conhecida em várias passagens do Novo Testamento como família de Deus. Isso é mais do que uma metáfora, pois, em um sentido muito literal, somos realmente filhos adotados por Deus por intermédio de nosso irmão mais velho, Jesus. Em 1Timóteo 3.14-15 lemos: “Escrevo estas coisas a você, esperando ir vê-lo em breve. Mas, se eu demorar, você saberá como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade”. No verso 15, a expressão “casa de Deus” é a tradução da palavra grega oikos, que pode ser traduzida como lar ou mesmo família. Em tempos em que tantas igrejas parecem copiar padrões de casas de show, instituições ou organizações do mundo, o conceito de uma família que busca cumprir a vontade de Deus traz à tona um eixo novo ao longo do qual devemos moldar nossas comunidades.

No entanto, a segunda verdade expressa em Mateus 12 é que (2) a marca de sua família – seus seguidores – é que ela faz a vontade do Pai. Dessa forma, fica implícita a ordem e a constatação de que a família de Deus, ou seja, a igreja, deve fazer a vontade do Pai. A questão passa então a ser como conhecer qual é essa vontade. Por isso, demos a esta marca o nome de “Fazer a vontade de Deus – Palavra”.

A Palavra é a maneira por excelência que temos como cristãos de conhecer qual seja a vontade de Deus. O tema da autoridade bíblica para nos fazer entender a vontade de Deus é amplo. Basta olharmos três passagens.

A primeira é João 17.17: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade”. A santificação visa justamente nosso crescimento à semelhança de Cristo. Jesus afirma claramente que sua Palavra é a verdade.

Uma segunda passagem digna de ser examinada quanto a essa questão são os versículos iniciais da carta aos Hebreus. Em Hebreus 1.1-3 lemos:

“Antigamente, Deus falou, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, mas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também fez o universo. O Filho, que é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela sua palavra poderosa, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas.”

O autor declara como ponto de partida que Deus falou por profetas. Essa declaração, tendo em vista aqueles a quem a carta era dirigida, refere-se às Escrituras judaicas. Referindo-se à autoridade da revelação escrita, o autor prossegue apontando para Jesus como a suprema revelação de Deus. Seu raciocínio começa expressando que Deus falou pelos profetas, que haviam registrado essa revelação. Ele segue afirmando que Jesus é a suprema revelação e termina afirmando que ele, Jesus, sustenta tudo por meio de sua palavra. A centralidade da Palavra revelada nessa passagem é indiscutível. E, muito embora a pessoa de Jesus seja distinta de sua Palavra, ele é a base sobre a qual esta Palavra está estabelecida, a base de autoridade da Palavra.

A terceira e última passagem é a conhecida exortação de Paulo a Timóteo em 2Timóteo 3.16-17: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o servo de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”.

Em seus últimos dias, o apóstolo faz uma de suas mais apaixonadas exortações ao jovem pastor Timóteo. Ele pede que Timóteo permaneça nas coisas que aprendeu e das quais tem convicção. A expressão usada aqui para permanecer é a mesma que Jesus usa quando nos exorta a permanecer nele. A ideia é fazer habitação, fazer morada, é fixar-se, é aprofundar suas raízes.

Nos dois versos acima, Paulo declara a autoridade da Bíblia. A primeira expressão fundamental é “inspirada” ou “soprada por Deus”. O conceito da inspiração é não apenas um dos fundamentos da fé cristã, mas um preceito que traz solidez a todo o ensino cristão. Pois, se a Palavra não é inspirada, ficamos à mercê daqueles que ensinam, de seus interesses e distorções humanas. O mestre cristão deve, forçosamente, se submeter à autoridade do texto, de forma que qualquer ensino seu possa ser examinado e corrigido, se for o caso, à luz da autoridade bíblica. A autoridade está no texto inspirado e não no pregador, ainda que este seja iluminado no seu momento de estudo e da pregação!

O conceito da inspiração é fundamental por pelo menos três razões: (1) Deus deseja estabelecer comunhão com o ser humano, (2) por isso, Deus se dá a conhecer e (3) a Bíblia é então o meio pelo qual Deus faz isso hoje. O alvo maior da revelação é que conheçamos ao próprio Deus, sendo assim, Jesus é a própria revelação de Deus. No entanto, cremos que é a Bíblia que revela Jesus e, portanto, o próprio Deus. Não adoramos um livro, mas é este livro que nos mostra, que estabelece os alicerces e os parâmetros para conhecermos esse Deus que ultrapassa nossa compreensão.

No momento em que o homem se dedica a conhecer a Deus sem a Bíblia, ele está rejeitando a própria revelação de Deus. Talvez ainda pior, ele está se colocando como árbitro a partir daquilo que ele entende como Deus. Dessa forma, ele pode avaliar e “construir” um Deus conforme sua própria percepção, conforme seu próprio interesse. Na verdade, ao longo da história da humanidade, o ser humano fez isso muitas vezes. É o que chamamos de idolatria, seja por meio de estátuas e símbolos, seja por meio de conceitos e ideais que cultuamos como nosso “deus”.

“A Palavra é a maneira por excelência que temos como cristãos de conhecer qual seja a vontade de Deus.”

O conceito de inspiração tem sido alvo de debate e, sendo uma doutrina tão fundamental, é importante que tenhamos clareza quanto ao seu significado. A clássica definição do dr. Charles Ryrie é de grande ajuda nesse ponto: “Deus supervisionou os autores humanos da Bíblia para que compusessem e registrassem, sem erros, sua mensagem à humanidade utilizando as palavras de seus escritos originais”.[1]

A passagem de 2Timóteo 3.16 afirma com clareza que toda a Escritura é inspirada e útil. Cada trecho da Escritura foi inspirado por Deus e, portanto, cada trecho é útil. Uma vez mais somos levados a nos opor a vários mestres que afirmam que alguns trechos são inspirados e úteis e outros não. Um teólogo brasileiro que abandonou a fé afirmou há algum tempo que a pessoa de Jesus é a chave hermenêutica da Escritura e, portanto, quando Paulo discorda de Jesus, ele se apega ao que Jesus disse e não a Paulo. Esse pensamento é tanto curioso quanto perverso. Por um lado, esse mestre está correto ao afirmar que Jesus Cristo é a chave hermenêutica, ou seja, toda a Bíblia aponta para Jesus. Ele é “a expressão exata” do ser de Deus. Não só isso, mas temos a afirmativa do próprio Jesus em João 17.17 – “a tua palavra é a verdade”. Ao mesmo tempo, esse falso mestre está completamente equivocado ao identificar trechos bíblicos em que Paulo discorda de Jesus. Esses trechos simplesmente não existem. Toda a Escritura é inspirada, ou seja, ela forma um todo coerente e coeso. Nenhum texto discorda de outro. O que pode sim ocorrer é que nossa mente não compreenda como compatibilizar a nossa interpretação em um texto com nossa interpretação de outro texto. Nesse momento, importa afirmarmos que toda a Escritura é inspirada e retomarmos o estudo para descobrir nosso erro de interpretação.

Na segunda parte do verso 16, Paulo passa a discorrer sobre a utilidade da Bíblia. Ela é útil para o ensino, repreensão, correção e educação na justiça. Pode-se afirmar que essa lista nos auxilia a identificar o processo pelo qual a Bíblia nos leva ao crescimento espiritual. Em primeiro lugar ela deve servir para o ensino, para a apresentação da verdade de forma absoluta. Ou seja, devo encarar o conteúdo bíblico como a revelação da própria verdade. Caso eu não tome esse primeiro passo, todos os demais estarão comprometidos. O primeiro passo é, pela fé, aceitar a autoridade da Palavra sobre minha vida.

O segundo passo é ser confrontado pela Palavra. Caso eu aceite que a Palavra é verdade e tem autoridade em minha vida, ao ler e comparar seus ensinamentos com minha vida, eu logo começo a perceber que há algo de profundamente errado comigo. Ou seja, não sou eu que avalio a Palavra, mas sou avaliado por ela e me submeto a essa avaliação. Quando leio, por exemplo: “Vocês sabem estas coisas, meus amados irmãos. Cada um esteja pronto para ouvir, mas seja tardio para falar e tardio para ficar irado. Porque a ira humana não produz a justiça de Deus” (Tg 1.19-20), imediatamente o Espírito Santo me traz à mente várias circunstâncias em que eu me irritei e que com ira pensei que estava fazendo a vontade de Deus. Ou seja, a Palavra me confronta. O autor de Hebreus indica essa realidade ao descrever como a Bíblia age: “Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para julgar os pensamentos e propósitos do coração” (Hb 4.12).

O passo seguinte é correção, isto é, o alinhamento do meu caminho, da minha perspectiva, da minha crença e da minha vida com essa verdade. É uma reformatação de como vejo e entendo a realidade em minha vida interior e exterior. O apóstolo Paulo nos mostra essa nova perspectiva: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino” (1Co 13.11).

Por fim, chegamos à quarta utilidade da Palavra, instrução na justiça. Esse aspecto trata da formação ou “reformação” de meu ser a partir da justiça de Deus. A Palavra é o meio pelo qual aprendemos a verdade, somos confrontados, compreendemos o novo caminho e também como aprendemos a andar por ele. A Palavra tem instruções práticas e vivenciais sobre como viver. Por isso Jesus rogou, em sua oração sacerdotal, que fossemos santificados na verdade (Jo 17.17)

O propósito desse crescimento é claramente apresentado em 2Timóteo 3.17: “A fim de que o servo de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”. A convicção, o apego e a submissão à ação da Bíblia na vida do cristão são essenciais para seu crescimento. A adaptação da verdade e do conteúdo da Bíblia à opinião mais popular da época, ao invés de nos tornar relevantes, vai justamente apagar o contraste que somos chamados a apresentar em Cristo. Seguindo nessa direção, algumas igrejas historicamente acabaram por perder seu caráter profético, sua voz amorosa mas dissonante e, por fim, sua própria existência.

Em tempos como os de hoje, quando a Palavra é constantemente desafiada, relativizada e quando muitos tentam adequá-la aos sabores contemporâneos, é fundamental que uma igreja cristocêntrica permaneça na Palavra! Na verdade, a Palavra sustenta a igreja e não o contrário. A Palavra de Deus é soberana e tem autoridade. Nós, como sua igreja, nos alinhamos com sua vontade estudando-a e buscando compreendê-la. John Stott, em seu livro sobre pregação bíblica, escreve:

“Sem dúvidas temos numerosos convicções sobre a igreja. Mas para meu propósito (neste livro) tenho apenas uma em mente, que a igreja é a criação de Deus pela sua Palavra. Ainda mais, a nova criação de Deus (a igreja) é tão dependente de sua Palavra como sua antiga criação (o universo). Não somente ele trouxe a igreja à existência por sua Palavra, mas ele a mantém e sustenta, a dirige e santifica, a reforma e renova pela mesma Palavra. A Palavra de Deus é cetro por meio do qual Cristo governa a igreja e o alimento com o qual ele a nutre.”[2]

“Quando uma igreja abandona a crença na autoridade da Palavra, não é a revelação de Deus que perde autoridade, mas esta igreja que escolheu deixar a fonte de sua autoridade e poder.”

Eu gosto especialmente da ênfase que Stott dá ao fato de que a Palavra criou a igreja e é o modo como Cristo a dirige, renova, restaura, e alimenta. Quando os concílios definiram o cânon do Novo Testamento eles não estavam atribuindo autoridade à Bíblia, estavam apenas reconhecendo que esta tem autoridade sobre a própria igreja. Quando uma igreja abandona a crença na autoridade da Palavra, não é a revelação de Deus que perde autoridade, mas esta igreja que escolheu deixar a fonte de sua autoridade e poder. Observem como essa verdade é expressa no livro de Chandler, Geiger e Patterson:

“Esta realidade impressionante – o fato de que Deus trouxe a igreja à existência por sua Palavra – mais tarde levou os reformadores a chamar a igreja de ‘a Criatura da Palavra’. O que eles queriam dizer era que a igreja não é uma instituição ou invenção humana; ela nasceu da Palavra de Deus. Deus falou e criou o universo. Deus falou a Abraão e criou Israel; e da mesma maneira, Deus criou a igreja por meio da proclamação do evangelho da Palavra revelada, Jesus Cristo.”[3]

Cremos que uma igreja cristocêntrica deve ser marcada pela busca incessante de fazer a vontade de Deus. Neste sentido, o compromisso de estudo, ensino e apego à Palavra como a única e suficiente autoridade em nossas vidas é fundamental. Recentemente, um famoso pastor brasileiro propôs que a Bíblia fosse atualizada, que ela fosse adaptada. E seu argumento foi que não podemos ignorar todo o conhecimento humano acumulado ao longo dos anos desde o fechamento do cânon. Não podemos ignorar os avanços da humanidade na compreensão de justiça e dignidade humanas. Ele defendeu que a Bíblia precisava se adaptar a opiniões e posições contemporâneas. Na verdade, suas palavras foram “a Bíblia não é suficiente”. Com essas palavras fica claro que esse líder abandonou o compromisso com a autoridade final da Palavra sobre nossas vidas e nossa fé. Como resultado, a denominação da qual ele fazia parte, após exortá-lo e manter longo diálogo, decidiu excluí-lo de seu grupo de pastores. Uma igreja cristocêntrica mantém Cristo como seu centro, busca fazer a vontade do Pai e consequentemente mantém a Palavra como autoridade última.

Em resumo, diante desta marca de manter-se submissa e comprometida com a Palavra de Deus, uma igreja cristocêntrica:

  1. Tem um compromisso de submeter todas suas perguntas e questões à autoridade da Bíblia. Ou seja, quando estiver diante de um dilema, cuja resposta não é clara, uma igreja cristocêntrica volta-se para a Palavra e se compromete a entender, a partir da revelação divina, como interpretar e mesmo reagir.
  2. Empenha-se no ensino sistemático e adequado da Palavra a todos seus membros. O ensino deve ser sistemático para que se torne uma parte da própria vida da igreja, assim como para que toda a Palavra seja exposta e estudada. O ensino deve ser adequado ao entendimento e desenvolvimento seja etário ou de formação de seus membros.
  3. Busca estimular, capacitar e viabilizar que seus membros estudem a Palavra. Uma igreja cristocêntrica não apenas ensina a Palavra, mas desenvolve programas e ações para que seus membros se tornem, por si só, estudantes da Palavra. Desta forma, ainda que em alinhamento com as instruções de seus mestres e profetas, todo membro é responsável por seu próprio entendimento da verdade bíblica.

Notas

  1. Charles Ryrie, Teologia Básica, trad. Jarbas Aragão (São Paulo: Mundo Cristão, 2012), p. 80.
  2. John R. Stott, Between two worlds: The art of preaching in the twentieth century (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 109.
  3. Matt Chandler, Eric Geiger e Josh Patterson, Creature of the Word (Nashville: B&H Publishing Group, 2012), p. 15, edição do Kindle.

 

Daniel Lima é doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary. Autor e preletor, exerce um ministério na formação e mentoreamento de pastores e líderes.

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