Cinco marcas de uma igreja cristocêntrica

Nesta minissérie, cinco características de uma igreja onde Cristo está no centro são enfatizadas. No artigo de hoje, as primeiras duas marcas são esclarecidas.

1. Uma igreja cristocêntrica é marcada por seu foco na glória de Deus

1. Uma igreja cristocêntrica é marcada por seu foco na glória de Deus

O propósito expresso de Jesus era glorificar o Pai. Na realidade, a Trindade sempre existiu na eternidade concedendo glória um ao outro. Isso é muito mais do que um ato ou evento. Pai, Filho e Espírito Santo existem glorificando um ao outro. No início da oração sacerdotal (Jo 17.1-5) lemos:

“Pai, é chegada a hora. Glorifica o teu Filho, para que o Filho glorifique a ti, assim como lhe deste autoridade sobre toda a humanidade, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. E a vida eterna é esta: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei na terra, realizando a obra que me deste para fazer. E agora, ó Pai, glorifica-me contigo mesmo com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo.”

A primeira marca então tem de ser a promoção, ou a centralidade da glória de Deus. Jesus afirma que não só glorifica o Pai, como também é glorificado por ele. Pode-se afirmar que a glória de Jesus é ser glorificado pelo Pai. Da mesma forma, a glória da igreja não está em seus múltiplos atributos, mas em glorificar a Deus.

Logo a seguir, no verso 3, Jesus revela algo que pode ser surpreendente ao cristão evangélico que nunca teve uma experiência profunda com o Senhor. Jesus afirma que vida eterna não é uma vida sem fim passeando na Jerusalém celestial em ruas de ouro, sem dor ou tristeza (muito embora certamente inclua tudo isso). Na definição de Jesus, vida eterna é conhecer a Deus! O único resultado possível ao conhecer a Deus é dar-lhe honra. João já apresentou essa verdade nas palavras de Jesus em João 5.23: “Para que todos honrem o Filho assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou”.

Para que possamos compreender essa afirmação, precisamos examinar a passagem de Mateus 22.37-38: “Jesus respondeu: ‘Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento.’ Este é o grande e primeiro mandamento”.

Definir a vida eterna como conhecer a Deus está diretamente ligado a amá-lo. Se Deus for realmente o que mais amo, o que mais desejo e o que mais anseio em conhecer, a perspectiva de passar a eternidade conhecendo a Deus é absolutamente encantadora. Davi expressa essa verdade de maneira inspirada e poética em Salmos 16.2,5-6: “Digo ao Senhor: ‘Tu és o meu Senhor; outro bem não possuo, senão a ti somente’... O Senhor é a porção da minha herança e o meu cálice; tu sustentas a minha sorte. As minhas divisas caíram em lugares agradáveis; é linda a minha herança”.

A afirmação de que “outro bem não possuo, senão a ti somente” confirma que, comparado a conhecer ao Senhor, tudo o mais perdia seu brilho, seu valor. Paulo volta a expressar a mesma reação em sua famosa passagem de Filipenses 3.7-8:

“Mas o que para mim era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Na verdade, considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi todas as coisas e as considero como lixo, para ganhar a Cristo.”

Se assim não fosse, a perspectiva de uma eternidade com Jesus seria insuficiente para satisfazer minha alma de adorador. Temo que eu rapidamente começaria a supervalorizar as coisas e experiências maravilhosas que teremos na eternidade. Jesus nos chama a amar a Deus e glorificá-lo não só nesta vida, mas em todos os aspectos de nosso relacionamento, especialmente na eternidade.

É fundamental também observar que Jesus completa seu parágrafo original da oração sacerdotal afirmando mais duas verdades que têm impacto sobre a igreja: (1) no verso 4, Jesus afirma que glorificou a Deus na terra cumprindo sua vontade e (2) Jesus destaca sua natureza eterna ao revelar que ele sempre teve a glória de Deus, muito antes de vir à terra cumprir a vontade do Pai. As implicações para uma igreja são múltiplas, mas deixe-me resumir. Uma igreja cristocêntrica:

  1. Tem a glória de Deus como prioridade. Não por meio de uma atitude fria, rígida e formal, mas “de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento”. O amar e conhecer a Deus são características que devem ser observáveis em uma igreja cristocêntrica. Qualquer igreja onde a glória, o louvor ou elogios sejam divididos, seja com pastores, líderes, programas ou denominação, está se distanciando dos propósitos de Deus.
  2. Não está preocupada em ser conhecida e relevante, mas em fazer com que Deus seja conhecido e honrado. Uma igreja cristocêntrica não está envolvida em disputas “territoriais” sobre membros ou ministérios. Seu foco e preocupação é que Deus seja glorificado.
  3. Reconhece não só a divindade de Cristo como também seu poder e autoridade. Uma igreja verdadeiramente centrada em Cristo está constantemente buscando exaltar aquele que nos salvou e nos enviou para alcançar o mundo. O louvor é dado a Deus na expressão da Trindade.
2. Uma igreja cristocêntrica é marcada pelo amor uns pelos outros

2. Uma igreja cristocêntrica é marcada pelo amor uns pelos outros

O amor mútuo é decorrente da passagem acima de Mateus 22. Jesus, logo após definir qual o maior mandamento, acrescenta: “E o segundo, semelhante a este, é: ‘Ame o seu próximo como você ama a si mesmo.’ Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.39-40). Duas verdades fundamentais ficam evidentes nesses versos: (1) Jesus está colocando o segundo mandamento no mesmo nível do primeiro. Ou seja, é impossível amar a Deus e não ao seu próximo. O apóstolo João discorre sobre esse tema em 1João 4.7-8: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus, e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor”. Repare que não é um acréscimo, como se primeiro amássemos a Deus e posteriormente ao próximo. Amar um ao outro é a consequência natural (ou sobrenatural) de amar a Deus. Uma igreja que não vive o amor mútuo não ama a Deus! Colocando na perspectiva deste nosso artigo, uma igreja cristocêntrica é marcada pelo amor uns pelos outros.

“Amar um ao outro é a consequência natural (ou sobrenatural) de amar a Deus. Uma igreja que não vive o amor mútuo não ama a Deus!”

Nesse aspecto, estamos falando de mais do que apenas uma atitude simpática ou mesmo espírito comunitário que possa unir um grupo de pessoas, de modo especial pessoas que tenham grande afinidade entre si. O amor mútuo tem um aspecto intencional e até mesmo sacrificial. De certa forma, o milagre da igreja está justamente na comunhão de pessoas diferentes. Paulo expressa muito bem esse princípio ao afirmar em Gálatas 3.26-28:

“Pois todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos vocês que foram batizados em Cristo de Cristo se revestiram. Assim sendo, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus.”

Comunhão entre pessoas de formação e origem diferentes é um desafio. Ao longo da história, a igreja cristã apresentou exemplos maravilhosos dessa verdade, assim como exemplos diametralmente opostos. No entanto, nossa comunhão é baseada no amor de Cristo, no próprio Cristo. Cristo já deixou claro a impossibilidade de realizarmos algo sobrenatural sem permanecermos nele (Jo 15.5).

Dietrich Bonhoeffer, refletindo sobre o caráter natural e sobrenatural da comunhão, escreve: “Comunhão cristã é comunhão por meio de Jesus Cristo e em Jesus Cristo. Não há comunhão cristã que seja mais ou menos do que isso. Quer seja um único encontro ou uma comunhão diária que perdure há anos, a comunhão cristã é somente isso. Pertencemos uns aos outros tão somente por meio de e em Jesus Cristo”.[1]

Essa atitude de viver em amor uns pelos outros é ao mesmo tempo fundamental e sobrenatural. Nessa demonstração sobrenatural da presença de Cristo entre nós reside o poder de nosso testemunho.

Jesus, o fundamento da igreja, é quem afirma essa marca em João 13.34-35: “Eu lhes dou um novo mandamento: que vocês amem uns aos outros. Assim como eu os amei, que também vocês amem uns aos outros. Nisto todos conhecerão que vocês são meus discípulos: se tiverem amor uns aos outros”.

Reparem que essa ordem se baseia no próprio amor de Cristo. Assim, ele é não apenas nosso modelo, mas a própria fonte do amor que somos chamados a demonstrar. De especial importância é o verso 35. O que vai dar “poder” e tornar nossas palavras convincentes não são nossos programas, preleções ou eventos, mas o modo como amamos uns aos outros. Uma comunidade que se ama será identificada com Cristo.

Há dois relatos bíblicos que me surpreendem com respeito ao modo como Jesus manifestava amor. O primeiro é João 4, naquele trecho que descreve o encontro de Jesus com a mulher samaritana. É consenso entre estudiosos que provavelmente a mulher foi buscar água no pior período do dia para evitar ser confrontada pelas outras mulheres. Nos versos 16 a 18, Jesus pede que a mulher vá chamar seu marido, ao que ela responde que não tem marido. Jesus então revela conhecer seu histórico de promiscuidade. Eu, pessoalmente, não consigo imaginar que a conversa fosse continuar a partir desse ponto. Essa mulher, que se esforçava para não encarar suas vizinhas, foi desmascarada por um estranho. O que eu esperaria é que ela, envergonhada ou revoltada, deixasse Jesus falando sozinho. Ela, no entanto, continua a conversa, ainda que tentando mudar de assunto. A única explicação que encontro é que ela sentiu que Jesus não estava tentando ofendê-la ou rejeitá-la. A conclusão da conversa demonstra que ela se sentiu amada. Ou seja, mesmo revelando uma vida de pecado, Jesus o fez de tal maneira que ela se sentiu amada. Que grande desafio para nós como mestres cristãos!

Uma outra passagem é a confrontação com o jovem rico. Esse indivíduo busca a Jesus perguntando como herdar a vida eterna. Ele acreditava que realmente vinha cumprindo toda a lei. No entanto, é bem provável que, no fundo de sua alma, ainda existia uma inquietação que apenas o perdão e a graça de Cristo poderiam preencher. A resposta de Jesus à sua arrogância e cegueira espiritual é ao mesmo tempo direta e amorosa. Na passagem de Marcos 10.21 lemos: “E Jesus, olhando para ele com amor, disse: ‘Só uma coisa falta a você: vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres e você terá um tesouro no céu; depois, venha e siga-me’”. Mais uma vez, Jesus está confrontado alguém com seus pecados. Infelizmente, dessa vez o jovem deixa Jesus, pois, de acordo com o texto, era muito rico e provavelmente amava mais sua riqueza do que a Deus. No entanto, o texto nos revela o que motivou Jesus a fazer essa exortação: Jesus o amou.

Nas duas histórias Jesus confrontou em amor – na primeira, a mulher continuou a ouvir a Jesus, na outra o jovem se afastou. O fato é que Jesus sempre falava e demonstrava o amor. João deixa claro que Deus é amor, logo, mais do que alguém que ama, Cristo é o próprio amor. Uma igreja onde Jesus é o centro vai, necessariamente, mostrar amor.

Em sua pesquisa muito bem-preparada, Christian Schwarz destaca oito qualidades de igrejas saudáveis. A marca de número oito é justamente “relacionamentos marcados pelo amor fraternal”.

Ele escreve: “... nossa pesquisa mostrou que existe uma correspondência altíssima entre a capacidade de demonstrar amor em uma igreja e o seu potencial de crescimento. Igrejas que crescem têm, em média, um ‘quociente de amor’ mensurável mais elevado do que igrejas estagnadas ou em declínio”.[2]

Muito poderia ser discutido sobre crescimento ou “quociente de amor”. Algumas igrejas explicam sua aparente frieza na cultura, doutrina fiel ou timidez. Conheço alguns cristãos que são por natureza ou por meio de sua história mais reservados ou, em alguns casos, carrancudos. Lembro-me de um amigo que dizia: “Não sei amar!” e continuava: “Será que tenho de ser falso e começar a sorrir para pessoas ao meu redor?”. Eu acredito que ele era cristão, portanto, eu o exortava com a passagem de 1João 4.7-8. Meu argumento era que mesmo cristãos que, por qualquer razão, sejam mais reservados, devem amar e se esforçar por demonstrar esse amor de alguma forma perceptível. Amor não pode ser contido, será percebido. Em sua pesquisa, Christian Schwarz comenta:

“Para determinar este ‘quociente de amor’, tentamos descobrir (entre outras coisas) quanto tempo os membros de igreja gastam entre si fora das atividades da igreja. Com que frequência eles se convidam para uma refeição ou para um cafezinho? Quanto elogiam uns aos outros na igreja? Em que medida o pastor conhece as necessidades pessoais dos seus colaboradores? O quanto se ri na igreja?”[3]

Esse segundo aspecto deve somar-se ao primeiro (glória de Deus) e de forma alguma contrapor-se a ele. Em nenhum momento uma situação bem compreendida fará com que amar o próximo signifique negar o poder, vontade ou caráter de Deus. Dessa forma, uma igreja cristocêntrica:

  1. Apresenta um compromisso de amor entre seus membros. Esse amor vai além de expressões rituais ou superficiais. Em uma igreja cristocêntrica, membros estão comprometidos com o bem-estar espiritual, emocional e físico uns dos outros e isso é observável para quem se aproxima;
  2. Considera que as diferenças de origem, classe, formação ou étnicas são desafios a serem enfrentados e não constrangimentos a serem evitados. É natural que pessoas busquem e desenvolvam amizade com quem têm afinidade, no entanto, nosso desafio como igreja que tem a Cristo como centro é sermos exemplos (ainda que imperfeitos) de uma nova sociedade, exemplos da família de Deus;
  3. Faz com que seus programas e eventos promovam tempo e espaço para comunhão profunda e significativa entre os cristãos. Compreendendo que nossa fé não é meramente intelectual, mas também vivencial. Igrejas que têm Cristo como seu centro enfatizam o ministério mútuo, onde um cristão conhece, se importa e demonstra o amor de Cristo de forma prática e concreta.

Notas

  1. Dietrich Bonhoeffer, Vida em Comunhão (São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 1997), p. 13.
  2. Christian Schwarz, O Desenvolvimento Natural da Igreja, um guia prático para as oito marcas de qualidades essenciais das igrejas saudáveis (Curitiba: Editora Esperança, 2010), p. 38.
  3. Ibid., p. 38.

Daniel Lima é doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary. Autor e preletor, exerce um ministério na formação e mentoreamento de pastores e líderes.

sumário Revista Chamada Junho 2022

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