A revelação de Deus: Um salmo de criação
Uma reflexão do Salmo 19
O maior dever da humanidade é glorificar a Deus e se alegrar nele para sempre.
O Salmo 19 harmoniza dois temas com os quais o Saltério inicia e um que praticamente conclui o livro. O Salmo 1 é uma ênfase sobre dois caminhos de vida – a vida com Deus e a vida sem Deus –, com a vida da pessoa justa sendo orientada pela Palavra de Deus. O Salmo 148 conclama que toda a Criação louve a Deus. Os dois temas são encontrados também em outros salmos (cf. 119 com 1; e 104 com 148); no entanto, são tipicamente independentes uns dos outros.
O Salmo 19 revela que o maior propósito de Deus, em tudo o que ele faz, é a exaltação da sua glória, e, uma vez que isso é verdade, viver para a glória de Deus deveria ser a ambição de cada crente. De maneira simples, a glória de Deus pode ser distinguida de duas maneiras: sua glória intrínseca e sua glória atribuída. Sua glória intrínseca compreende a totalidade dos seus atributos divinos, tais como, por exemplo, sua graça, santidade, amor e soberania. Deus torna conhecida a sua glória intrínseca por meio de sua revelação natural ou especial. Conforme Deus revela a sua glória, a humanidade o glorifica, o que é a glória atribuída (i.e., a adoração que lhe é devida). O maior dever da humanidade é glorificar a Deus e se alegrar nele para sempre.
Teologicamente, o termo “revelação” se refere tanto à sua própria revelação em relação à sua natureza e propósito para a humanidade quanto ao corpo da verdade que ele tornou conhecido. A palavra é derivada do termo grego apokalupsis, que significa “uma divulgação” ou “revelação” e pode se referir ao ato pelo qual Deus revela a verdade por meio da Criação (Sl 19; Rm 1.18-21), de sonhos (Dn 2.20-30), de milagres (Jo 20.30-31), da comunicação oral (Êx 3.1-9; At 22.17-21) e da pessoa de Jesus Cristo (Jo 1.14,18). Revelação também pode se referir ao conteúdo da verdade revelada, isto é, as palavras contidas na Bíblia. As duas maneiras de revelação de Deus incluem: revelação geral e revelação especial. A revelação geral é recebida por meio da Criação e da consciência (Sl 19; Rm 1–3; At 14.15-17; 17.22-34); é o mundo no qual a humanidade está imersa e também algumas sensibilidades da própria humanidade. A revelação especial é a própria Palavra de Deus (os 39 livros do Antigo Testamento e 27 livros do Novo Testamento).
Muitos salmos enaltecem o caráter de Deus conforme ele está revelado na natureza. O Salmo 19 é considerado um salmo de criação, pois os versículos iniciais se referem à revelação de Deus na natureza; ele também celebra a revelação especial de Deus nas Escrituras. C. S. Lewis considera o Salmo 19 como “um dos mais belos hinos do mundo”.1 O salmo tem uma tripla divisão: (1) proclamação da glória de Deus em seu mundo (v. 1-6), (2) proclamação da glória de Deus em sua Palavra (v. 7-11) e (3) uma oração pessoal por aceitação e perdão (v. 12-14). A relação entre a revelação (natural) de Deus na Criação e sua revelação (especial) em sua Palavra é tão estreita que muitas vezes acontece que essas ideias se cruzam nas várias divisões do salmo.
Nesse hino de louvor, Davi observou o trabalho das mãos de Deus na Criação, que nas palavras de Romanos 1.20 é apresentado como “os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina”. Assim, a humanidade também sabe do propósito de Deus em abençoar por meio de sua Palavra revelada. A dinâmica da revelação de Deus levou Davi a orar para que Deus purificasse a sua vida a fim de que ele pudesse ser aceito pelo Senhor. O Salmo 19 é uma resposta apologética para o antigo Oriente Médio politeísta, pois muitos pagãos cultuavam o deus sol como o mediador da justiça. O Salmo 19 revela que o Deus de Israel é o Criador dos céus, inclusive do sol, e que unicamente os seus juízos são verdadeiros e justos.
A revelação da natureza (Sl 19.1-6)
O Salmo 19 inicia com uma afirmação resumida: “Os céus declaram a glória de Deus”. Romanos 1.20 diz: “Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis”. Os céus falam do poder e da sabedoria de Deus, acrescentando algo dos seus planos e propósitos. Desde o início, a Criação tem sido o testemunho do Senhor para a criatura, a humanidade.
Deus revelou a si mesmo para todo o povo por meio da Criação; o universo declara “a obra das suas mãos”. A auto revelação de Deus para a humanidade é implacável: “Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite” (v. 2). A regularidade das estações e até o calendário agrícola (Gn 8.22) são determinados pelo ciclo do dia e da noite. A divulgação deles pode ser silenciosa, mas é um “discurso” distinto e identificável. O conhecimento que Deus fez conhecido se refere à revelação geral do seu caráter (cf. Pv 8.22-31; Rm 1.20).
Deus revelou a si mesmo na Criação e nas Escrituras. Sua revelação deveria obrigar todas as pessoas a se humilharem em louvor e submissão diante do Criador.
A Criação pode não falar palavras audíveis, contudo, a sua “voz” alcança todas as partes do planeta e é acessível onde quer que “discursos” e “palavras” são verbalizados (Sl 19.3). Toda a humanidade é indesculpável diante de Deus, pois sua própria revelação tornou-se conhecida com a Criação. “Mas a sua voz ressoa por toda a terra”, o que significa que o planeta está repleto de obras das mãos de Deus. O sol serve como ilustração (v. 4). O firmamento e os céus são comparados a uma tenda na qual Deus colocou o sol para iluminar sua vasta extensão.
Além disso, o sol é comparado a “um noivo que sai de seu aposento e se lança em sua carreira com a alegria de um herói” (v. 5). A cada manhã, o sol é como um noivo saindo de seu aposento com entusiasmo, pronto para o casamento, ou talvez saindo do local da cerimônia com entusiasmo para cumprir as responsabilidades dadas por Deus. O sol se alegra com sua força para trilhar a sua carreira. A partir da perspectiva humana, o sol sai “de uma extremidade dos céus” e percorre o “seu trajeto” radiante e com vitalidade enquanto aquece a terra. O sol não necessita de palavras para revelar os atributos, o poder e a natureza de Deus, pois pelos seus efeitos “nada escapa ao seu calor” (v. 6).
A Criação revela a glória da natureza de Deus (v. 1-6). Mesmo que essa revelação seja exata, ela é incompleta por necessidade. A Criação proclama um sermão diário sobre a glória de Deus, e essa mensagem perpétua é ouvida através de toda a terra. Romanos 1.18-20 explica o significado teológico da revelação natural. “Deus, seu eterno poder e sua natureza divina” são evidentes na Criação; eles realmente são “vistos” e “compreendidos”, de maneira que todos os homens “são indesculpáveis”. É tanto insensato quanto inaceitável que alguém queira alegar ignorância quanto à existência de Deus (ver Sl 14.1). A soberania de Deus que é manifestada nos céus é igual ao Sol em sua corrida através dos mesmos.
Deus revelou a si mesmo para todo o povo por meio da Criação; o universo declara “a obra das suas mãos”. A auto revelação de Deus para a humanidade é implacável: “Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite”.
A revelação na Palavra (Sl 19.7-11)
Deus também se revelou nas Escrituras Sagradas (v. 7-11). A religião e a ciência (Criação) não são mutualmente excludentes. Enquanto a revelação geral e a revelação especial “diferem uma da outra [...] não há contradições entre as duas porque o autor de ambas é o mesmo Deus auto consistente”.2 Deus é o autor do mundo e da Palavra e ele não contradiz a si mesmo.
A revelação especial aparece mais facilmente do que a revelação natural. A Criação está “falando”, “declarando”, divulgando e demonstrando a revelação dos atributos, do poder e da divindade de Deus (v. 1-2). No entanto, a revelação da Palavra de Deus é superior porque foi dada pelo Deus mantenedor da aliança, cujo nome é Yahweh (“Senhor”, no v. 7-9,14), enquanto a Criação revela o poder de Deus (v. 1-6). A revelação especial também é superlativa porque é compreensiva. Os benefícios da revelação natural são vistos diariamente (“dia”, “noite”, “calor”), mas os benefícios da Palavra de Deus são muito mais inclusivos.
A Palavra de Deus é descrita com seis afirmações (v. 7-9), sendo cada uma delas composta de três partes. A primeira providencia um sinônimo para Palavra de Deus (como: lei, testemunho, preceitos, mandamentos, temor, ordenanças). A segunda parte confere um atributo de qualidade (como: perfeita, digna de confiança, justa, límpida, pura, verdadeira) e a terceira revela os efeitos da Palavra de Deus (como: revigora a alma, torna sábios os inexperientes, dá alegria ao coração, traz luz aos olhos, dura para sempre, é toda ela justa). Certamente, diante de tal descrição das Escrituras, elas deveriam ser consideradas como “mais desejáveis do que o ouro” e “mais doces do que o mel” (v. 10). A Palavra de Deus é infinitamente mais desejável e valiosa do que qualquer outra coisa que o mundo tenha para oferecer. A Escritura é capaz de satisfazer a fome espiritual de uma pessoa e esse é o meio para um espetacular desenvolvimento e alegria. A Palavra de Deus proporciona um alerta contra tudo que possa prejudicar o bem-estar espiritual de uma pessoa. De fato, há “advertências” nas Escrituras (v. 11).
Respondendo à revelação de Deus (Sl 19.12-14)
Deus mesmo se revelou à humanidade e o Salmo 19 termina com uma resposta à essa revelação própria. “Quem pode discernir os próprios erros?” é uma pergunta retórica, pois implica em uma resposta óbvia (v. 12a). Embora talvez seja possível não discernir os próprios erros, a pessoa que lê, estuda e medita sobre a Palavra de Deus certamente terá essas falhas conhecidas.
O salmista fez um pedido negativo: “Absolve-me dos [erros] que desconheço!” e “guarda o teu servo dos pecados intencionais” (v. 12-13). Ele pediu a ajuda divina para preservá-lo tanto de pecados intencionais como dos não intencionais, com o objetivo de não ser dominado por eles. Positivamente, o salmista pediu que as palavras de sua boca e os pensamentos do seu coração fossem aceitáveis diante do Senhor (v. 14).
Deus revelou a si mesmo na Criação e nas Escrituras. Sua revelação deveria obrigar todas as pessoas a se humilharem em louvor e submissão diante do Criador. De Deus, por meio dele e para ele são todas as coisas e toda glória pertence unicamente ao Senhor Deus para todo o sempre.
Notas
- C. S. Lewis, Reflections on the Psalms (1958; reimpr., San Diego: Harcourt, 1986), p. 63.
- Ron J. Bigalke Jr., “The Preeminence of Biblical Creationism,” in: The Genesis Factor, ed. idem (Green Forest, AR: Master Books, 2008), p. 97.