Somos todos Paulo

A conversão de Paulo como Imagem Profética

Sobre a posição especial do apóstolo Paulo. A história de sua conversão em Atos 9 oferece também um resumo daquilo que ele representou na vida como apóstolo.

O encontro com Jesus

O início foi a pergunta de Paulo: “Senhor, quem é você?” (At 9.5)

C. S. Lewis disse: “Não se pode retornar e modificar o início, mas pode-se começar onde se está e modificar o fim”. Foi exatamente isso que Paulo realizou em sua vida.

Paulo havia cometido muitas malvadezas, e aquilo não poderia ser mais desfeito – repetidas vezes ele deu testemunho disso. Todavia, ele pôde começar de novo e mudar o seu fim – e isso ele fez radicalmente.

Essa verdade é, afinal, a experiência de todo cristão. De repente, surge interesse por quem foi Jesus de fato. E ele não fica devendo a resposta. Lembro-me ainda de como os primeiros passos em direção a Jesus começaram para minha esposa e para mim com perguntas semelhantes. Quem criou tudo isso? O que nos espera depois da vida? Haverá um julgamento? Onde fica o céu? A resposta foi: “Eu sou Jesus...”. De repente, Jesus estava lá diante do coração. Cada um experimenta isso de modo diferente e individual, mas Jesus se apresenta a cada um pessoalmente.

Conversão é chamado

A segunda pergunta de Paulo engatou diretamente na primeira: “Senhor, que queres que faça?” (ARC).

A conversão sempre é também um chamado. Não se deve separar um do outro. A partir de então, Paulo ocupou o restante da sua vida em cumprir a vontade do Senhor. Todo aquele que experimentar plenamente o amor divino desejará entregar-se totalmente a esse amor. Não “o que quero fazer”, mas “Senhor, o que queres que eu faça?”.

Lembremo-nos do próprio Jesus no Jardim do Getsêmani: “Pai... não se faça a minha vontade, e sim a tua” (Lc 22.42).

Consta que a menor biografia se encontra sobre uma lápide na Inglaterra: “Yes, Lord!” (“Sim, Senhor!”). Essa é a resposta adequada para a conversão: “Sim, Senhor! Minha vida pertence a ti com tudo o que sou e tenho. Digo sim à tua vontade e quero aprender a negar a mim mesmo”.

Blaise Pascal disse: “Só existem três tipos de pessoas: os que servem a Deus porque o encontraram – essas pessoas são razoáveis e felizes. Outras o procuram porque ainda não o acharam – essas são razoáveis, mas infelizes. O terceiro grupo é o dos que vão vivendo sem procurá-lo – essas são tolas e infelizes”.

Li a história de um jovem que queria de todo modo ajudar os pobres. Seu discipulador lhe perguntou quando é que ele pretendia pôr esse sonho em prática, e o jovem disse: “Assim que chegar uma oportunidade”. O discipulador respondeu: “A oportunidade não chegará nunca – ela já está aí!”.

Reinhold Ruthe escreve: “Uma lenda russa narra que o Salvador do Mundo foi cercado de anjos depois de ter ascendido aos céus. Eles apontam preocupados para o grupo de discípulos de Jesus na terra. ‘Senhor, o que pretendes fazer se eles fracassarem? Que outro plano tem o teu Pai?’. Jesus responde: ‘Deus não tem outro plano!’”.[1]

Quando mais tarde o Senhor chamou Ananias para ajudar Paulo, ele respondeu: “Eis-me aqui, Senhor!” (At 9.10). Não foi tarefa fácil ir ao encontro do perseguidor dos cristãos, e Ananias comenta isso, mas ele superou o receio e obedeceu, foi até lá e, no momento adequado, também teve força e sabedoria.

Será que estamos mesmo dispostos a representar os interesses do Senhor? Dispostos a, como Paulo, deixar tudo o mais para trás e perseguir o alvo?

Bayless Conley diz: “Quem irá em busca dessa gente, senão você e eu? Dizer que não me sinto chamado a ir é o mesmo que um salva-vidas treinado parado à margem de um lago dizendo que não se sente chamado a salvar a pessoa que está se afogando na frente dele”.

No início da vida espiritual de Paulo estava a pergunta: “Senhor, que queres que faça?”. E ao término da sua vida ele pôde dizer com plena convicção: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé” (2Tm 4.7).

Levantar-se, ir, ouvir e fazer

A primeira ordem de Jesus a Paulo foi: “Mas levante-se e entre na cidade, onde lhe dirão o que você deve fazer” (At 9.6). São quatro coisas que o Senhor requer dele: primeiro, levantar-se; segundo, ir; terceiro, ouvir; e quarto, fazer.

Antes de Paulo receber a grande incumbência de tornar-se apóstolo, viajar percorrendo as nações e escrever treze cartas, e antes que o seu evangelho adquirisse uma grande importância para a igreja das nações, ele recebeu a ordem de fazer o imediato. O que Paulo ouviu em seguida não lhe foi mais dito pelo próprio Senhor, mas por um homem – Ananias.

Será que estamos realmente dispostos a nos levantar para então também ir, ouvir e agir? Faremos primeiro o que está à mão e diante dos nossos pés, o que o Senhor nos traz por meio de pessoas? Talvez seja alguma visita, talvez uma ajuda prática na igreja, talvez você também saiba no íntimo que deve abordar certa pessoa para encorajá-la ou doar certa quantia a alguém.

Muitas vezes temos objetivos elevados, mas não enxergamos os primeiros passos necessários que o Senhor requer de nós.

“Ele está orando”

Paulo estava orando (At 9.11). Quando o Senhor chamou Ananias, ele lhe disse a respeito de Paulo: “Ele está orando”. O Senhor viu que Paulo estava orando – e desde então ele continuou a orar. É isso o que o Senhor quer! A oração faz parte da nossa vida como o óleo da engrenagem, sem o qual em pouco tempo tudo trava.

“A oração faz parte da nossa vida como o óleo da engrenagem, sem o qual em pouco tempo tudo trava.”
“A oração faz parte da nossa vida como o óleo da engrenagem, sem o qual em pouco tempo tudo trava.”

É bem comovente observar a vida de oração de Paulo. A. W. Tozer escreveu acertadamente: “Não nos iludamos: a nossa pureza, nossa força, nossa piedade e nossa santidade nunca serão mais fortes do que a nossa oração”.

O vínculo entre batismo e conversão

Continuando a leitura: “Então Ananias foi e, entrando na casa, impôs as mãos sobre Saulo, dizendo: ‘Saulo, irmão, o Senhor Jesus, que apareceu a você no caminho para cá, me enviou para que você volte a ver e fique cheio do Espírito Santo’. Imediatamente caíram dos olhos de Saulo umas coisas parecidas com escamas, e ele voltou a ver. A seguir, levantou-se e foi batizado” (At 9.17-18).

Reinhold Ruthe pergunta e logo responde: “Quando é que nos reanimamos? Quando a primavera expulsa o inverno, quando o amor nos domina, quando Jesus vira do avesso o corpo, a alma e o espírito, quando seu Espírito nos empolga”.[2]

O Espírito Santo entrou na vida de Paulo e a partir daí assumiu o domínio. É interessante observar a sequência. Até aqui ela foi de arrependimento, batismo e recebimento do dom do Espírito Santo (At 2.38; 8.12-16). Agora vira-se a página. Com Paulo e as conversões subsequentes foi diferente: ele recebeu o dom do Espírito Santo e em seguida foi batizado. Assim também foi mais tarde com Cornélio (10.44-47). E assim continuou até hoje. Com Cornélio chegara o momento oficial no qual as nações foram acrescentadas à igreja composta de judeus. Foi a marca de que algo mudara na história sagrada. Entre os efésios, que eram discípulos de João Batista, o Espírito Santo veio de novo por imposição das mãos do apóstolo (At 19.1-7). Isso, porém, fazia parte dos sinais apostólicos (Hb 2.4).

Uma passagem paralela é Atos 22.16, em que Paulo faz uma retrospectiva da sua conversão. Ali ele se lembra de Ananias, dizendo-lhe: “E agora, o que está esperando? Levante-se, receba o batismo e lave os seus pecados, invocando o nome dele”.

Por aí vemos o estreito vínculo que havia então entre batismo e conversão. Não há fundamentação bíblica para nós separarmos isso hoje. A comprovação da nossa condição é necessária de qualquer modo, com ou sem batismo, mas condicionar o batismo a essa comprovação não concorda com o testemunho bíblico. Pelo contrário: o batismo faz parte da confissão da conversão e pode ser um forte apoio para a certeza da salvação.

Confessar Jesus

Depois do seu batismo, relata-se o seguinte sobre Paulo: “E logo, nas sinagogas, proclamava Jesus, afirmando que ele é o Filho de Deus” (At 9.20). Desde já ele teve uma orientação cristocêntrica.

Quem reconheceu Jesus e experimentou sua redenção, desejará anunciar esse nome. Por trás do seu nome, todos os outros nomes se retraem. Jesus excede de longe toda e qualquer religião – seu nome é o Nome sobre todos os nomes. Não em alguma religião, mas em sua pessoa é que se encontra a salvação.

Paulo se arrisca a anunciar esse nome no meio da cova dos leões – nas sinagogas. É maravilhoso e um sinal da conversão que de imediato o Espírito Santo passe a nos impelir ao testemunho de Jesus.

Como faz bem poder observar a participação de jovens em campanhas evangelísticas, membros de igreja dedicando-se à evangelização e outros contribuindo para alcançar pessoas com o evangelho. Afinal, queremos levar para o céu o máximo possível de pessoas.

Fortalecendo-se ainda mais na Palavra

Em seguida lemos como Paulo se fortalecia “mais e mais” na Palavra, provando que Jesus é o Cristo (At 9.22).

Nota-se aqui que Paulo havia estudado as escrituras do Antigo Testamento, constatando que elas apontam para Jesus. Outros rabinos infelizmente fizeram o contrário na história, tratando de excluir da leitura na sinagoga os textos que apontam para o Messias.

O Espírito Santo também apela para a nossa mente. Podemos apresentar argumentos, provas e conclusões lógicas para demonstrar que Jesus é o Salvador. Tudo isso o Espírito deseja aplicar mediante o seu poder.

“Mais e mais se fortalecia”. Para isso é necessário crescer e fortalecer-se na Palavra, para o que mais tarde Paulo também apela: “Peço ao Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, que conceda a vocês espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele. Peço que ele ilumine os olhos do coração de vocês, para que saibam qual é a esperança da vocação de vocês, qual é a riqueza da glória da sua herança nos santos e qual é a suprema grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder” (Ef 1.17-19).

Um teólogo disse o seguinte a respeito da Bíblia: “Encontraremos nela exatamente o tanto que procurarmos: coisas grandes e divinas se procurarmos o que é grande e divino, nulidades e história se procurarmos nulidades e histórias – nada, se não procurarmos nada”.

Isaac Newton disse: “Tudo para mim! Não devemos ler o evangelho como um tabelião lê um testamento, mas assim como o legítimo herdeiro o lê. O herdeiro diz a cada frase, cheio de alegria e júbilo: ‘Isso é para mim, é tudo para mim!’”.

A isso eu gostaria de acrescentar que mesmo aquilo que não se aplica diretamente a nós, como por exemplo as promessas para Israel, também nos pertence no sentido de aprendermos algo, sermos fortalecidos na fé e passarmos a entender melhor os contextos. Necessitamos do espírito da revelação para compreender a ele mesmo. Cumpre buscar isso porque só assim seremos consolidados e só assim reconheceremos a riqueza da nossa herança.

Perseguição

“Decorridos muitos dias, os judeus resolveram matar Saulo” (At 9.23). Essa tribulação o Senhor já lhe havia anunciado por ocasião do seu chamado: “Pois eu mesmo vou mostrar a ele quanto deve sofrer pelo meu nome” (v. 16).

Sua trajetória espiritual foi marcada por graça extraordinária e extraordinária tribulação em paralelo. É claro que houve muito sucesso, mas combinado com muito sofrimento. De que modo se apresentou o “desfile triunfal” (1Co 3.10) de Paulo com o evangelho da graça confiado a ele? De Atos 9 a 2Timóteo 4 temos uma linha contínua de sofrimentos. Se de tempos em tempos Deus o encorajava com alguma palavra profética, anjos ou irmãos, então era justamente por causa dos seus muitos sofrimentos: “...exceto que o Espírito Santo, de cidade em cidade, me assegura que prisões e sofrimentos estão à minha espera” (At 20.23).

Paulo não recebeu alguma promessa de que “serei poderoso para você, dando-lhe extraordinária autoridade; todos se lançarão aos seus pés, aclamarão e admirarão você. Eu lhe darei abundância de bens materiais de modo que você nunca mais terá de trabalhar; aplainarei todos os caminhos à sua frente. E em qualquer lugar aonde você chegar ocorrerão grandes avivamentos”. Não, mas: “Ande logo e saia imediatamente de Jerusalém, porque não aceitarão o seu testemunho a meu respeito” (At 22.18). Sofrimento, carência, doença, perseguição e tribulação acompanharam-no por toda a vida, até finalmente ele ser executado.

Quanto à igreja, o que consta é: “Fortalecendo o ânimo dos discípulos, exortando-os a permanecerem firmes na fé e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no Reino de Deus” (At 14.22).

Os sinais milagrosos foram diminuindo à medida que o evangelho se espalhava para longe de Israel e se consolidava no mundo gentio. A atividade milagrosa se retraiu enquanto a oração e orientações práticas para santificação passaram a predominar. Por isso, convém não nos reportarmos apenas aos evangelhos e ao livro de Atos, que ainda relatam muitos milagres. Com o término da era apostólica, esses milagres deixaram em grande parte de ocorrer. Assim, Hebreus 2.4 limita a operação de milagres à era apostólica. Nós hoje temos a oração. Sem dúvida, Deus continua operando milagres, mas nada que se compare àqueles tempos. Por não observarem essa realidade, muitos cristãos acabam sofrendo demasiadamente por acharem que tudo ainda deve correr como nos tempos apostólicos.

Maior ousadia

Sempre passaremos por provas em nosso testemunho por Jesus, mas o Espírito Santo nos dará ousadia e sabedoria, abrindo espaço e expandindo nossos limites.

“E Saulo ficou com eles em Jerusalém, entrando e saindo, pregando ousadamente em nome do Senhor. Falava e discutia com os helenistas, mas eles procuravam matá-lo” (At 9.28-29).

Sempre passaremos por provas em nosso testemunho por Jesus. Por um lado, o Espírito Santo nos dará ousadia e sabedoria, abrindo espaço e expandindo nossos limites. Contudo, também poderemos enfrentar mais resistência. Temos de nos manter conscientes disso e não devemos espantar-nos quando acontecer – especialmente se reconhecermos, levarmos a sério e transmitirmos a importância do evangelho tal como foi confiado a Paulo.

Notas

  1. Reinhold Ruthe, “Tägliche Audienz bei Gott” (Kawohl, 2020).
  2. Ibid.

 

Norbert Lieth é autor e conferencista internacional. Faz parte da liderança da Chamada na Suíça.

sumário Revista Chamada Março 2022

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