Inteligência Cultural
Primeiro lançamento da Chamada de 2022
Trecho do Livro: Capítulo 2
De Volta para o Futuro: Lições de Envolvimento com Paulo
Às vezes ajuda saber um pouco de história. Vamos voltar e olhar para o primeiro século, quando a igreja estava apenas começando.
A igreja surgiu em um pequeno canto do mundo greco-romano. Ela não tinha poder social ou político. Todas as forças culturais estavam contra. Ela era vista como periférica e tratada como tal. Ainda assim, de alguma forma a igreja primitiva conseguiu dar início a um movimento cuja duração ultrapassou muito a do império romano, o poder mundial da época. Pode haver lições para nós sobre um envolvimento inteligente ao voltarmos para o futuro.
Quero explorar duas passagens que envolvem o apóstolo Paulo e o que creio que nos ensinam sobre envolvimento cultural. Essas passagens são importantes porque, juntas, refletem uma perspectiva holística do que Paulo disse sobre envolvimento com pessoas, bem como sobre a maneira como ele realmente se envolvia. As duas passagens são Romanos 1.18-32, em que Paulo descreve seu contexto cultural, e Atos 17.16-34, em que ele fala para essa mesma cultura.
Como Paulo falava sobre cultura e como ele se envolvia com ela? Há alguma diferença entre o que Paulo disse sobre cultura e a forma como ele lidou com ela? Houve alguma diferença de tom? Em caso afirmativo, essa diferença é relevante?
Nosso foco é no seu tom ao falar sobre a cultura e a forma como ele interagia com ela. A diferença entre as duas abordagens é tão grande que alguns estudiosos mais céticos argumentam que “não pode ter sido a mesma pessoa”, e questionam o relato de Atos. Entretanto, ao fazer isso, perde-se a oportunidade de uma verdadeira lição sobre envolvimento.
Tal ceticismo não é justificado quando o que está acontecendo é levado em consideração. Recebemos ali instruções importantes sobre como nos envolver, especialmente com uma cultura que está funcionando de maneira tão diferente das nossas perspectivas da fé.
O que podemos aprender com essa viagem no tempo?
A tensão central do envolvimento
Para examinar as estratégias de comunicação de Paulo, vou comparar duas passagens: Romanos 1.18-32 e Atos 17, que relata seu discurso na Colina de Ares (o Areópago).
Primeiramente, quero dizer que em Romanos 1 estamos olhando para uma conversa particular em que Paulo está avaliando a cultura para a igreja. Ele é muito direto e franco quando fala com os “de casa”. Porém, quando Paulo fala diretamente à cultura em Atos 17, ele usa a mesma abordagem em seu modo de falar? Não.
Nesses dois casos vemos a tensão fundamental com que nós também precisamos negociar ao nos envolver e representar o evangelho. É uma tensão que já mencionamos: como estendemos a mão convidando enquanto ao mesmo tempo representamos fielmente o desafio do evangelho com nossa vida diária? O convite é o alvo final, visto que é a solução para cada alma perdida. Esse convite é também uma jornada em direção à nova identidade e à transformação que só Deus pode trazer.
É um convite para algo que está faltando no mundo lá fora, um lugar sagrado ocupado por indivíduos perdoados e cheios do Espírito que formam uma comunidade, a qual é ciente de que é o povo de Deus. É um convite não só para um relacionamento pessoal com Deus, mas um relacionamento de comunhão com pessoas de perspectivas semelhantes capacitadas pelo Espírito que são chamadas a viver de uma maneira diferente do que é o normal para o mundo.
Há tensões que são resultado da nossa mensagem e nossa presença que jamais desaparecerão. A mensagem cristã inclui tanto um desafio quanto um convite. Enquanto isso, precisamos estar no mundo sem ser do mundo. E temos um chamado tanto a confrontar quanto a amar.
A mensagem cristã inclui tanto um desafio quanto um convite. Enquanto isso, precisamos estar no mundo sem ser do mundo. E temos um chamado tanto a confrontar quanto a amar.
Um perigo inerente é esquecermos de que precisamos buscar tanto o convite do evangelho quanto suas confrontações. Algumas pessoas são tão boas na confrontação que é difícil encontrar o convite. Outras são tão boas no convite que a confrontação fica em segundo plano, com o risco de se perder de vista a transformação.
Então como devemos agir de maneira eficaz dentro dessas tensões a fim de mantermos viva a nossa missão central?
Reflexões teológicas de Paulo sobre a cultura (Rm 1.18-32)
Em Romanos 1, Paulo é extremamente claro sobre o que acha da cultura ao seu redor, a cultura dominante. Seu discurso sobre a cultura greco-romana começa com “Portanto, a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça, pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas” (v. 18-20a).
Paulo prossegue: “... tais homens são indesculpáveis; porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e o coração insensato deles obscureceu-se. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis” (v. 20b-23). O apóstolo então compartilha o texto-chave em seus três refrões: “Deus os entregou a...” (v. 24,26,28). Eu leio isso e às vezes me pergunto se Paulo estava assistindo nosso noticiário da noite. Por mais que as coisas tenham mudado em nosso mundo, muitas delas permanecem parecidas com como eram naquela época.
Reconhecidamente, a confrontação (e a condenação) que Paulo faz das tendências da cultura não é o texto mais politicamente correto. Ele é direto e não poupa palavras. Na continuação, Paulo acusa os ímpios dos crimes morais que as escolhas daquela cultura representavam, e os lista de maneira específica.
Sempre há algo nessa lista que enquadra a todos em algum ponto. Ela estabelece uma declaração fundamental: todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus (Rm 3.23). A necessidade do evangelho descrita aqui diz respeito a todos nós.
O que Paulo condena, nessa passagem, vai além da parte do meio que destaca os pecados sexuais. Embora os comportamentos desonrosos que ele menciona ali sirvam como bons exemplos do quão disfuncionais as coisas se tornaram por causa do pecado, devemos ler a lista como um todo, como um reflexo dos comentários sobre idolatria feitos logo antes. Distanciamento de Deus leva a esses pecados. Ninguém escapa da necessidade de Deus, e ninguém escapa da culpa ou da prestação de contas. Qualquer coisa daquela lista desqualifica alguém de honrar a Deus e o torna culpável por seu pecado. O barco dos necessitados está lotado.
Paulo está colocando os fundamentos para expor por que todos precisamos do evangelho, da nova vida e do espaço sagrado que Deus nos dá através de Jesus Cristo. A acusação do apóstolo do “todos” em Romanos 3 segue uma acusação do mundo judeu em Romanos 2, e esta segue uma acusação do mundo gentio em Romanos 1. No capítulo 2, Paulo diz que apesar de os judeus terem a Lei, são culpados de tipos semelhantes de violação. Este não é um problema que diz respeito somente a um grupo específico, ele é generalizado. Todos estão remando no mesmo barco furado, correndo o risco de afundar. Todos precisam do evangelho: dos fofoqueiros aos orgulhosos, dos invejosos aos que praticam imoralidade sexual em todas as suas formas. A condenação do pecado por Paulo é abrangente em seu escopo.
A mensagem de Paulo aqui é ampla, direta e clara. O evangelho diz a toda pessoa viva que ela precisa de um relacionamento restaurado com Deus. Se deixados por conta própria, todos fracassamos em viver à altura do padrão que Deus estabeleceu para aqueles que criou à sua imagem. Ninguém tem o direito de menosprezar outra pessoa por sua necessidade.
Assim, a inteligência cultural reconhece o estado da nossa sociedade longe de Deus. A necessidade que temos dele é enorme e nos torna humildes.
A metodologia de Paulo para o envolvimento cultural (At 17.16-34)
Tendo o comentário de Paulo para os “de casa” em Romanos 1 sobre a seriedade e o escopo do pecado em mente, agora podemos voltar nossa atenção para como Paulo fala diretamente a essa mesma cultura em Atenas em Atos 17.
Sabemos muito bem, a partir de Romanos 1, como ele enxerga as ações e atitudes da cultura. Conforme passamos da teologia à metodologia, fazemos a transição para Atos 17, onde Lucas relata que, “enquanto esperava por eles em Atenas, Paulo ficou profundamente indignado ao ver que a cidade estava cheia de ídolos” (v. 16). Esse versículo poderia ser um resumo do que vimos em Romanos 1. O significado grego para a palavra “indignado” está ligado à ideia de sentir-se “provocado”, já que Paulo reage com evidente raiva ao que está vendo, o que fez seu sangue começar a ferver!
Emocionalmente falando, estamos com ele no mesmo lugar onde estávamos durante suas confrontações dos pecados culturais em Romanos 1. Em Atenas, Paulo estava falando a judeus e a gentios tementes a Deus na sinagoga e nas praças. No entanto, havia também alguns filósofos epicureus e estoicos conversando com ele, e ao avaliar Paulo, diziam: “O que está tentando dizer esse tagarela?” (v. 18). A referência literal é a um pássaro bicando sementes, indicando alguém sem substância – alguém que vai dessa semente para aquela, sem parar em nenhum lugar por tempo o suficiente para realmente entender o que está acontecendo.
Na Colina de Ares, Paulo é apresentado praticamente como um entretenimento de segunda. Ele não é respeitado. Eles não dizem: “Que honra a nossa ter um representante importante de um novo movimento religioso que vem abalando nosso mundo e a quem devemos dar atenção”. Ele é apenas uma curiosidade; ainda assim, caminha diretamente para essa arena e fala, não fugindo da oportunidade por causa da plateia difícil e desrespeitosa. Ele se envolve, mesmo que eles o tratem como uma parte menos séria da conversa. Ele é fiel, respeitoso e até mesmo gentil na maneira como começa.
Lucas descreve a cena em Atos: “Outros diziam: ‘Parece que ele está anunciando deuses estrangeiros’, pois Paulo estava pregando as boas-novas a respeito de Jesus e da ressurreição. Então o levaram a uma reunião do Areópago, onde lhe perguntaram: ‘Podemos saber que novo ensino é esse que você está anunciando? Você está nos apresentando algumas ideias estranhas, e queremos saber o que elas significam’” (v. 18b-20).
Isso prepara o palco para o que Paulo está prestes a fazer no versículo 22. “Então Paulo levantou-se na reunião do Areópago e disse: ‘Atenienses! Vejo que em todos os aspectos vocês são muito religiosos’”. Sua frase inicial carrega um duplo sentido que não podemos deixar de notar: ser “muito religioso” também significa ser potencialmente supersticioso. Então, esse uso das palavras por Paulo implica uma crítica, mas é uma que pode ser usada para construir uma ponte. Desafio e convite estão lado a lado.
Essa é uma incrível frase de introdução. Como é possível o Paulo julgador e provocador de Romanos 1 sequer ousar falar dessa forma? Eles são “muito religiosos”! Como quem cresceu nos anos 1960, eu li as palavras de Paulo e me perguntei: o que você estava fumando, Paulo? Essa introdução é tão surpreendente que alguns afirmam que não é possível que tenha sido de Paulo – que é apenas Lucas colocando palavras na boca de Paulo. No entanto, enxergar as coisas dessa forma significa perder o ensino do que Paulo está fazendo.
A maneira como ele constrói a ponte intencionalmente não é para abrir o discurso com uma polêmica agressiva contra as crenças profundamente enraizadas de seus ouvintes e insultá-los. Em vez disso, Paulo está comunicando um nível de respeito pela sua busca por espiritualidade, e então ele passa a corrigi-la dando-lhes a chance de refletir sobre aquilo em que creem. Na prática, ele está dizendo: “Eu vejo que vocês estão interessados e envolvidos com questões espirituais, então por que não conversamos sobre isso?”. Ele tentará corrigi-los ao construir uma ponte de onde eles estão até onde ele os quer levar.
A construção de pontes como metodologia
Ao construir uma ponte evangelística, Paulo diz: “Vejo que em todos os aspectos vocês são muito religiosos, pois, andando pela cidade, observei cuidadosamente seus objetos de culto...” (v. 22b-23a). Na verdade, Paulo está dizendo que seus ouvintes têm buscado diligentemente algum tipo de espiritualidade, mas que há uma lacuna em seu raciocínio que precisa ser preenchida. Ele está confrontando sua crença, não com um ataque frontal agressivo, mas através de observações feitas para gerar reflexão, para convidá-los a pensar, para começar do ponto onde eles estão e, a partir dali, levantar perguntas para que eles considerem.
Percebe a diferença entre essa abordagem e o ataque frontal direto? Percebe a diferença entre Romanos 1 e Atos 17? Este é o mesmo Paulo que escreveu Romanos 1. Ele conhece o significado teológico da idolatria, mas no texto em Atos ele continua desta forma: “... encontrei até um altar com esta inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio” (v. 23). Ele tentará preencher as lacunas a partir do ponto de partida deles.
Em vez de começar onde ele está e pedir-lhes que se engajem com suas crenças em um grande salto, Paulo começa a partir de onde eles estão e caminha com eles até onde ele está. Ou, mais especificamente, ele mostra-lhes o caminho e aponta a direção, e deixa os resultados com Deus.
No entanto, Paulo enfrenta outro dilema nesse contexto. Como se compartilha a história bíblica com pessoas que nunca leram a Bíblia? Onde se começa com pessoas que não sabem a diferença entre Gênesis e Malaquias? Na verdade, eles não sabiam absolutamente nada sobre o conteúdo da Palavra. Como se constrói essa ponte? Essa é uma questão-chave, já que esse é também cada vez mais o caso na cultura de hoje. Muitas pessoas não conhecem nada do conteúdo bíblico. Por onde se começa?
É importante notar que Paulo não começa citando textos bíblicos. Na verdade, em nenhum ponto deste discurso ele cita a Bíblia explicitamente! Em vez disso, ele conta a história bíblica começando com o relacionamento mais fundamental que qualquer pessoa pode ter: o da criação amada e criaturas preciosas com o Deus Criador. Fazendo uma paráfrase de Gênesis 1, Paulo começa dizendo que “o Deus que fez o mundo e tudo o que nele há” (a propósito, isso inclui vocês) “é o Senhor dos céus e da terra e não habita em santuários feitos por mãos humanas. Ele não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de algo, porque ele mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas” (At 17.24-25).
Paulo não está recuando, mas construindo uma ponte em direção ao seu alvo missional. Ao mesmo tempo, ele está confrontando o que templos e ídolos podem fazer. Essa é a pedra no sapato que Paulo usa. Ele essencialmente está dizendo: “Eu admiro o fato de vocês estarem em uma busca espiritual; vamos conversar sobre como deve ser essa busca espiritual de acordo com a verdade de Deus enquanto Criador”.
O relato de Lucas das palavras de Paulo continua: “De um só fez ele [Deus] todos os povos, para que povoassem toda a terra, tendo determinado os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em que deveriam habitar. Deus fez isso para que os homens o buscassem e talvez, tateando, pudessem encontrá-lo, embora não esteja longe de cada um de nós. ‘Pois nele vivemos, nos movemos e existimos’, como disseram alguns dos poetas de vocês: ‘Também somos descendência dele’” (v. 26-28). Para reforçar seu primeiro ponto, Paulo não cita a Palavra. Ele cita um dos próprios poetas deles, o que avança a plateia em direção ao alvo específico que Paulo tem em mente. Paulo conta a história do agir de Deus e constrói pontes.
No espírito da abordagem retórica de Paulo, muitas vezes eu pergunto a meus alunos se eles saberiam citar trechos culturais contemporâneos que se alinham com os valores bíblicos. Isso pode significar encontrar uma letra de música que explore um desejo na vida que se alinha com a Palavra e desenvolver essa ideia. Pode significar discutir um filme que levanta perguntas sobre o propósito da vida, ou apontar para um dilema dentro de um filme e discutir como uma percepção de Deus poderia lidar com esse dilema. Trabalhar com uma história cultural em comum pode ser a ponte para a história divina. Passos assim refletem inteligência cultural.