Deus, o Sofrimento e a Felicidade
O salmista diz que na presença de Deus há alegria plena (Sl 16.11). Como ficamos, porém, quando honestamente procuramos essa plenitude no Senhor e mesmo assim parecer que não a encontramos?
Agostinho de Hipona sabia: “Para qualquer um que saiba usar sua inteligência, está claro que toda pessoa quer ser feliz”. A grande arte da vida é buscar felicidade e realização no lugar certo, porque há só um que nos pode tornar plenamente felizes: o único que é perfeito – Deus. Em outras palavras: “Buscar a Deus, encontrar a felicidade”.
Porém, é mais fácil dizer isso do que experimentar. Os vales podem se tornar muito escuros quando nos estendemos para a realização em um Deus que não enxergamos, não ouvimos e não sentimos. Encontrar a felicidade em Deus é uma luta, não um passeio. Por quê?
Encontramos a resposta numa oração do apóstolo Paulo. Ele confessa o anseio que arde em seu coração e, com isso, também revela como podemos encontrar verdadeira felicidade apesar de todas as lutas, tribulações e trevas que possivelmente nos atormentem. Ele escreve: “Quero conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma, alcançar a ressurreição dentre os mortos” (Fp 3.10-11).
O que ele quer dizer com isso e o que isso significa para o “buscar a Deus, encontrar a felicidade”?
Conhecer Cristo
Toda felicidade divina e verdadeira começa com Jesus Cristo. Quem quiser saber como Deus é, precisa buscar Jesus (cf. Jo 1.18). Ele revela Deus para nós e diz: “Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas” (Mt 11.28-29).
Paulo diz que quer conhecer Cristo. “Buscar a Deus, encontrar a felicidade” começa com uma decisão voluntária da nossa parte. Por intermédio de Cristo, Deus já nos disse “eu quero”. Nosso “sim” para Deus pode, porém, ser difícil. Nós não o vemos nem sentimos porque ele está acima de tudo o que existe. Ele é Deus; nós, não. Muitos imaginam Deus como o ser supremo no topo da escala. Então nos aproximamos dele como também nos aproximaríamos de outros seres. Isso, porém, é um erro. Ele está além da escala e nos cerca por todos os lados.
Que distância existe entre uma formiga e um homem? Ela é muito grande. Mesmo uma criancinha consegue esmagar uma formiga. Na escala da existência, a formiga está muito abaixo de nós. Mesmo assim, contudo, participamos da mesma escala. Tanto homens como formigas são criaturas.
Qual é a distância entre um anjo e um homem? Diríamos que é muito grande porque não podemos enxergar os anjos. Eles são muito mais poderosos do que nós. Mas é interessante que a carta aos Hebreus indica que, na verdade, a humanidade é só “um pouco” inferior aos anjos (cf. Hb 2.9). Seja como for, a distância existe e, por sua natureza diferente, os anjos parecem inacessíveis. Quando o profeta Daniel viu um anjo em sua glória, sua reação foi: “Fiquei sem forças, muito pálido, e quase desfaleci” (Dn 10.8b). Ainda assim, estamos na mesma escala. Tanto anjos quanto homens são criaturas.
Qual a medida da distância entre Deus e o homem? Ainda maior? Talvez trilhões de vezes maior que entre anjos e homens? Não. Não há como medir a distância porque Deus e o homem não estão na mesma escala. Ele é Criador, nós somos criaturas. A distância entre nós é infinita, uma eternidade imensurável e incontável. Deus é Deus, e por isso é tão difícil para nós reconhecê-lo. Ele nem está em nossa escala. Ele é.
Por isso, se quisermos encontrar a felicidade, precisamos dizer: “Sim, eu quero”. Quero conhecer esse Deus que não consigo enxergar. Quero conhecer esse Deus com quem ser nenhum pode concorrer. Quero conhecer esse Deus impossível de ser manipulado ou influenciado. Quero conhecer esse Deus tão diferente de mim.
Na prática, o nosso “sim” significa que tudo o que fazemos ou omitimos, faremos ou omitiremos para o Senhor. Tal como Paulo expressa, toda a nossa vida deve proclamar: “Sim, eu quero!”.
"Devemos buscar em nossa vida diária o que é verdadeiro, bom e belo. Por quê? Porque Deus é assim. Ele é amor, bondade, paz, pureza e toda virtude perfeita."
Mas como será possível fazer isso se Deus está além de toda a natureza e de todo ser? Normalmente sabemos como induzir a reação de outras criaturas a nós. Mas como ficamos com um Deus diante do qual não podemos fingir nada, absolutamente nada? Afinal, Jesus disse que em nossas orações não devemos ficar repetindo coisas como os pagãos, que pensam poder “convencer” Deus com a abundância do seu falatório a finalmente se mover na direção deles.
Paulo dá a resposta no contexto de um apelo a uma alegria genuína: “Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas” (Fp 4.8).
Em nossa vida diária devemos buscar o que é verdadeiro, bom e belo. Por quê? Porque Deus é assim. Ele é amor, bondade, paz, pureza e toda virtude perfeita. É com isso que devemos alinhar nossa vida.
“Quero conhecer Cristo”, diz Paulo, e Cristo não é apenas uma ideia, um ideal, uma abstração ou um nobre pensamento – não, ele é tudo o que é verdadeiro, nobre, direito, amável, convincente e louvável, tudo o que se chama virtude. Por isso dizemos com tudo o que somos: “Eu quero”. Não só porque queremos nos tornar pessoas melhores, mas porque queremos obter o Melhor.
A bem-aventurança da vida eterna consiste em reconhecer o Perfeito: Deus Pai e o Filho Jesus Cristo em comunhão com o Espírito Santo (cf. Jo 17.3). Reconhecer é mais do que conhecer. É união, comunhão íntima – uma união que permeia todo o nosso ser. Como Jesus Cristo é aquele que nos esclarece a respeito do Deus invisível no céu, a felicidade é estar guardado com Cristo em Deus. Quanto mais reconhecermos Cristo na prática e não só na teoria, tanto mais felizes seremos.
O poder da sua ressurreição e a comunhão dos seus sofrimentos
Assim como somos, porém, não somos capazes de buscar a Deus de modo perfeito e de encontrar a felicidade. Muitas vezes fracassamos, tropeçamos e nos equivocamos, mesmo não querendo. Com nossas limitações, simplesmente não temos forças para permanecer ininterruptamente com o Deus ilimitado. É como um arco continuamente retesado. Ele acabará quebrando sob essa tensão. Seria o que nos ocorreria se em nossa imperfeição tivéssemos de nos estender continuamente para o Perfeito.
É algo que não suportaríamos. Falando figuradamente, estouraríamos. Internamente somos agredidos pelo veneno da morte, mas Deus é a fonte da vida. Morte e vida são incompatíveis. Uma tragará a outra. Enquanto formos da terra, não podemos prevalecer diante do celestial. Isso torna a plena felicidade inalcançável para nós em nosso corpo.
Por isso é tão importante reconhecer Cristo. Por meio dele, a divindade uniu-se com a humanidade. Ele se tornou o que nós somos para que possamos ser o que ele é. Em nosso favor ele tragou a morte de dentro para fora. No terceiro dia ele ressuscitou dos mortos. Como Deus-homem, ele vive eternamente. Ele é o fundador da nova humanidade que venceu a morte e está unida a Deus. Essa é a força que ele nos quer dar, ou seja, a força da sua ressurreição. Ele quer nos libertar da morte e de tudo o que nos separa de Deus.
Por essa razão, Paulo também ora pedindo que possa conhecer o poder da ressurreição dele. Porque esse poder que o ressuscitou também habilitará nosso coração para a perfeita felicidade. Cristo é tudo para nós: “É, porém, por iniciativa dele que vocês estão em Cristo Jesus, o qual se tornou sabedoria de Deus para nós, isto é, justiça, santidade e redenção” (1Co 1.30).
Onde quer que estejamos, reportamo-nos a Cristo e ao poder da sua ressurreição.
Contudo, é mesmo assim fácil simplesmente não sentirmos essa bem-aventurança que nos é prometida. Segundo Salmos 88.18, as trevas são a nossa única companhia. – Mesmo se dissermos ou até gritarmos “eu quero” em tudo o que nos diz respeito.
Com isso então chegamos ao grande e assustador mistério da fé cristã, que é a cruz. O Deus que nos conduz à felicidade não se revela por meio de um Jesus qualquer, mas por meio do Jesus crucificado (cf. 1Co 2.2). Na cruz vemos como o Deus invisível realmente é em toda a sua glória (cf. Jo 17.1ss). É como Paulo orou: reconhecemos o nosso Senhor na comunhão dos seus sofrimentos.
Comunhão é mais do que relacionamento: significa participar. Quem quiser ter mais parte no Senhor (portanto, quem cresce na comunhão com ele), também participará dos sofrimentos do seu Senhor.
Quando Jesus morreu na cruz, seus discípulos ficaram arrasados. Eles haviam imaginado de forma bem diferente a trajetória do Deus feito homem. Depois da sua ressurreição, Jesus apareceu a dois dos seus discípulos e explicou-lhes por que ele teve de morrer, mas eles não o reconheceram. Os olhos daqueles dois homens só se abriram para ele quando estava sentado com eles à mesa e partiu o pão.
A comunhão no partir do pão é um símbolo dos sofrimentos do Senhor. Isso significa que os nossos olhos serão abertos para ele quando sofrermos com ele. É no vale tenebroso que ele está conosco. É na presença dos nossos inimigos que ele nos prepara a mesa. “Por isso não desanimamos. Embora exteriormente estejamos a desgastar-nos, interiormente estamos sendo renovados dia após dia, pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles” (2Co 4.16-17).
De maneira misteriosa, Deus vai criando nossa felicidade por meio das cruzes que ele nos impõe. Se quisermos conhecê-lo como ele é, ele nos convoca a sermos heróis. Paulo aceitou esse chamado, não pela metade, mas integralmente. Ele não parou no poder da ressurreição de Cristo (o que nós gostaríamos de ter), mas continuou orando e pedindo comunhão com os sofrimentos dele.
A conformação com sua morte visando à ressurreição dentre os mortos
Em nossa procura por Deus, tudo o que nos acontece atende a um objetivo: devemos morrer e viver com o Filho de Deus, tal como Paulo diz: “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20).
Ele ora pedindo comunhão com os sofrimentos do seu Senhor a fim de ser conformado à morte dele. Só depois de morrermos é que viveremos. Encontrar a felicidade significa renunciar ao nosso eu e crucificá-lo com Cristo. Mas como?
“Pecar é errar o alvo. Pecado é o espinho da morte. Pecado é a ausência de tudo o que é bom, verdadeiro e belo.”
A resposta não muito atraente para nós é: pecado. Pecar é errar o alvo. Pecado é o espinho da morte. Pecado é a ausência de tudo o que é bom, verdadeiro e belo. Pecado é o que envenena toda a nossa vida. Deixamos de desenvolver todo o nosso potencial porque os pecados nos prendem e tolhem.
A humanidade toda sofre com o pecado como se fosse uma doença incurável, contagiosa e mortal. Tornamo-nos simultaneamente vítimas e agentes do pecado. Deus nos purifica desse pecado sempre que lhe pedirmos, porque foi para isso que Jesus morreu. Seu sangue foi derramado para que a consequência do pecado, a saber, a morte e a separação de Deus, fosse destruída e ele deixe de nos ameaçar.
Apesar da purificação, da redenção e da santificação que Deus nos concede de bom grado, livre e sem acusação, as marcas do pecado sempre permanecem em nosso corpo. É como o caso de um médico que pode nos garantir a cura de um terrível câncer. Ele terá prazer em nos tratar, até de graça! A cura é certa. Jamais teremos de pagar a conta. Mesmo assim, teremos de passar pelo doloroso tratamento. As células doentes precisam morrer para que possamos nos restabelecer.
O mesmo ocorre com a salvação quando buscamos a Deus e encontramos a felicidade. Deus trabalha em nós a fim de nos preparar para sua indizível glória. E esse é o caminho através do deserto, penetrando na escuridão, onde ele se torna incompreensível para nós e onde seu amor nos fere para que possamos ser curados.
Morrer não é algo bonito. A morte não se acompanha de sentimentos de bem-estar. Nossa natureza se defende contra ela. Quando a morte começa a agir em nossa vida e roubar o que amamos, nós reclamamos e não entendemos mais o mundo. Mas é bem desse processo doloroso que emerge o fruto da vida eterna.
A carta aos Hebreus fala dos santos de Deus. Alguns deles aceitaram conscientemente o sofrimento e a morte e recusaram a libertação a fim de alcançar uma ressurreição melhor. – Deus nos molda aqui na terra para a eternidade junto dele, para a vida perfeita da ressurreição. Quanto mais aceitarmos sua atuação em nós, tanto mais ele também aumenta o vaso com que contemplaremos e assimilaremos sua indizível glória. Em última análise, isso significa que o amor de Deus nos fere para multiplicar a nossa bem-aventurança.
Paulo escreve o seguinte a respeito da transformação que Deus quer nos proporcionar: “E todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito” (2Co 3.18).
Essas maravilhosas palavras não flutuam no vácuo, porque em seguida o apóstolo começa a falar na comunhão com os sofrimentos de Cristo (cf. 2Co 4.7-10). Ela está onde, com a face descoberta, contemplamos a glória do Senhor como num espelho. Essa é a misteriosa lógica da cruz.
É assim: todo aquele que ama a Deus e o busca, também o verá. Isso significa que todo vaso transbordará no céu. Porém, alguns que aceitam corajosamente a luta tornam seus vasos na terra maiores do que outros, de modo que receberão mais de Deus. Esse é o sentido da comunhão com os sofrimentos dele e a conformação com a morte dele. Quanto mais reconhecermos agora Cristo e seu poder, sofrermos e morrermos com ele, tanto mais também viveremos, reinaremos e seremos glorificados com ele na eternidade (cf. Rm 8.17-18).
Por isso não desanime se você não encontrar a felicidade imediatamente, se o seu anseio por Deus não for satisfeito do modo como você imagina e se você até precisar exclamar: “As trevas são a minha única companhia” (Sl 88.18b), porque o poder da ressurreição de Cristo levará você para a comunhão com os sofrimentos dele, na qual você perguntará: “Como?”, e se sentirá obrigado a se lamentar com a noiva no Cântico dos Cânticos:
“Eu abri, mas o meu amado se fora; o meu amado já havia partido. Quase desmaiei de tristeza! Procurei-o, mas não o encontrei. Eu o chamei, mas ele não respondeu. As sentinelas me encontraram enquanto faziam a ronda na cidade. Bateram-me, feriram-me; e tomaram o meu manto, as sentinelas dos muros! Ó mulheres de Jerusalém, eu as faço jurar: se encontrarem o meu amado, que dirão a ele? Digam-lhe que estou doente de amor” (Ct 5.6-8).
Caso você tenha aberto a porta ao seu amado e, afinal, só quiser agir segundo sua Palavra, mas parece não conseguir encontrá-lo e então, em vez disso, as sentinelas no muro baterem em você, lembre-se dessa oração do apóstolo Paulo e seu profundo significado: “Quero conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma, alcançar a ressurreição dentre os mortos” (Fp 3.10-11).