Jesus no Alcorão

Esta série examina os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não-cristãos. Nesta edição, começaremos a examinar as alusões a Jesus no Alcorão.

Parte 5

Jesus no Alcorão

O Alcorão, que em árabe significa “recitação”, é a escritura religiosa central do islã. Os muçulmanos acreditam que Deus tenha revelado o Alcorão a Maomé verbalmente em língua árabe por intermédio do anjo Gabriel. Teria feito isso passo a passo ao longo de um período de 23 anos, começando em 609 d.C., quando Maomé tinha 40 anos de idade, até sua morte no ano de 632. Ele contém 114 capítulos (suwar em árabe; singular surah), organizados aproximadamente segundo a extensão dos capítulos, do mais extenso ao mais curto. Esses capítulos são divididos em versículos (ayat em árabe; singular ayaah).

O corpo do Alcorão, redigido numa forma primitiva do árabe clássico, contém muitas narrativas sobre personagens bíblicos, como Adão, Moisés e Jesus. Em alguns casos, as histórias corânicas são paráfrases das escrituras bíblicas, mas em outros casos sofreram influência de textos rabínicos pós-bíblicos ou de apócrifos cristãos.

O Alcorão recorreu para sua narrativa a textos tanto bíblicos como também apócrifos.

Segundo o Alcorão, Jesus é um profeta conhecido. Ele é mencionado em 93 versículos, recebendo diversos títulos. O Alcorão contém muita matéria escrita sobre ele e que será comentada neste artigo e nos próximos.

A história do nascimento de Jesus

Nos evangelhos, os eventos em torno do nascimento de Jesus constituem uma introdução da narrativa da sua vida, de suas doutrinas, milagres e paixão. No Alcorão, por sua vez, a narrativa se concentra principalmente nos eventos que acompanham o nascimento de Jesus.

Segundo o Alcorão, Maria teria se retraído duas vezes – antes e depois da gravidez. Na primeira ocasião ela o fez indo a um lugar no Oriente, causando assim uma separação entre ela e sua família. É possível que a narrativa corânica dessa separação remonte à influência de textos apócrifos, podendo ter tido o propósito de proteger Maria contra a acusação de fornicação, uma vez que, se ela se retraiu e nenhum homem teve acesso a ela, sua gravidez precisa necessariamente ser sobrenatural.

Segundo o Alcorão, Maria se isolou da sua família, mas um anjo surpreendentemente lhe apareceu na figura de um jovem perfeito. Ela conversou com ele à maneira dos mortais e buscou a proteção de Deus, dizendo ao anjo: “Se você teme a Deus”. – Uma declaração simples que parece indicar o temor que Maria sentiu quando aquele jovem apareceu diante dela de forma tão súbita e inconveniente.

O Alcorão defende de forma indubitável a natureza sobrenatural da sua concepção, que não teria sido resultado de relações sexuais nem dentro nem fora do casamento. Nele, Maria testifica: “Nenhum homem me tocou e não sou prostituta”. Ainda segundo o Alcorão, também o lado divino confirma que Maria é aquela que “resguardou sua vergonha. Aí a inspiramos com o nosso Espírito e fizemos dela e do seu filho um sinal para os habitantes dos mundos” (Surata 21.91).

Os judeus, por seu lado, são acusados de heresia porque com sua acusação de fornicação contaminaram a reputação de Maria. Maria chega ao término da sua gravidez e luta com as dores do parto em algum lugar no deserto (Surata 19.16-32).

A história do nascimento de Jesus: influências bíblicas

Tudo indica que elementos da narrativa bíblica sobre Hagar e Ismael influenciaram os redatores corânicos das dores de parto de Maria no deserto. Hagar vagou pelo deserto com seu filho e, quando pressentiu a morte por fome e sede, deixou-o embaixo de um arbusto. “... Deus ouviu o choro do menino... Então Deus lhe abriu os olhos, e ela viu uma fonte... e deu de beber ao menino” (Gn 21.14-19).

É possível que o autor do Alcorão também conhecesse a narrativa da primeira fuga de Hagar para o deserto (Gn 16.6-15), quando um anjo de Deus a encontrou ao lado de uma fonte de água e se dirigiu a ela. A principal diferença é que, naquele caso, Hagar estava grávida. Embora não esteja bem claro quando exatamente ela deu à luz, o nascimento é mencionado no fim da narrativa.

A história do nascimento de Jesus: influências apócrifas

As histórias apócrifas contêm elementos que possivelmente se reflitam na narrativa do Alcorão. Isso inclui a de uma árvore à qual o infante Jesus ordenou que se abaixasse para que sua mãe pudesse comer dos seus frutos, e à qual depois ele ordenou que se erguesse, fazendo com que das suas raízes brotasse uma fonte de água para saciar a sua sede e a de sua mãe (Pseudo-Mateus 20).

Segundo a história muçulmana, Maria teria dado à luz ao pé de uma palmeira que a supriu de tâmaras para alimentá-la. Deus saciou sua sede fazendo brotar uma fonte de água por baixo dos seus pés. Jesus também falava ainda no berço e se apresentou (na presença dos que acusavam sua mãe de fornicação) como servo de Deus, de quem ele teria recebido a profecia e a bênção. Segundo o Alcorão, ele foi instruído a passar a vida toda orando, cumprindo deveres “islâmicos” e respeitando sua mãe.

Além disso, a faceta apócrifa também se reflete em outro versículo do Alcorão: “E fizemos do filho de Maria e de sua mãe um sinal e lhes proporcionamos refúgio em uma colina com chão firme e água de fonte” (Surata 23.50). Assim, o relato do Alcorão permite reconhecer os elementos essenciais citados no texto apócrifo de Pseudo-Mateus: o repouso diante do calor, o milagre, o alimento e a fonte de água corrente.

A principal diferença entre os relatos é que Pseudo-Mateus descreve um evento que teria ocorrido durante a viagem da família para o Egito, enquanto o Alcorão liga a ocorrência ao momento do parto.

Conclusão

Tudo isso indica que o Alcorão recorreu para sua narrativa a textos tanto bíblicos como também apócrifos. Ainda assim, faltam detalhes fundamentais, como a própria concepção, a duração da gravidez, o domicílio de Maria naquele período, bem como o modo e o local do parto.

Makram Mesherky

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Agosto 2020

Confira