Jesus e os autores da Antiguidade

Esta série examinará os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não-cristãos. A série abrangerá menções de Jesus na literatura pagã, referências no Talmude, o Toledot Yeshu (uma anti-história hostil da vida de Jesus), na história do Alcorão e nos debates pós-alcorânicos sobre Jesus.

Parte 1

Jesus e os autores da Antiguidade

Nesta edição apresentaremos alguns textos extrabíblicos independentes que reforçam o Novo Testamento, sua precisão e sua confiabilidade como testemunho literário histórico. O objetivo é pesquisar detalhadamente os relatos extrabíblicos sobre a existência, a vida, os ensinos e os seguidores de Jesus.

Flávio Josefo (37-100 d.C.)

Josefo foi um historiador judeu do primeiro século que originalmente desempenhou um importante papel na resistência contra os romanos na Galileia, mas que mais tarde tornou-se um historiador pró-romano que escreveu sobre aquilo que sucedeu aos judeus.

Em seu livro Antiguidades Judaicas encontram-se dois apontamentos muito importantes sobre Jesus fora da Bíblia. Um dos dois textos descreve a condenação de Tiago pelo sinédrio judeu. Josefo diz que esse Tiago era “irmão de Jesus, chamado Cristo”.1 Isso coincide com Gálatas 1.19, onde Tiago é denominado “irmão do Senhor”. Poucos foram os estudiosos que questionaram a efetiva autoria de Josefo para esses textos.

Adicionalmente a essa breve referência, existe ainda uma outra muito especial. Ela é conhecida como Testimonium Flavianum [“Testemunho de Flávio”] e tem o seguinte conteúdo:

“Nesse mesmo tempo, apareceu JESUS, que era um homem sábio, se é que podemos considerá-lo simplesmente um homem, tão admiráveis eram as suas obras. [...] Ele era o CRISTO. [...] Os que o haviam amado durante a sua vida não o abandonaram depois da morte. Ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no terceiro dia [...] É dele que os cristãos, os quais vemos ainda hoje, tiraram o seu nome.”2

Esta é uma passagem controvertida, sobre a qual muitos estudiosos supõem hoje que, embora seu cerne provenha de Josefo, ela tenha mais tarde sido editada por um cristão.

Assim, por exemplo, parece autêntica a declaração de que Jesus foi um homem sábio, mas o restante parece uma tentativa de exaltar o Senhor Jesus, quando está escrito: “... se é que podemos considerá-lo simplesmente um homem”. Isto desperta ceticismo porque é improvável um escritor judeu-romano sugerir que Jesus seja mais do que um homem.

Também é difícil admitir como parte do texto original a asseveração de que Jesus tenha sido o Cristo. Especialmente porque, no trecho referente a Tiago, ele denominou Jesus de o “chamado” Cristo.

Uma outra declaração controvertida para ter sido escrita por um não-cristão é a afirmativa de que Jesus teria despertado de volta à vida no terceiro dia e que teria aparecido aos seus discípulos.

No entanto, mesmo se excluirmos as partes duvidosas dessa passagem, ainda restarão muitas informações sobre o Jesus bíblico. A imagem que se forma encaixa-se bem no registro bíblico.

Josefo diz que Jesus, “chamado Cristo”, foi um homem sábio que realizou feitos surpreendentes. Foi crucificado sob Pôncio Pilatos, mas seus adeptos perseveraram no discipulado e tornaram-se conhecidos como cristãos.

Em 1971, Pines publicou um estudo sobre uma versão árabe dessa controvertida passagem, originária do século 10. O trecho tem o seguinte enunciado: “Naquele tempo havia um homem sábio chamado Jesus. Seu procedimento era bom e [ele] era conhecido por sua virtude. E muitas pessoas dentre os judeus e das outras nações tornaram-se seus seguidores. Pilatos o condenou a ser crucificado e a morrer. Mas aqueles que se tornaram seus discípulos não abriram mão do seu discipulado. Eles relataram que ele lhes teria aparecido três dias depois da sua crucificação e que estaria vivo. Tendo isso em vista, ele talvez tenha sido o Messias, a respeito do qual os profetas relatavam maravilhas”.

A maior parte dos elementos duvidosos que muitos pesquisadores consideram alterações cristãs está ausente aqui. E de fato parece plausível que nenhum dos argumentos contra a autoria de Josefo se aplique também ao texto árabe, até porque este último teria tido menos oportunidade de ser editado pela igreja.

Mesmo se tiver ocorrido uma edição cristã, o núcleo do texto (tal como também na tradução árabe) nos fornece fatos essenciais e críveis correspondentes ao Jesus histórico.

Cornélio Tácito (56-118 d.C.)

O historiador romano Tácito escreveu um relato sobre a decisão do imperador Nero de culpar os cristãos pelo devastador incêndio que destruiu a cidade de Roma em 64 d.C.:

“... Nero atribuiu a culpa a outros e aplicou as punições mais seletas àquelas pessoas que o povo detestava por seus atos vergonhosos, e que chamavam de cristãos. Cristo, do qual provém seu nome, fora executado durante o governo de Tibério pelo procurador Pôncio Pilatos. Por um breve tempo, aquele infame delírio foi reprimido por causa disso, mas ele irrompeu novamente, não somente na Judeia, de onde a desgraça provinha, mas também na capital...” (Tácito, Anais 15.44).

Com sua entonação marcadamente anticristã, Tácito diz que os cristãos derivavam seu nome de alguém chamado Cristo. Esse Cristo fora executado, o que provavelmente se refere à crucificação, método cruel de execução dos romanos. Segundo Tácito, aquilo ocorreu durante o reinado de Tibério e por sentença de Pôncio Pilatos. Esses detalhes confirmam inequivocamente o relato dos evangelhos sobre a morte de Jesus.

Além disso, é preciso observar a vaga declaração de Tácito de que um “infame delírio” fora temporariamente reprimido, mas depois irrompeu novamente – não só na Judeia, mas também em Roma. Escritas cerca de oitenta anos depois do citado evento, essas palavras poderiam – segundo disse um historiador – “ser um testemunho indireto [...] da convicção da igreja primitiva” de que “o Cristo crucificado havia ressuscitado do túmulo”. Segundo o historiador Edwin Yamauchi, essa passagem é então “provavelmente a mais importante referência a Jesus fora do Novo Testamento”.

Plínio, o Jovem (61-113 d.C.)

Plínio foi governador romano na Bitínia, Ásia Menor. Em uma de suas cartas, datada de 112 d.C., ele escreveu ao imperador Trajano pedindo instruções sobre como lidar com aqueles acusados de serem cristãos. Plínio indaga a respeito do procedimento jurídico e consulta o imperador pelo fato de um número crescente de pessoas estar sendo acusado de professar a fé cristã.

Em sua carta, Plínio fornece algumas informações colhidas sobre os tais cristãos: “Além disso, afirmaram que toda a sua culpa ou erro teria consistido em se reunirem em determinado dia antes do nascer do sol para apresentar a Cristo um canto responsivo, como se ele fosse um deus, e de por juramento não se comprometer com algum crime, mas sim de não cometer furtos, assaltos ou adultério, de não quebrar promessas e de não negar dívidas cobradas. Depois disso, eles normalmente teriam se dispersado para depois se reunirem novamente, tomar uma refeição comum e inofensiva” (Plínio, Cartas X.96).

Essa importante fonte de informações fornece noções interessantes sobre Jesus e as convicções e práticas dos cristãos primitivos. Segundo o testemunho de Plínio, os cristãos reuniam-se regularmente em determinado dia para adoração dirigida a Cristo. Esse ato demonstra sua fé na divindade de Cristo. A expressão que Plínio adota ao dizer que se apresentava a Cristo um canto responsivo “como se ele fosse um deus” parece apontar para o fato de que os cristãos adoravam a pessoa de Jesus que vivera na terra como Deus. Nesse caso, isso coincidiria com a doutrina cristã de que Jesus era tanto Deus como homem.

A carta de Plínio aponta para a fé dos cristãos primitivos na pessoa de Jesus e também oferece uma avaliação das suas doutrinas. Esse escritor pagão diz que os cristãos se comprometiam por juramento a não quebrar nenhuma norma moral. Eles se comprometiam a abster-se de quaisquer atos malignos, rejeitando roubo, adultério e quebra da palavra. É bem evidente a grande semelhança desses princípios éticos com a doutrina de Jesus.

Adicionalmente aos encontros regulares de culto ao amanhecer, provavelmente da eucaristia (comunhão), Plínio faz menção de mais um encontro ao longo do dia em que havia o costume de uma refeição comunitária. Essa refeição é classificada de “comum e inofensiva”, e parece ter sido a ágape (a festa do amor). Trata-se de um retrato muito particular dos ensinos de Jesus e dos seus seguidores.

Luciano de Samósata (c. 115-200 d.C.)

Luciano foi um satírico grego do segundo século. Em tom sarcástico, ele descreve em uma de suas obras os cristãos primitivos como segue:

“Fato é que ainda hoje os cristianos oferecem veneração divina ao conhecido mágico crucificado na Palestina por ter introduzido esses novos mistérios no mundo. [...] Além disso, seu principal legislador instituiu a opinião de que todos seriam irmãos entre si assim que se convertessem, ou seja, negassem os deuses gregos e confessassem sua adoração àquele sofista crucificado e vivessem de acordo com suas instruções” (Luciano, A morte do Peregrino 11.13).

Luciano diz que os cristãos veneravam um mágico que havia introduzido novos mistérios no mundo. E, embora os adeptos desse homem claramente o estimassem muito, ele enfureceu com seus ensinos muitos dos seus contemporâneos, a ponto de ser crucificado por isso.

Embora Luciano se refira de forma anônima ao fundador do grupo cristão, é evidente que ele fala de Jesus. Segundo Luciano, ele ensinava que, a partir do momento da sua conversão, todos os homens seriam irmãos. Então precisavam negar os deuses gregos, adorar o crucificado e viver de acordo com seus ensinos. Embora Luciano não diga explicitamente, a negação de outros deuses pelos cristãos em paralelo com sua adoração de Jesus indica a fé de que ele era mais do que um homem. Como negavam outros deuses para adorá-lo, fica evidente sua convicção de que Jesus fosse um deus maior.

Conclusão

Ainda existem outros escritores antigos não-cristãos mencionando Jesus e os cristãos primitivos. Aqui examinamos apenas as fontes mais evidentes que nos transmitem algumas noções.

Tanto Josefo como Luciano mostram que Jesus era considerado sábio. Plínio e Luciano dão a entender que ele era um mestre venerado, e Josefo mostra que ele operou milagres. A crucificação é mencionada por Luciano, Josefo e Tácito, e os dois últimos dizem que aquilo ocorreu sob Pôncio Pilatos.

Além disso, existem possíveis alusões à fé cristã na ressurreição de Jesus tanto em Tácito como também em Josefo. Este último afirma ainda que os seguidores de Jesus criam que ele fosse o Messias. E segundo Plínio e Luciano, os cristãos veneravam Jesus como Deus.

Essas importantes fontes não-cristãs da Antiguidade confirmam de fato que os relatos dos evangelhos canônicos a respeito de Jesus são historicamente confiáveis.

As próximas partes desta série exporão as ideias sobre Jesus no judaísmo e, mais tarde, no islã.

Makram Mesherky

Notas

  1. Flávio Josefo, “Antiguidades Judaicas”, in: História dos Hebreus (Rio de Janeiro: CPAD, 1990), p. 925.
  2. Ibid., p. 832.

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Fevereiro 2020

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