Uma negligência de detalhes textuais
Frequentemente ouvimos declarações como esta a respeito do livro do Apocalipse: “O Apocalipse é um livro simbólico e precisa, portanto, ser interpretado figuradamente. Há muita coisa que não podemos entender de forma concreta ou literal, mas que é apenas um embelezamento do texto”.
Para que possamos compreender a revelação de Deus, é imprescindível que se dê ouvidos a toda a sua Palavra. Essa é a nossa luta. Os pensamentos aqui apresentados dizem respeito à hermenêutica, o entendimento da linguagem e sua interpretação. De fato, os diferentes conceitos de hermenêutica é que são a causa principal dos diversos sistemas escatológicos. John MacArthur escreve:
“Quem quer que participe desse debate concorda que uma interpretação literal do Antigo Testamento naturalmente resulta no pré-milenarismo”.[1]
Embora a teologia reformada tenha se distanciado da alegoria e retornado a uma compreensão literal dos textos, ela ainda se apoiava em Agostinho, que era influenciado pela filosofia grega, fazia uso de princípios hermenêuticos de forma inconsistente e defendia um “modelo não judaico e não carnal”.
É interessante observar que uma espiritualização de declarações bíblicas sempre é acompanhada da repressão de detalhes bíblicos. Enquanto, o próprio Jesus, por exemplo, em Mateus 5.18 via as menores partes de uma letra como elementos significativos do texto inspirado, William Hendriksen, em sua interpretação de Apocalipse, apresenta uma perspectiva bem diferente. Ali, ele faz com que algumas interpretações do bom samaritano se tornem uma caricatura ridícula, para então interpretar o livro do Apocalipse apenas de forma geral e sob a omissão de muitos detalhes:
“O livro de Apocalipse é composto por uma série de figuras. Essas figuras estão em movimento. [...] Agora surge a pergunta: O que essas figuras significam? [...]
“Você com certeza se lembra da parábola do bom samaritano (Lc 10.30-37). Existem várias pessoas que explicam essa história bonita da seguinte forma: o homem que desce de Jerusalém a Jericó representa Adão [...] quando volta seu desejo para a terra, ele cai nas mãos de bandidos [...] Esses bandidos o despem de sua vestimenta original de justiça, batem nele e o abandonam ferido e quase morto em seus pecados e transgressões. O sacerdote e o levita representam a Lei [...] Eles não podem salvar o pecador, são incapazes de ajudá-lo. Mas o bom samaritano, Jesus Cristo, viaja pelo mesmo caminho. Ele se compadece do pecador, trata as suas feridas e o unge com o óleo do Espírito Santo e com vinho, o sangue de seus sofrimentos. Depois disso, ele o coloca sobre seu próprio animal, de acordo com o valor de sua própria justiça. Ele o leva para a hospedaria da igreja. No dia seguinte, ele o deixa aos cuidados do hospedeiro, pelo preço de dois denários, isto é, a Palavra e os sacramentos [...] Então, o samaritano prossegue sua viagem, mas promete voltar. [...] É absolutamente errado fazer a seguinte pergunta: o que significa o homem que caiu nas mãos dos bandidos? O que significam os bandidos, o sacerdote, o levita, o bom samaritano, o vinho, o óleo, o animal, a hospedaria e os dois denários? Nenhuma dessas coisas possui um significado espiritual mais profundo. Naturalmente, todos os detalhes dessa parábola possuem seu devido valor, fazem parte da parábola. Mas você não deve dar uma importância especial a todos os detalhes, pois eles servem apenas para complementar a parábola [...] O que devemos nos perguntar é: qual é o significado da parábola como um todo? Cada parábola ensina uma única lição central. [...] Da mesma forma, devemos interpretar os símbolos de Apocalipse. Não podemos dar uma importância demasiada aos detalhes. Precisamos, primeiramente, nos perguntar: o que a figura que acabamos de observar significa em sua totalidade? [...] Por exemplo, em relação à nova Jerusalém, o pensamento central é a perfeita comunhão com Deus. Os detalhes, o muro, os fundamentos, os portões, o rio, entre outros, descrevem o caráter glorioso dessa comunhão. Há símbolos que descrevem o início ou o fim da nova era de redenção. [...]
“Assim, por exemplo, a mulher resplandecendo em luz, que dá à luz um filho, representa a igreja quando dá à luz a Cristo, isto é, sua natureza humana (Ap 12.1-5) [...] Mas existem outros símbolos, aqueles que se situam entre a primeira e a segunda vinda de Cristo. Pensamos, por exemplo, nos castiçais, nos selos, nas trombetas, nas taças, etc. Será que esses símbolos representam eventos, datas ou pessoas específicos e especiais da história? Se fosse assim, teríamos que admitir que não conseguimos interpretá-los, pois existem milhares de datas e eventos e pessoas na história [...] O resultado disso seria uma confusão total [...] Por isso, temos que encontrar uma regra de interpretação diferente. [...]
“Chegamos à conclusão de que os selos, as trombetas, as taças e outras figuras semelhantes não fazem referência a eventos ou detalhes específicos da história, mas a princípios que agem ao longo de toda a história. [...] Quando vemos os símbolos dessa forma, englobando séries de eventos inteiros e completos, do início ao fim dos tempos, então eles adquirem um significado [...] Por exemplo, quando é relatado que uma grande montanha em chamas cai no mar. Se isso se aplica a todas as catástrofes que ocorrem no mar, ao longo dos séculos, então conseguimos entender o enunciado”.[2]
Por meio do estudo das parábolas de Jesus, Hendriksen chega à posição de que seus detalhes não possuem nenhum significado espiritual mais profundo e podem ser ignorados. É verdade que muitas vezes as parábolas possuem apenas um ponto principal ou uma ênfase, já que não são alegorias que podem ser interpretadas teologicamente em todos os detalhes. Entretanto, apesar de certamente não podermos interpretar espiritualmente cada parábola em seus detalhes, isso certamente é possível no caso do bom samaritano. O professor Jacob Thiessen explica:
“Certamente pode-se alertar, com todo direito, sobre o ‘outro extremo’, que parte do pressuposto de que ‘nenhum detalhe possui um significado figurativo’. [...] Do meu ponto de vista, essa discussão demonstra que não podemos nos basear muito em ‘um ponto’”.[3]
Na medida em que ignoram detalhes, os intérpretes amilenaristas encobrem verdades e colocam sobre elas outros conceitos que mal conseguem embasar nas Escrituras. Eles usam toda sua habilidade teológica para constatar que todas as coisas definidas são indefinidas e não possuem nenhum significado bíblico real. Apocalipse se torna uma luta genérica entre o bem e o mal, como tem ocorrido ao longo de todos os tempos. O preconceito – ou parcialidade – e ignorar argumentos que não são bem-vindos atinge aqui um ápice. Nessa altura da discussão, contudo, qualquer leitor da Bíblia pode perguntar a si mesmo como tem lidado com o texto. Será que talvez, em nossa própria vida, nós ignoramos a voz de Deus em meio a circunstâncias incômodas?
O professor dr. Erich Mauerhofer escreve:
“No estudo cuidadoso de todas as passagens referentes ao milênio, existem referências tão claras a circunstâncias geográficas, políticas, topológicas, biológicas e zoológicas, que uma espiritualização de todas essas profecias bíblicas ou uma ‘transplantação’ delas para o novo céu e a nova terra seria inimaginável e apenas um subterfúgio. Nenhuma confissão eclesiástica, nem tampouco a perspectiva deficiente dos reformadores, nem a interpretação de Agostinho é determinante, mas, acima de tudo, a Escritura Sagrada. [...] Na minha convicção e através de um estudo bíblico minucioso, o apego ao pré-milenarismo é a única doutrina justificavelmente bíblica”.[4]
Notas
- John MacArthur, Kommentare zur Offenbarung (Dübendorf: Mitternachtsruf, 2010), p. 358.
- William Hendriksen, Más que Vencedores (Grand Rapids, MI: Libros Desafio, 2005).
- Jacob Thiessen, Hermeneutik der Bibel (Hammerbrücke: jota Publikationen, 2009), p. 214-215.
- Erich Mauerhofer, Biblische Dogmatik, vol. 2 (Nürnberg: VTR, 2011), p. 932ss.