20 Razões para Não Usar o Novo Testamento para Reinterpretar o Antigo Testamento

Muitos acreditam que o Novo Testamento reinterpreta as promessas e revelações do Antigo Testamento. Neste artigo, vinte razões são apresentadas para mostrar por que isso não deve ser feito.

Introdução

Parece ser quase um axioma na interpretação evangélica contemporânea da Bíblia que o Novo Testamento (NT) deve ter permissão para reinterpretar o Antigo Testamento (AT). Essa crença na prioridade interpretativa do NT sobre o AT é aceita como uma “verdade recebida” por um grande número de estudiosos e estudantes evangélicos hoje em dia. Mas há corolários que são frequentemente inexplorados ou mal considerados.

Será que Deus, em tempos passados, falou aos homens em linguagem simbólica para que nós, hoje, pudéssemos descobrir o que ele realmente quis dizer? Isso não implica fortemente que o AT não se destinava realmente a eles, mas a nós? A lista abaixo vem de uma lista mais longa com quarenta razões por que um estudante da Bíblia não deveria adotar a tática comum de ler o NT no AT.

Vinte Razões

1. Nenhum Testamento nos instrui a reinterpretar o AT pelo NT. Por isso, nós nos aventuramos em águas incertas quando permitimos isso. Nenhum escritor apostólico sentiu ser necessário colocar em nossas mãos essa chave hermenêutica, a qual eles supostamente usaram quando escreveram o NT.

2. Uma vez que o AT era a Bíblia dos primeiros cristãos, isso significaria que ninguém poderia ter certeza de ter interpretado corretamente o AT até que eles tivessem o NT. Em muitos casos, esse déficit duraria por uns bons três séculos depois da primeira vinda de Jesus Cristo.

3. Se o AT precisa de uma reinterpretação porque muitos de seus elementos (p. ex., Israel, terra, rei, trono, sacerdócio, templo, Jerusalém, Sião etc.) na verdade se referem simbolicamente a Jesus e à igreja do NT, então esses “símbolos” e “tipos” do AT precisam ser vistos pelo que são no NT. Mas o NT nunca identifica claramente as realidades e antítipos para os quais se diz que esses elementos do AT apontam.

4. Seria necessário que o Senhor Jesus tivesse usado um conjunto totalmente novo de regras hermenêuticas em, por exemplo, Lucas 24.44; regras que não seriam acessíveis até a chegada do NT completo, e que até hoje não são totalmente compreendidas. Estas precisariam incluir regras para cada “gênero”, o que não teria sido aparente para qualquer um que interpretasse o AT em seus próprios termos.

5. Se o AT não pode ser interpretado sem o NT, então o que ele diz por conta própria não é confiável, pois poderia muito bem ser um “tipo”, ou até mesmo parte de um obtuso estado redentor de coisas que seria aludido e reinterpretado no NT.

6. Dessa forma, isso significaria que as predições aparentemente claras sobre “aquele que estava para vir” no AT não poderiam ser confiáveis para apresentar nada mais do que uma imagem tipológica/simbólica, a qual precisaria ser decifrada pelo NT. As promessas de Deus mais claramente expressas no AT seriam vulneráveis a eventualmente serem transformadas em tipos e sombras.

7. Isso daria uma desculpa a qualquer um (p. ex., os escribas em Jo 5.35-47) para não aceitar as reivindicações de Jesus com base em profecias do AT – uma vez que essas profecias exigiam o NT para as reinterpretar. Portanto, a repreensão do Senhor aos escribas no contexto teria sido ilógica.

8. Qualquer rejeição disso, com uma afirmação correspondente de que as profecias do AT sobre Cristo significam aquilo que dizem, criaria o estranho paradoxo hermenêutico de encontrar um testemunho claro e evidente de Cristo no AT, ao mesmo tempo em que se afirma que o AT não pode ser interpretado sem o NT. Um indivíduo não poderia manter essa posição sem exigir que toda essa premissa seja revista.

9. Decifrar esses tipos e sombras do AT não é uma tarefa fácil, especialmente porque o NT não fornece nenhuma ajuda específica nesse ponto. Os estudiosos do NT nunca chegaram a um consenso sobre essas questões, muito menos “as pessoas comuns”, às quais o NT foi escrito.

10. Se o autor do AT não quer dizer aquilo que aparenta dizer, mas, na realidade, está falando em tipos e sombras, as quais ele aparentemente revelará depois, que garantia existe de que ele não está ainda falando em tipos e sombras no NT? Esse problema especialmente se intensifica porque muitos lugares no NT ainda são mencionados como tipos e sombras (p. ex., o templo em 2Ts 2 e Ap 11).

11. Essa visão impõe uma “unidade” na Bíblia, a qual é apenas simbólica e metafórica. Sendo assim, entender a Bíblia em um sentido normal e claro deveria destruir qualquer unidade entre os Testamentos. O que queremos dizer com “sentido normal e claro” é o sentido em que os estudiosos que defendem essa posição assumem que seus leitores adotarão com eles, o qual nós identificaríamos como “literal”.

12. Logo, se um incrédulo possuísse apenas o AT, ele não poderia ser acusado de descrença, uma vez que o instrumento para a crença (o NT) não estava ao seu alcance.

13. Tudo isso corrói qualquer reivindicação de clareza das Escrituras. No mínimo, torna este um atributo possuído apenas pelo NT, e apenas uma lógica tortuosa poderia igualar a palavra “perspicuidade” a tais abordagens simbólicas e tipológicas indiscriminadas.

14. Um corolário disso é que a autoridade do AT para falar em sua própria voz é severamente debilitada.

15. Como consequência do que foi exposto acima, o status do AT como “Palavra de Deus” seria logicamente inferior ao status do NT. O resultado é que o NT (o qual se refere ao AT como a “Palavra de Deus”) é mais inspirado que o AT, produzindo o resultado indesejado de dois níveis de inspiração.

16. Isso efetivamente coloca de lado a importância hermenêutica do uso intertextual inspirado de textos anteriores do AT por escritores veterotestamentários posteriores (p. ex., alianças anteriores são citadas e entendidas literalmente em Sl 89.33-37; 105.6-12; 106.30-31; 132.11-12; Jr 33.17-18,20-22,25-26; Ez 37.14,21-26). A palavra de Deus é sempre aceita pelo que ela é (p. ex., 2Rs 1.3-4,16-17; 5.10,14; Dn 9.2,13). Isso cria uma expectativa de que os compromissos das alianças encontrarão “cumprimento” de formas esperadas, e certamente não de maneiras completamente imprevisíveis.

17. Isso tornaria a formulação específica das palavras das promessas das alianças – as quais Deus fez para o benefício do homem – enganosa e, portanto, não confiável como testemunho das intenções divinas. Abre-se então um precedente ruim para as pessoas fazerem alianças e não cumprirem com aquilo que realmente prometeram fazer (p. ex., Jr 34.18; cf. 33.15-26 e 35.13-16). Isso encoraja o nominalismo teológico, no qual a promessa de Deus pode ser alterada simplesmente porque ele diz que pode.

18. O caráter de qualquer ser, seja homem ou anjo, mas especialmente Deus, está vinculado às palavras acordadas em uma aliança (cf. Jr 33.14,24-26; 34.18). Sendo assim, Deus não poderia fazer tais alianças e então cumpri-las de uma forma totalmente alheia à formulação clara das promessas que fez; pelo menos não sem que isso testifique contra seu próprio caráter santo e verdadeiro. Por isso, nem mesmo Deus poderia “expandir” suas promessas de uma forma que levaria literalmente milhares de santos a serem enganados por elas.

19. Nunca se poderia confiar que um Deus que “expandisse” suas promessas de tal maneira inesperada não “transformasse” suas promessas a nós no evangelho. Assim, poderia haver uma diferença entre a mensagem do evangelho conforme a pregamos (confiando na linguagem de, digamos, Jo 3.16; 5.24; Rm 3.23-26, por si só), e as intenções verdadeiras de Deus quando ele eventualmente “cumprir” as promessas no evangelho. Uma vez que se pensa que ele fez isso no passado, é concebível que ele possa fazê-lo novamente no futuro. Será que as promessas à igreja serão “cumpridas” de formas totalmente inesperadas com um outro povo que não a igreja, sendo esta apenas uma sombra de uma realidade futura?

20. Por fim, não há uma consciência crítica de muitos dos problemas enumerados acima, porque essa consciência é fornecida pelos textos do AT e as palavras específicas desses textos. Mas, é claro, não é permitido que o AT tenha uma voz no mesmo nível com o que se presume que o texto do NT o faça significar. Apenas versículos que preservam a imagem teológica desejada têm a permissão de dizerem o que realmente dizem. Dessa forma, cria-se um ciclo vicioso do NT reinterpretando o AT.

Paul Martin Henebury é professor de teologia sistemática e apologética. É autor do blog “Dr. Reluctant”, um dos principais recursos online acerca da teologia dispensacionalista.

sumário Revista Chamada Fevereiro 2023

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