Ânimo Para o Amanhã: A Vida Cristã Sob Forte Oposição
O nosso Senhor diz: “Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo” (Jo 16.33).
A palavra que o Senhor Jesus usa em João 16.33 para “aflições” também pode ser traduzida por “tribulação”, “angústia”, “medo” ou “estar sob pressão”. E, quando fala de “mundo”, ele não pensa em algum pôr do sol inspirador nas Bahamas ou em uma montanha cheia de neve. Na verdade, trata-se da Criação caída e, principalmente, da humanidade em sua rebeldia contra Deus. Satanás é o Deus desta era.
Note-se, porém, que o Senhor Jesus não diz aos discípulos: “Neste mundo vocês possivelmente poderão ter aflições” ou “ocasionalmente poderão ocorrer aflições”. Não, ele anuncia aos seus discípulos bem claramente: em meio à humanidade alheia a Deus, vocês “terão aflições” (ou “viverão sob pressão”). Trata-se de algo inescapavelmente vinculado ao discipulado. Temos aqui o mesmo termo que o livro de Apocalipse aplica à grande tribulação. É algo que deveria nos prevenir contra toda falsa ingenuidade e tranquilidade, ainda que se creia no arrebatamento antes da tribulação.
Titanic e a situação atual
O naufrágio do Titanic até hoje mexe com as emoções. Numerosos livros foram escritos a respeito e produziram-se filmes sobre o tema. Nesse contexto também é possível citar a frase sarcástica “tudo sob controle no meio do naufrágio”. Aquele templo flutuante do entretenimento era considerado uma maravilha da tecnologia e se comentava que ele seria insubmersível. É claro que nas classes inferiores também havia gente pobre e miserável; também havia cristãos a bordo, e aquela noite de terror levou pessoas à fé em Jesus Cristo.
Posteriormente soube-se que, naquela noite fatídica, o Titanic ignorou numerosos alertas sobre icebergs, continuando a avançar a toda velocidade. Horas antes do desastre, o navio já recebera tais alertas. A nítida queda de temperatura do ar também permitia supor a proximidade de blocos de gelo. Apesar de tudo isso, as danças e os entretenimentos a bordo prosseguiram até ocorrer a catástrofe. Assim, o naufrágio do Titanic serve exemplarmente de advertência sobre o que pode acontecer quando sinais de alerta são ignorados só porque tudo anda bem, nos sentimos à vontade e queremos enxergar tudo cor-de-rosa.
Não pretendo aplicar esse exemplo à sociedade e às ocorrências no nosso mundo – ainda que isso se justificasse –, mas a nós como igreja de Jesus Cristo, que aqui no Ocidente goza de liberdade de crença. Aquilo que o Senhor Jesus previu para os seus discípulos como princípio básico do discipulado está bem claro. A liberdade de culto não é a situação normal da igreja de Jesus, mas uma exceção – ainda que no Ocidente ela já prevaleça há bastante tempo. No entanto, os sinais de que nossa liberdade de culto está diminuindo se concentram cada vez mais e precisamos nos preparar para uma intensa oposição, chegando à forte pressão e tribulação. Minha preocupação é que, como crentes, estejamos procedendo de modo similar àquelas pessoas no Titanic. Em vez de encarar a realidade, preferimos recalcar os fatos e nos convencer de que, de algum modo, tudo acabará indo bem.
O título deste artigo foi extraído do título de um livro publicado há cerca de quarenta anos e que há muito está esgotado. Na ocasião, Werner Stoy escreveu sobre o tema “Ânimo para o amanhã: os cristãos no Ocidente diante da perseguição”. Apesar de muitas configurações terem mudado desde então por causa do colapso da União Soviética, o conteúdo do livro permanece atual. Stoy destaca o quanto a Bíblia fala de sofrimento e tribulação e que esse tema tem sido amplamente ignorado tanto na dogmática (a doutrina da fé), como na eclesiologia (a doutrina da igreja) e também na ética (a conduta prática do cristão).
Temos ignorado excessivamente as enormes mudanças sociais das últimas décadas. Antigos valores cristãos foram repudiados conscientemente e a hostilidade contra a Bíblia e o evangelho aumentaram. De nossa parte, em vez de confessarmos a fé de modo cada vez mais evidente diante desses desdobramentos e termos afiado nosso perfil no discipulado, passamos a “pisar cautelosamente” e a nos adaptar cada vez mais à sociedade secular. É claro que continuam existindo pessoas e discípulos de forte consciência missionária. Mas a impressão geral se impõe. Eis alguns exemplos:
Sabemos que, naquela noite fatídica, o Titanic ignorou numerosos alertas sobre icebergs, continuando a avançar a toda velocidade.
Ainda há trinta anos, igrejas fiéis à Bíblia e seus membros divulgavam intensamente campanhas evangelísticas. Expunham-se cartazes que em parte já continham alguma mensagem inequívoca, distribuíam-se convites de casa em casa apesar de mesmo então muitas vezes já nos baterem a porta na cara. Na década de 1970, muitos crentes portavam botões e distintivos com alguma mensagem clara. Muitos carros tinham adesivos não só com um peixe mudo, mas também com alguma mensagem clara. Havia campanhas nas ruas e em hospitais, além de outras iniciativas por meio das quais a fé era publicamente anunciada. É verdade que hoje nem tudo é mais possível, mas me preocupa que nos deixemos cada vez mais reter pelos ventos contrários em vez de nos opormos corajosamente a esses desdobramentos.
Werner Stoy destaca em seu livro que os perseguidores sempre tentam inibir o trabalho missionário e a evangelização em público. Ele cita o exemplo da União Soviética dos seus tempos, onde a perseguição sempre aumentava diante de atividades missionárias e evangelísticas públicas, enquanto a fé particular em casa ou na igreja poderia até ser concedida. Receio que andamos promovendo tais desdobramentos justamente por meio da nossa retração pública e adaptação geral.
Sofrimento na Bíblia
O que o Novo Testamento nos ensina sobre sofrimento por amor a Cristo? Dentre os evangelhos, quero destacar aqui apenas o de João. É aquele em que o termo “mundo” é mais frequente: por um lado o mundo bom criado por Deus, mas predominantemente também como descrição da humanidade hostil a Deus. Logo no início, em João 1.5, lemos que as trevas tentaram prender e sufocar a luz, e o versículo 10 diz que o mundo não o reconheceu. João 7.7 explica que o mundo odeia Jesus porque ele testifica que suas obras são más. O Senhor também já mencionou esse ódio na origem em João 3.19-20. Por sua vez, em João 15.18-21 o Senhor revela que esse ódio atinge do mesmo modo os seus discípulos:
“Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou. Se vocês pertencessem ao mundo, ele os amaria como se fossem dele. Todavia, vocês não são do mundo, mas eu os escolhi, tirando-os do mundo; por isso o mundo os odeia. Lembrem-se das palavras que eu disse: Nenhum escravo é maior do que o seu senhor. Se me perseguiram, também perseguirão vocês. Se obedeceram à minha palavra, também obedecerão à de vocês. Tratarão assim vocês por causa do meu nome, pois não conhecem aquele que me enviou.”
Nosso Senhor resumiu no princípio do discipulado toda a nossa natureza egoísta, mas também esse ódio e essa hostilidade que podem avançar ao extremo: “Aquele que ama a sua vida a perderá; ao passo que aquele que odeia a sua vida neste mundo a conservará para a vida eterna” (Jo 12.25). Hoje já parece ser um problema para nós a perda de nossa boa reputação ou estima social por amor a Cristo.
Em Atos gostamos de ler que a igreja primitiva em Jerusalém gozava de favor diante de todo o povo (2.47). Esse favor, porém, não impediu a perseguição, que irrompeu pouco depois. Nesse contexto lemos algo em Atos 5.41 que se opõe não só à nossa natureza humana, mas também à nossa mentalidade atual: “Os apóstolos saíram do Sinédrio, alegres por terem sido considerados dignos de serem humilhados por causa do Nome”.
Externamente, a perseguição que irrompeu despedaçou a vida da igreja primitiva. Mas o vento contrário gelado fortaleceu ainda mais seu testemunho por Jesus. Atos 8.4 diz que os que foram dispersos pela perseguição anunciavam a Palavra de Deus. Também é interessante ver o que a igreja orou quando os apóstolos foram pressionados ainda antes da grande perseguição. Eles não pediram por mudança da situação, mas por disposição para o testemunho (At 4.29-31)! Enquanto Tiago entregou a vida pelo seu Senhor, Pedro foi libertado (At 12). A igreja também havia intercedido por isso. Mesmo assim, a pressão não despareceu.
No capítulo 9 inicia-se a história de Paulo. O primeiro recado que ele recebe depois da conversão foi de quanto teria de sofrer por Jesus (v. 16). Bem entendido, não se trata de sofrimentos em geral (que também podem ser pesados), mas de pressão, tribulação, medo e perseguição por amor de Jesus. Isso perpassa com intensidade variável todo o livro de Atos. Em Atos 14.22 lemos como Paulo e Barnabé fortaleceram as jovens igrejas em seu retorno da primeira viagem missionária: “Fortalecendo os discípulos e encorajando-os a permanecer na fé, dizendo: ‘É necessário que passemos por muitas tribulações para entrarmos no Reino de Deus’”.
Nas cartas do próprio apóstolo Paulo é recorrente o tema da perseguição e da tribulação, seja direta ou indireta. Romanos 8 é bem conhecido por causa da passagem dizendo que nada e ninguém pode nos separar do amor de Cristo – a exaltação da certeza da salvação. Ao ler aquilo, porém, facilmente perdemos de vista que todo esse trecho está num contexto de tribulação por amor a Cristo. No versículo 36, Paulo chega ao ponto de comparar a si e até a nós com ovelhas no matadouro.
A partir do versículo 16 de 2Coríntios 11, Paulo abre uma fenda na porta e nos permite ver um pouco dos seus múltiplos sofrimentos por Cristo – e não devemos esquecer ali que Paulo não escreveu essa carta no final da sua carreira, mas cerca de três anos antes da sua primeira prisão e 9 a 10 anos antes do fim da sua vida. E em Gálatas, uma de suas primeiras cartas, Paulo diz que traz em si as marcas de Cristo por causa da questão da circuncisão (Gl 6.17). Isso ele não diz num sentido místico, mas porque sofreu fisicamente, sendo torturado por causa do evangelho.
Nas suas três cartas da prisão, o apóstolo também aborda direta ou indiretamente a questão do sofrimento. Essas cartas são Efésios, Filipenses e Colossenses, escritas junto com a carta a Filemom. Seleciono apenas uma passagem de Filipenses: no capítulo 3, Paulo fala do conhecimento de Cristo, que excede a tudo mais e por causa do qual ele considera como esterco tudo o que antes fora importante para ele. Seu único interesse agora é ganhar a Cristo e ser achado nele: “Quero conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma, alcançar a ressurreição dentre os mortos. Não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, mas prossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo Jesus” (v. 10-12).
Será que também podemos dizer isso? Não de alguma forma “espiritualizada”, mas bem prática quanto à nossa disposição para sofrer. Uma observação sobre isso: o batismo é uma confissão. Todo aquele que se faz batizar é batizado na morte de Cristo antes de a nova vida chegar. Essa morte não se refere apenas à vida pecaminosa do passado, mas também a um sim para o sofrimento por amor a Cristo. Nossos atuais cursos de batismo geralmente ignoram isso. Nos países islâmicos, por exemplo, cada batizando saberá claramente o que aquilo significa para ele e que elevado preço poderá custar.
As duas cartas aos Tessalonicenses são dirigidas a uma jovem igreja sujeita a perseguição. Elas destacam o tema da pressão e da tribulação. A propósito, em ambas as cartas reconhecemos que uma igreja perseguida não está automaticamente salva da sedução. Na verdade, ambas podem caminhar juntas.
A última carta de Paulo é 2Timóteo, que ele escreveu pouco antes da sua execução. Nela ele volta a enfatizar várias vezes a importância da disposição para o sofrimento no discipulado e no ministério: “Portanto, não se envergonhe de testemunhar do Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro dele, mas suporte comigo os meus sofrimentos pelo evangelho, segundo o poder de Deus” (2Tm 1.8).
A perseguição também tem seu papel na carta aos Hebreus. Assim, os hebreus até aceitaram alegremente uma desapropriação forçada por motivo da fé e sofreram como prisioneiros (Hb 10.34). Por outro lado, também lemos que não devemos nos esquecer dos nossos irmãos na fé perseguidos: “Lembrem-se dos que estão na prisão, como se aprisionados com eles; dos que estão sendo maltratados, como se vocês mesmos estivessem sendo maltratados” (Hb 13.3). Costumamos negligenciar isso de forma repreensível. Na verdade, não deveria haver nenhum culto e nenhuma reunião de oração sem oração pela igreja perseguida. Nós muitas vezes nos limitamos a nos ocupar dos nossos problemas e “dodóis”.
A liberdade de culto não é a situação normal da igreja de Jesus, mas uma exceção – ainda que no Ocidente ela já prevaleça há bastante tempo. No entanto, os sinais de que nossa liberdade de culto está diminuindo se concentram cada vez mais e precisamos nos preparar para uma intensa oposição, chegando à forte pressão e tribulação.
O apóstolo Pedro também escreve para a igreja dispersa e perseguida. A segunda carta de Pedro, em especial, nos mostra novamente que a perseguição não nos guarda automaticamente da sedução. Pedro anima os crentes a perseverarem e a permanecerem firmes sob a pressão externa. Ele expõe as promessas vinculadas a isso e como o Senhor usa o sofrimento e a pressão para purificar e transformar seus filhos. Trata-se de dois temas completamente fora de foco para nós atualmente. Vivemos numa sociedade onde o importante é evitar o sofrimento em todos os sentidos. Além disso, pertencemos a um cristianismo que vê o discipulado como algo relacionado a um favorecimento espiritual com o objetivo de flutuar por esta vida em um balão espiritual de bem-estar.
Nenhum de nós deseja sofrer. Nós também podemos orar pedindo que o Senhor remova e amenize o sofrimento. Entretanto, o medo de sofrer que temos hoje em dia também nos faz temer o sofrimento quando este se deve ao evangelho, e passamos a não enxergar as muitas promessas que nos são dadas em relação ao sofrimento por Jesus. Cito aqui 1Pedro 1.6-9: “Nisso vocês exultam, ainda que agora, por um pouco de tempo, devam ser entristecidos por todo tipo de provação. Assim acontece para que fique comprovado que a fé que vocês têm, muito mais valiosa do que o ouro que perece, mesmo que refinado pelo fogo, é genuína e resultará em louvor, glória e honra, quando Jesus Cristo for revelado. Mesmo não o tendo visto, vocês o amam; e, apesar de não o verem agora, creem nele e exultam com alegria indizível e gloriosa, pois vocês estão alcançando o alvo da sua fé, a salvação das suas almas”.
Seja qual for a nossa noção do arrebatamento – se antes, no meio ou depois da tribulação – o livro de Apocalipse nos ensina que o testemunho por Jesus está ligado com o sofrimento. O último livro da Bíblia sempre foi uma fonte de consolo para a igreja perseguida. As sete cartas às igrejas mencionam o sofrimento de várias delas, incluindo o martírio. Apesar de todo o sofrimento e de todas as provações, Apocalipse insiste em dirigir o olhar para a grandeza de Deus. Como já mencionamos, mesmo o arrebatamento antes da tribulação – caso aconteça dessa forma – não deveria impedir nossa visão das tribulações por amor a Cristo.
Um irmão me relatou o seguinte sobre os cristãos na China: houve um avivamento no país antes da Revolução Cultural. Três pessoas, que sem dúvida o Senhor usou e que até hoje são grandes exemplos espirituais, enfatizaram muito fortemente o arrebatamento antes da tribulação. Quando então irrompeu a Revolução Cultural e começou a perseguição, alguns cristãos disseram que haviam sido enganados porque agora precisariam sofrer terrivelmente por causa da fé e que a grande tribulação também não poderia ser pior. Isso chegou ao ponto de vários apostatarem. A partir disso podemos aprender o quanto precisamos tomar cuidado para não enfatizar as coisas incorretamente ou até combinar a crença no arrebatamento pré-tribulação com a nossa relutância em sofrer.
Nossa atitude
Ao observarmos o aumento da oposição, caberá perguntar o que se deveria fazer hoje. Nosso Senhor nos prometeu que não precisaremos ter medo de interrogatórios e que ele nos instruirá sobre o que devemos dizer (Mc 13.11). Este é um lado. Do outro, Jesus fala no mesmo capítulo de tribulações, sedução e perseguição: “Por isso, fiquem atentos: avisei-os de tudo antecipadamente” (v. 23). Ele diz isso para não sermos surpreendidos despreparados, não importando quando se dará o arrebatamento. A primeira carta aos Tessalonicenses e a primeira carta de Pedro esclarecem que os tempos de tribulação não são eventos espirituais isolados. Por isso convém nos prepararmos adequadamente para tais situações.
Precisamos fazer hoje aquilo que na perseguição não será mais possível. Esse é o incentivo que Werner Stoy dá no seu livro. Deveríamos aproveitar bem mais a liberdade de evangelização, quer pessoalmente ou pela igreja. Nossa liberdade de fé deveria ter acelerado essa missão, mas infelizmente ocorreu o contrário. Tornamo-nos inertes e acomodados. É possível que ainda venhamos a nos arrepender amargamente disso. O mesmo aplica-se a missões mundiais. A igreja perseguida não tem como enviar e apoiar missionários, e seus recursos financeiros são muito limitados. Nós temos todas as possibilidades para isso, mas é tão comum girarmos em torno dos nossos próprios interesses e da nossa própria espiritualidade que colocamos em segundo plano a missão mundial de que Deus nos incumbiu.
Como igreja de Jesus, podemos hoje ouvir a Palavra de Deus e cultivar a comunhão completamente desimpedidos. No entanto, muitas vezes isto não é mais prioridade para nós, mas precisa de algum modo adaptar-se ou ficar subordinado aos nossos outros interesses e atividades. Nesse sentido, também somos intensamente determinados pelo individualismo e pelas propostas de lazer. Na perseguição, a situação ficará muito difícil para o cristão individualista; nela os irmãos terão anseio pela comunhão sob a Palavra de Deus. Por isso, os soviéticos também tentavam perturbar e proibir reuniões da igreja. Também neste aspecto poderemos um dia lembrar-nos com tristeza das nossas falsas prioridades em uma sociedade livre.
O que sempre se proíbe na perseguição é a Bíblia, porque a Palavra de Deus é uma divina palavra de poder. Hoje desfrutamos de todas as liberdades para nos ocupar pessoalmente da Palavra de Deus, e tiramos muito pouco proveito disso porque outras coisas nos parecem mais importantes. Qualquer um pode ocupar-se da Bíblia em qualquer lugar, sem temer consequências... a não ser talvez alguns olhares e observações tolos. Podemos ler a Bíblia em casa, no ônibus, num banco de parque, na cadeira de praia etc. É claro que não quero dizer que devamos ler apenas a Bíblia em toda parte. Mas poderá chegar o momento em que seremos punidos por ler a Bíblia e teremos que pagar um preço muito alto por isso. Então talvez nos lembraremos saudosos da nossa ocupação superficial com a Palavra de Deus.
Nos meus tempos de estudante no seminário bíblico ouvi relatos de irmãos sobre suas experiências na União Soviética e em prisões. Naquele tempo, a perseguição ainda estava na ordem do dia. É claro que então se levantava a questão de como poderíamos nos preparar para algo assim. Jamais esquecerei a resposta. Ela dizia algo como “Viva hoje com fidelidade e em obediência ao Senhor e ele também guardará você quando tudo aquilo acontecer”.
O tema da perseguição e da tribulação é recorrente nas cartas do apóstolo Paulo. Ele chega ao ponto de comparar a si e até a nós com ovelhas no matadouro.
O importante é sermos fiéis agora no lugar em que o Senhor nos colocou; que obedeçamos neste momento à sua Palavra e vivamos em dependência dele. Quem acredita poder hoje contemporizar e não levar tudo tão a sério também não se manterá em pé quando a pressão aumentar. Na parábola dos quatro terrenos da semeadura, lemos sobre aquilo que foi semeado entre as pedras e então secou (Mt 13.21). Estas são as pessoas imediatistas e eufóricas, que não têm raízes profundas. Por isso caem quando a pressão aumenta.
Essa fidelidade também inclui a coragem para atualmente já testemunhar de uma posição clara em favor de Cristo e do evangelho, ainda que não seja mais algo desejável e resulte em isolamento ou rejeição. De que outra maneira teríamos coragem em tempos diferentes, se ela já nos faltar hoje? Isso também inclui nossa vida prática, o modo como lidamos com outras pessoas, servimos a elas e nos engajamos mutuamente na igreja.
Em qualquer circunstância deveríamos ter como princípio crescer no conhecimento do nosso Senhor. Para Paulo e Pedro, esta era uma questão relevante para as igrejas (Ef 1.15-23; Cl 1.10; 2Pe 3.18 etc.). O crescimento no conhecimento de Deus faz crescer nossa confiança nele – e aí não se trata apenas de conhecimento teórico. As verdades bíblicas desenvolvem seu poder quando são aplicadas na vida prática – se confiarmos no Senhor em razão dele próprio, mesmo quando certas coisas sobrevierem de forma diferente de como imaginamos.
Paulo demonstra no fim da sua vida a importância do conhecimento de Deus diante de pressão e perseguição. Preso como criminoso em um cárcere úmido, malcheiroso e frio, na expectativa da execução, ele consegue escrever: “... sei em quem tenho crido e estou bem certo de que ele é poderoso para guardar o que lhe confiei até aquele dia” (2Tm 1.12).
O batismo é uma confissão. Todo aquele que se faz batizar é batizado na morte de Cristo antes de a nova vida chegar. Essa morte não se refere apenas à vida pecaminosa do passado, mas também a um sim para o sofrimento por amor a Cristo.
Por outro lado, trata-se de nos reconhecermos segundo o padrão bíblico. Pedro negou seu Senhor porque tinha uma opinião excessivamente favorável de si mesmo. Ele depositou sua confiança na sua própria piedade e força em vez de confiar nas palavras de Jesus. Quem resiste sob pressão não é quem acha que tem tudo sob controle e é suficiente espiritualmente. A firmeza é daqueles que reconheceram sua plena dependência de Cristo e conhecem sua própria fragilidade. Isto os lança totalmente em direção ao Senhor.
Ainda temos a possibilidade de nos familiarizar a fundo com a Palavra de Deus e de decorá-la. Nesta era digital, isso não parece mais ser necessário. Mas como será caso não tivermos mais acesso à Bíblia? Em João 16.13 lemos que o Espírito de Deus deseja nos conduzir a toda a verdade. No versículo 14, o Senhor Jesus diz que o Espírito lançará mão do que é dele. E em João 14.27 lemos que ele lembrará os discípulos de tudo o que o Senhor lhes disse. Nada consta ali de que o Espírito Santo subitamente lhes dará revelações novas. Ele nos lembra daquilo que Jesus disse. Isso presume que conhecemos a Palavra de Deus. Por sinal, esta é também uma promessa para todos os que têm dificuldades em decorar e assim mesmo se exercitam nisso. Enquanto for dia, devemos aproveitar o tempo para decorar versículos bíblicos e fixá-los bem na mente. Como é útil quando sabemos de cor passagens ou até capítulos inteiros. O poder der Deus continuará então a se manifestar quando não tivermos mais a possibilidade de ler. É possível exercitar isso desde as turmas infantis.
Aliás, isto também se aplica a bons cânticos espirituais. Declamar para si mesmo ou orar estrofes de músicas também pode ser muito útil, e não só quando a perseguição chegar. Mesmo na escuridão da noite, nos quartos dos hospitais ou na beira da estrada após um acidente. Durante o meu estágio, várias vezes realizei devocionais em um lar de idosos. O modo de fazê-lo dependia das condições em que se encontravam os ouvintes. Um dos devocionais era oferecido a pessoas totalmente dementes. Assim como se contam histórias bíblicas aos pequenos no culto infantil, fiz o mesmo na esperança de que algo ficasse retido. Todavia, sempre que entoávamos antigos hinos cristãos bem conhecidos, aquelas pessoas dementes de repente participavam cantando. Aí aparecia algo que haviam aprendido na infância.
Uma vida enraizada na Bíblia também pode ser promovida por um treinamento adequado que nos ajude a entender os contextos da história sagrada. Nesse sentido, Werner Stoy demonstra com base na história como muitas vezes uma sedução interna também se acrescentava à perseguição. Por isso é tão importante conhecer os contextos e as linhas básicas da Escritura. Isso também é muitas vezes negligenciado hoje em dia porque preferimos usar o tempo para nós mesmos e outras coisas.
Na Bíblia encontramos ambos: por um lado, o Senhor quer amenizar os nossos sofrimentos – pelo que também podemos orar; contudo, por outro lado, ele também persegue seus objetivos e metas por meio do sofrimento. Nossa tendência é buscar como alvo principal um discipulado livre de dores e sofrimentos. Isso provém da nossa enorme prosperidade e da mentalidade de bem-estar proveniente dela, começando em nossa vida pessoal e depois penetrando na igreja. No momento em que ocorrem fases difíceis na vida da igreja, passa-se a enxergar apenas um rastro do que aconteceu antes. Aí então saímos em busca de uma zona de conforto piedosa em outro lugar. Paulo, por sua vez, estabelece a disposição ao sofrimento como marca espiritual básica para o ministério e o discipulado. Não se trata de sofrer para obter salvação ou porque a dor seria algo tão bonito. Trata-se de sofrer por Cristo em um mundo caído, hostil a Deus e passageiro. Isso pode incluir o curso da vida, aflições e dificuldades de toda espécie. Porque, embora sempre possamos orar por alívio, os sofrimentos também podem ser um meio pelo qual Deus é glorificado de modo especial, transformando-nos para sua glória.
Embora a Bíblia não pregue o ascetismo, ela ensina um estilo de vida grato e moderado. Paulo dizia: “Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade” (Fp 4.12).
Honestamente, precisamos reconhecer que em geral temos facilidade em viver na abundância e que nem conhecemos mais uma vida de carência. Tudo de bom que o Senhor nos dá podemos receber agradecidos da mão dele. Seja uma boa refeição, belas férias, a casa própria ou o carro. Mas a questão é definir o mais importante para nós e o que prende o nosso coração. Isso inclui o modo como poderemos ajudar a sustentar o trabalho missionário e o progresso do evangelho.
Ainda temos a possibilidade de nos familiarizar a fundo com a Palavra de Deus e de decorá-la. Nesta era digital, isso não parece mais ser necessário. Mas como será caso não tivermos mais acesso a Bíblia?
Afinal, todo esse sistema de consumo que nos cerca está configurado para continuamente despertar novos desejos. Um estilo de vida moderado honrará o Senhor e ao mesmo tempo nos ajudará se ocasionalmente precisarmos renunciar a algo que possuímos hoje.
Werner Stoy também explica ainda que a igreja perseguida sempre deu valor à formação e capacitação de novos pregadores, apesar de isso ser bem difícil no ambiente de perseguição. É claro que a perseguição sempre atingirá em primeiro lugar os irmãos que arcam com a responsabilidade espiritual e também proclamam a Palavra. Esta é uma razão pela qual a capacitação de colaboradores é tão importante. Se a linha de frente for sequestrada, a segunda e a terceira estarão disponíveis.
Conclusão
Ânimo para o amanhã: os sofrimentos por Jesus não são algo sem sentido. Não pretendemos glorificar o sofrimento por si só. Pressão, angústia e tribulação sempre doem. Por isso, o Senhor disse claramente aos seus discípulos que eles passariam por apertos neste mundo. Mas Cristo e o seu evangelho merecem isso. O sofrimento não é o final, porque no fim espera por nós uma glória além da imaginação. Também é animador perceber como a Palavra de Deus desenvolve seu poder justamente sob pressão. Muitas vezes, o Senhor utiliza aquilo destinado a combatê-lo para se glorificar de forma especial. Assim, o número dos cristãos na China se multiplicou sob a perseguição mais dura, por exemplo.
Este tema implica para nós um enorme desafio. Precisamos ter claramente em foco os desdobramentos na terra e não podemos continuar vivendo num mundo de sonhos espirituais.