De volta à reforma

De como a mensagem protestante mudou o mundo e resistiu ao espírito do seu tempo. Uma exposição e um apelo a fazer novamente a luz do evangelho brilhar e a resistir ao espírito dos tempos.

Jesus enviou seus discípulos a todo o mundo: “Vão, anunciem o evangelho a toda criatura! Vocês são a luz do mundo! Vocês são o sal da terra; se o sal deixar de salgar, com o que se salgará? Não serve para mais nada a não ser para ser lançado fora e ser pisado pelos homens” (cf. Mt 28.18-19; 5.13). Provavelmente seja bem isso o que observamos em nossos dias. O mundo inteiro, também o ocidental, está passando por uma profunda reviravolta. As antigas receitas das elites intelectuais estão gastas. Também a igreja europeia é desprezada e pisoteada na medida em que segue as tendências gerais – em boa parte pelos pés das multidões que a abandonam. A igreja protestante, que já foi a certa altura convocada a ser sal e luz, muitas vezes não sabe mais quem ela é e o que deve fazer. Ela se ocupa principalmente com a sua própria sobrevivência. Assim, por exemplo, a igreja estatal de Zurique está há uma década inteira discutindo sobre dinheiro, percentuais orçamentários e suas próprias estruturas.

Por volta do ano de 1500, a igreja estava enredada com dinheiro, falsa espiritualidade e política. Desde os séculos XIII e XIV, a Igreja Católica foi-se tornando a principal potência econômica da Europa (com o papado em Avignon). Todo o movimento de pobreza foi um potente protesto contra esse desvio. Em 1500, reinava em Roma o papa renascentista Alexandre VI. Com suas amantes, ele gerou toda uma série de filhos ilegítimos que presenteou com terras e principados. Dos seus cordeirinhos, a mesma Igreja exigia uma boa moralidade ou pelo menos a compra de indulgências para as punições dos pecados e no purgatório. Pelo valor de mais ou menos um salário mensal, qualquer um poderia livrar-se de todas as penas dos pecados e da morte segundo o lema: “Assim que o dinheiro soar na caixa, a alma salta para o céu”. Hipocritamente, a igreja enchia seu caixa com essas multas, tal como hoje os governos europeus com os bilhões das multas de trânsito.

Foi contra esses abusos hipócritas que o monge agostiniano e doutor em teologia Martinho Lutero protestou em Wittenberg. Essa localidade, situada hoje à distância de uma hora de carro de Berlim, era na época uma cidadezinha de dois mil habitantes junto ao limite nordeste da civilização alemã. Com seu conhecimento bíblico e sob a influência de Agostinho, Martinho Lutero rompeu as barreiras para uma descoberta nova e revolucionária: que homem nenhum consegue prevalecer diante de Deus; muito menos comprar sua liberdade. Todos nós estamos perdidos – todos! Na carta de Paulo aos Romanos, Lutero encontrou a mensagem reformadora que o conduziu às portas do paraíso: o que homem nenhum consegue, o Deus vivo realizou ao enviar seu Filho. Jesus Cristo morreu na cruz e pagou de uma só vez todas as nossas contas – não com prata ou ouro, mas com seu próprio sangue! Tudo isso Deus faz e nos oferece de forma incondicional – por seu insondável amor. Quem confiar nessa mensagem da Escritura Sagrada está salvo no tempo e na eternidade. Nada poderá separá-lo do amor de Deus; a fé em Cristo é a âncora firme em meio ao temporal e ao naufrágio.

A Reforma depende antes de tudo da Bíblia. No ano de 1500, nem sequer todos os sacerdotes liam a Escritura Sagrada. Martinho Lutero traduziu para o alemão a Bíblia inteira – Antigo e Novo Testamentos. A força e o talento linguístico de Lutero são únicos e até hoje não foram igualados. A Bíblia alemã de Lutero tornou-se um grande sucesso. A elite protestante, principalmente, a leu rapidamente e com prazer. O reformador traduziu a palavra de Deus diretamente para o coração dos seus amados alemães. Com isso, a Bíblia de Lutero tornou-se a base do moderno padrão da língua alemã. Sem a Bíblia de Lutero, não teríamos nem Goethe nem Schiller. Principalmente, porém, a Bíblia de Lutero tornou-se a mãe da Igreja Evangélica Luterana, porque:

É somente da Palavra de Deus que nasce a comunidade cristã.

É somente a Palavra de Deus que proporciona sabedoria e força aos pregadores.

É somente a Palavra de Deus que julga, salva e sustenta o mundo.

De Wittenberg até Genebra, o programa básico de toda a Reforma foi sempre o mesmo.

SOLA SCRIPTURA – Somente a Escritura.

SOLUS CHRISTUS – Somente Cristo.

SOLA GRATIA – Somente pela graça.

SOLA FIDE – Somente pela fé.

Lutero sempre buscava na Bíblia o centro, ou seja, Jesus, e este crucificado. Ele não depositava sua confiança em grandes palavras de sabedoria humana nem em experiências piedosas, mas apenas na palavra da cruz (1Co 1) que aniquila todas as pretensões humanas.

Lutero sempre buscava na Bíblia o centro, ou seja, Jesus, e este crucificado. 

Como a Palavra de Deus ocupa uma posição tão elevada e central para a vida inteira, a Reforma tornou-se a mãe do ensino primário, e este tornou-se uma instituição central nas cidades, nos estados e nos povoados evangélicos. “Ler, escrever, orar” são as competências centrais que a escola haveria de implementar também na Suíça protestante, já que as pessoas que soubessem ler a Bíblia por conta própria também seriam capacitadas a ter um encontro com Deus e a entender sua Palavra. Quem lê a Bíblia encontra salvação, esperança e um perfil espiritual. Assim, a Bíblia e a educação tornam-se as fontes de um capital humano intelectual nos países protestantes da Europa.

Martinho Lutero arriscou sua vida para agitar uma igreja e sociedade corruptas. Ao abalar os tabus dos poderosos, ele se arriscou à fogueira. Cem anos antes, em 6 de julho de 1415, Jan Hus, no Concílio de Constança, pagou com a vida sua dedicação a uma reforma da igreja. Suas cinzas foram espalhadas no Reno apesar de o imperador Sigismundo lhe ter prometido salvo-conduto.

Em 18 de abril de 1521, Lutero deporia em Worms perante o imperador, príncipes e autoridades de cidades. Diante dessas máximas instâncias do Império, aquele excomungado declarou nesse memorável dia: “Minha consciência está presa à Palavra de Deus e por isso não posso nem quero negar nada”. Lutero sabia que, também em Worms, as (suas) cinzas de herege poderiam ser espalhadas no Reno. Mesmo assim ele se manteve firme.

Com razão, esse 18 de abril de 1521 é considerado um dia significativo na história de Europa. Um homem solitário enfrentava as mais altas instâncias políticas e se reportava à Palavra de Deus e à sua consciência. Naturalmente, foi da Bíblia que ele aprendeu tudo isso (Rm 13.5; 1Tm 1.19). Para a história europeia da era moderna, um homem invocar a liberdade de crença e consciência é um sinal muito forte. Com isso, Lutero escancarou uma porta que conduz da Idade Média à Idade Moderna.

Para proteger Lutero da vingança imperial após o decurso do prazo de carência que lhe foi prometido, alguns amigos o sequestram e escondem no castelo de Wartburg, nas profundezas das florestas da Turíngia. Mesmo assim, os escritos e folhetos de Lutero se espalham como o vento por toda parte. Também na Basileia, os escritos do reformador são impressos. A Reforma torna-se um movimento “internacional”.

Também em Zurique a semente da Reforma cai em solo fértil. Em 1518, Ulrico Zuínglio recebe um chamado de Wildhaus, pároco de Einsiedeln, para o cargo de sacerdote auxiliar na catedral, com a incumbência de pregar ao povo. Zuínglio inicia seu trabalho no Ano-Novo de 1519, com uma exposição do evangelho de Mateus. Também na Reforma de Zurique a Bíblia desempenha o papel básico e decisivo. Zuínglio e seus amigos apressam-se em traduzir a Bíblia do hebraico e do grego para o alemão. Zuínglio anuncia às dominicanas do convento de Oetenbach que “é mais provável que a natureza abandone o seu curso do que a Palavra de Deus não se cumpra”! E, em seus discursos finais (1523), o reformador escreve que “a Escritura Sagrada há de ser o meu juiz e de todos os homens – o homem não pode ser juiz da Palavra de Deus”.

Também Zuínglio abala os tabus da sua época. Na quaresma de 1522, ele compareceu a um jantar onde se serviu linguiça (o que era oficialmente proibido). Quando o cheiro das linguiças quentes encheu a casa do mestre impressor Froschauer e todos (exceto Zuínglio) tratam de comer, aquela ilustre roda abre a janela para que os moradores da cidade percebam nas ruas o que está acontecendo. Entre os crentes tradicionais irrompe uma tempestade de indignação, mas Zuínglio continua a pregar a Palavra de Deus.

Os debates são uma particularidade da Reforma de Zurique. À medida que as emoções se exacerbam, o conselho da cidade promulga permissões de inquérito. É autorizado que as comunidades eclesiais de Zurique sejam ouvidas pelas delegações. Para isso, não se emprega a linguagem erudita, o latim, mas o dialeto alemão do povo. Todos os crentes são emancipados! A questão em pauta é: qual é a verdadeira igreja? Até 600 homens discutem na antiga prefeitura com Zuínglio e seus amigos. A única diretriz é a Bíblia. Amigos humanistas de Zuínglio defendem uma reforma radical. Segundo eles, só poderia ser membro da igreja quem fosse convertido e batizado como crente. Zuínglio percebe que a via radical sufocaria a Reforma de Zurique em sangue e lágrimas. Até então, Zurique ainda está só – os demais suíços, inclusive de Berna, usariam de violência para fazer a cidade do rio Limmat novamente católica. Mas também a posição teológica de Zuínglio é diferente daquela dos batistas. Tal como Agostinho, ele distingue entre a igreja visível e a invisível. Nem todos os membros da igreja visível são efetivamente crentes, e também entre os aparentemente crentes há hipócritas. Por isso, a verdadeira igreja de Jesus Cristo é invisível. Só Deus conhece os seus. De acordo com isso, Zuínglio expressa em resumo: “O que é a igreja de Cristo? Aquela que ouve sua Palavra. Onde está a igreja? Espalhada por todo o mundo. Quem é ela? Todos os crentes. Quem a conhece? Deus”.

Na quinta e na sexta-feira santas e na Páscoa de 1525, celebra-se na catedral de Zurique a primeira ceia do Senhor evangélica. Em contraste com a missa católica, a ceia é celebrada de forma enfaticamente singela e biblicamente sóbria. “... o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, pegou um pão...” (1Co 11.23). Os participantes do culto recebem pão sem fermento (hóstias) de uma tigela de madeira, e vinho de um cálice de madeira. Diferentemente de Lutero, Zuínglio entende o pão e o vinho de forma simbólica – “isto significa o meu corpo”, etc. Essa interpretação zuingliana acabou prevalecendo nas diversas igrejas independentes, mas não nas igrejas reformadas. Nelas prevalece a noção de Calvino: o corpo e o sangue de Cristo estão presentes por meio do Espírito Santo e são recebidos espiritualmente pelo coração. Não há lugar para acessórios de ouro e cálices de prata. Mesmo belas cantatas e música comovente se interpõem contra a Palavra de Deus, que precisa novamente ser ouvida. Zuínglio e, mais tarde, também Calvino, defendem uma piedade puritana. O que não estiver expressamente escrito na Palavra de Deus não deve ter lugar no culto.

Monumento à Ulrico Zuínglio em Zurique, Suíça.
Monumento à Ulrico Zuínglio em Zurique, Suíça.

Zuínglio provém de uma família política. Seu pai era presidente da comunidade de Wildhaus. Zuínglio é um reformador político. A reforma de Zurique objetiva mudanças práticas. Também Lutero entende o trabalho como vocação (de vocare, chamar). Bento de Núrsia, já no início da Idade Média, deu à ordem beneditina o lema “ore e trabalhe”. Para Zuínglio, o trabalho não é uma carga, mas culto e expressão da fé. Não só a agricultura, mas também o comércio, o empresariado, o artesanato, o governo e o ensino são avaliados positivamente como trabalho. A mendicância, que antes caracterizava o cenário urbano, é proibida. Diligência, parcimônia e fidelidade administrativa são parte do culto. Graças a essa nova ética do trabalho, a cidade passa a florescer. Durante a década de 1540 a 1550, a cidade ganha um capital adicional de cem mil libras, que o governo aplica em expansão regional. Essa nova espécie de fé é chamada de puritanismo (uma referência à pureza), ou seja, na Zurique reformada, a fé e a vida foram “purificadas” de aditivos extrabíblicos. Essa tendência tenderá a se reforçar ainda mais no calvinismo.

Os bens que o Estado confiscou dos mosteiros são usados como base para assistência estatal. O conselho institui, junto à Predigerkirche [Igreja dos pregadores], um posto de alimentação para os pobres. A Idade Média tolerava a mendicância e a interpretava até positivamente, porque o mendigo seria uma imagem do pobre Jesus a quem devemos ajudar. O acesso a postos de assistência, porém, ficou restrito a pobres vitimados e a incapazes, ou seja, doentes, idosos, crianças de grandes famílias, mas também estudantes. Preguiçosos e indispostos ao trabalho eram recusados. Zuínglio proíbe os juros extorsivos usuais (de até 20%), mas é o primeiro a permitir créditos comerciais a até 5%. É permitido trabalhar com dinheiro.

João Calvino pertence à segunda geração de reformadores. Nascido em 1509, Calvino é 25 anos mais jovem que Lutero e Zuínglio. Calvino era natural do norte da França, aluno de Lutero, humanista, jurista formado e o autor seiscentista mais lido. Calvino era o mais fraco fisicamente, mas, em seus efeitos, o mais forte de todos os reformadores. Quatro mil e trezentas cartas conservadas testificam de sua rede de contatos pela Europa. Calvino é considerado um ecumenista entre os reformadores. Com Melâncton e teólogos católicos, ele tenta seriamente superar a cisão da fé.

Calvino foi o fundador da Academia de Genebra. Por esse campo de treinamento passam centenas, até milhares de refugiados religiosos, que Calvino ensina, molda e perfila sob a proteção da poderosa Berna. O escocês John Knox, que, como refugiado da fé, escapou das galés francesas, adquire sua influência em Genebra. Ele deixa a cidade de Calvino com a oração: “Senhor, dá-me a Escócia ou morrerei!”. A Escócia o segue. Um milhão de franceses, grande parte da nobreza e dos intelectuais, atende ao calvinismo (os huguenotes). Assim, forma-se na França, na Holanda, na Inglaterra e na Hungria, mas também na Suíça, um protestantismo decidido, combativo e baseado na palavra bíblica. Genebra é apelidada de Roma protestante. Quando as forças do luteranismo começam a arrefecer e a Igreja Católica parte para o contra-ataque, o protestantismo calvinista é o recurso que Deus usa para salvar a Reforma.

Retrato gravado do teólogo francês João Calvino.
Retrato gravado do teólogo francês João Calvino.

A noção eclesiástica de Calvino é única para a época dele, é um ato pioneiro. O reformador de Genebra é o criador da separação de poderes. À liderança operacional da igreja ele contrapõe o sínodo como legislativo. A igreja de Calvino não conhece nem bispos nem prelados. Ela é dirigida por quatro ofícios que ele deriva do Novo Testamento: presbíteros, pastores, mestres e diáconos dirigem a igreja. O ordenamento eclesiástico e também a doutrina da fé (as Institutas) de Calvino contêm uma frase marcante, não encontrada em nenhum outro lugar no século XVI: “Ninguém assuma um ofício a não ser por eleição pela comunidade”. Essa frase é uma semente precoce da futura democracia europeia. Além disso, no século XVIII, a doutrina eclesiástica de Calvino com sua separação de poderes, intermediada por colonos calvinistas e pelo presbiteriano inglês John Locke, torna-se o modelo para a Constituição americana. O calvinismo abriga o potencial que já no século XVII desencadeia na Inglaterra a revolução e a democracia parlamentar.

Por meio de João Calvino, a Reforma de Genebra adquire marcas puritanas como as que já encontramos em Zuínglio. Ademais, a própria vida cristã do reformador de Genebra também registra aspectos ascéticos. Com tudo o que o ocupa, ele muitas vezes se concentra tanto no seu trabalho que esquece de comer, o que não favorece nada a sua saúde. Calvino pode literalmente acompanhar Paulo quando diz que “esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado” (1Co 9.27). Assim, Calvino vive em Genebra e, em grande debilidade, supera seus fortes adversários libertários no governo. Quem por isso acusar Calvino de legalismo, não o entendeu. Esse reformador não se limita a ensinar, mas também vive a teologia evangélica da cruz. Por isso, com todos os erros que também comete, ele dispõe de uma inigualável autoridade e presença de espírito.

No calvinismo dos séculos XVI e XVII, os aspectos puritanos já presentes em Calvino se fortalecem cada vez mais. O calvinista distancia-se dos costumes deste mundo. Divertimentos como bailes, carnaval e mundanismo são abominação para ele. Ele é parcimonioso, modesto e firme, trabalha muito durante a semana e é diligente em honrar a Deus, observa o dia de descanso e cuida da sua família.

Por óbvio, um estilo de vida puritano como esse normalmente não degenerará em negligência e pobreza, pelo contrário. Para o calvinismo, a riqueza não é considerada pecado; afinal, já Abraão era “muito rico; possuía gado, prata e ouro” (Gn 13.2), porque Deus o abençoava. Mesmo Zuínglio e mais tarde os calvinistas creem que, para os crentes, a fortuna adquirida honestamente deve ser entendida como sinal de eleição pessoal. A certeza da eleição, porém, é a maior motivação de que o ser humano pode dispor. A graça e a eleição são o segredo da história, diz o filósofo cultural Ernst Troeltsch. Ninguém menos que Max Weber já notou, há cem anos, que o estilo de vida puritano é a graxa para um Estado progressista com economia florescente, e que o calvinismo, com seu “ascetismo íntimo”, é o verdadeiro motor para a ascensão do Ocidente e do capitalismo. De fato, rendimento, instrução e conhecimento (leitura!) têm uma imagem altamente positiva no protestantismo calvinista, de modo que, nas regiões protestantes, acumulou-se desde cedo e de modo particular um capital humano mental. Na própria Genebra, os calvinistas implementaram a praça bancária e a indústria relojoeira e têxtil, além de atentamente cuidarem de relacionamentos no comércio de matérias-primas. Peter Tschopp, professor de economia de Genebra, identifica Calvino como “pai da praça bancária de Genebra”. Calvino (tal como Zuínglio) aprova o empréstimo financeiro comercial a um juro máximo de 5%.

“Rendimento, instrução e conhecimento (leitura!) têm uma imagem altamente positiva no protestantismo calvinista, de modo que, nas regiões protestantes, acumulou-se desde cedo e de modo particular um capital humano mental.”

Por volta de 1500, a China é um bloco monolítico de poder que pode ser considerado o umbigo do mundo. Enquanto na Idade Média a Europa ainda cochilava, os chineses inventaram, no século XI, o relógio mecânico, seguido da imprensa, da pólvora, do papel, da semeadeira, da bússola, do carrinho de mão e mesmo um recurso tão pequenino como a escova de dentes. A China possui na Idade Média uma frota de guerra de alto-mar, cujos enormes navios atingem, no século XV, a costa oriental da África. Por volta de 1500, ninguém imagina um domínio mundial para a pequena Europa. Ainda assim, no século XVII, a Inglaterra ascende ao posto de maior potência naval do mundo. Enquanto a China vai-se degradando em sua autossuficiência e imobilidade, a Inglaterra experimenta uma revolução (calvinista) e, em 1689, torna-se a primeira democracia parlamentar do mundo. A democracia e a liberdade, porém, criam espaço para propriedade, pesquisa, inovação e competição.

Em 2014, Niall Ferguson, historiador de fama mundial de Harvard e Oxford, publicou um livro intitulado Civilização: Ocidente x Oriente. Também Ferguson enxerga na ética calvinista do trabalho o decisivo solo fértil e motor para a inesperada ascensão democrática, industrial e militar do Ocidente.

O calvinismo

Depois da Reforma, o calvinismo tornou-se uma força estimulante na sociedade (é comum intercambiar os termos “calvinista” e “reformado”). Por ocasião do conflito eclesiástico no século XVII, os adeptos de Calvino formularam em Dordrecht (Holanda) os cinco pontos essenciais de sua compreensão da redenção: 1. O homem está totalmente degenerado e não procura Deus. 2. Deus elege incondicionalmente determinadas pessoas para a vida eterna, largando as outras em seu estado perdido. 3. Jesus Cristo morreu apenas para os eleitos. 4. A graça de Deus é irresistível; o pecador que ele chamar, crerá. 5. Os eleitos persistirão na fé e não podem perder-se. Muitas igrejas independentes e suas respectivas organizações (como, por exemplo, a Chamada) não conseguem concordar plenamente com essa visão da fé cristã. No entanto, ainda que a noção calvinista da redenção não convença a todos os protestantes, a ética calvinista do trabalho (tal como exposta neste artigo) foi capaz de exercer uma forte influência sobre a cristandade ocidental.

A força do protestantismo (calvinista) possibilitou o rápido progresso da pequena Europa até torná-la protagonista mundial. À medida que, no século XX, a Inglaterra e o continente vão deixando o zênite para trás, os Estados Unidos protestantes (graças a repetidos avivamentos) atingem sua plena potência mental. Foi só a partir de década de 1960 que se iniciou, aqui e lá, o declínio eclesiástico, seguido imediatamente de um declínio cultural e político. Assim, passamos a apresentar aqui, brevemente, três reflexos do protestantismo.

1. Com a Reforma, ocorreu na cristandade ocidental uma cisão persistente e até hoje não curada, criando um verdadeiro abismo. É claro que mesmo bem antes da Reforma a cristandade passou por inúmeras cisões. Já no século XI, as igrejas oriental e ocidental se separaram de forma não pacífica. Na Idade Média tardia, os movimentos dos wiclifitas ingleses, dos hussitas tchecos e dos valdenses só puderam ser oprimidos pela força do Estado. As perseguições aos hereges são um capítulo secular e tenebroso da história eclesiástica. Nesse sentido, a Reforma merece novamente uma classificação positiva porque, ao individualizar a fé, ela também possibilitou uma pluralização da cultura religiosa, ainda reforçada pelo pietismo no século XVIII.

2. Uma consequência grave da Reforma e da Contrarreforma foram as inúmeras guerras religiosas na Europa, das quais a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi a mais terrível, com toda a sua desgraça, peste e miséria. Não foram os mais ímpios, mas, muitas vezes, foram os mais inteligentes e vigilantes que, diante de todos os terrores causados pelas guerras religiosas, perderam a confiança na Bíblia e no cristianismo. Assim, as guerras religiosas são a origem primária do ceticismo e do ateísmo ocidentais. Foi na França que esse desenvolvimento mais se concretizou, levando, no final do século XVIII, a um esgotamento espiritual. Também ali a culpa não pode ser atribuída unilateralmente à Reforma; pelo contrário, foram antes de tudo os enrijecimentos da era confessional que aqui e ali levaram às piores distorções.

3. O terceiro reflexo relaciona-se com o segundo e se refere muito mais ao neoprotestantismo do que à Igreja Católica. O europeu moderno cedeu ao ceticismo. Em vez de crerem em Deus, os europeus preferem crer cada vez mais em si mesmos. Da fé individualizada de Lutero desenvolveu-se um individualismo secularizado sem limites, ou seja, egoísmo. Em vez de confiarem na palavra bíblica, o que brota do neoprotestantismo é uma crítica bíblica metódica. O europeu (protestante) eleva-se acima de Deus. Com a perda da Palavra de Deus, as igrejas europeias vão morrendo e o neoprotestantismo perde seu poder de sal para a sociedade. Principalmente a partir da década de 60 – na Alemanha já antes disso – toda a força do Ocidente começou a declinar (inicialmente de modo quase imperceptível). O protestantismo está em vias de destruir seus próprios sucessos.

Se hoje na Europa morrem as igrejas, amanhã o continente inteiro será arrastado para a ruína, porque a Europa se tornou o que é por meio da Bíblia, e a longo prazo não poderá sobreviver à perda dessa mensagem.

O papa João Paulo II já apelou em 1990 para uma reevangelização da Europa. Acaso ele não tinha razão? O neoprotestantismo abanou a cabeça em sinal de incompreensão diante disso. Entrementes, o espírito do tempo foi configurando a nossa juventude segundo a sua imagem, dirigindo nossa mídia, desencadeou uma luta de classes entre homens e mulheres, recusou o nascimento a milhões de crianças, privou crianças de suas mães e pais e dificultou aos adolescentes a definição de sua identidade. A Europa, que já foi a vanguarda do mundo, tornou-se um joguete dos poderes e traiu sua missão por ter sido ela mesma traída pelo neoprotestantismo. Cedeu seus ouvidos não à voz do bom pastor, mas a ideologias sedutoras e a ideais culturais sem fundamento. Essa é a profunda culpa do protestantismo – diante de Deus e de todo o continente.

Por meio da Reforma, Deus chamou e abençoou principalmente os povos do norte e do oeste da Europa, em particular a Alemanha e a Suíça. A razão pela qual a Reforma do século XVI não conseguiu predominar plenamente na igreja, na cultura e na política permanece como um mistério de Deus. Quando as igrejas evangélicas, seja de que coloração forem, se recordam solenemente dos mais de 500 anos da Reforma, elas o fazem com grande gratidão: a Reforma nos proporcionou o brilho da palavra de Deus, a alegria da certeza da salvação e, por fim, democracia, ciência e prosperidade. Todavia, celebramos o jubileu também marcados por arrependimento pelos conflitos doutrinários e uma teimosia mortal de ambos os lados dos limites confessionais. Várias vezes, a empolgação do neoprotestantismo levou não só o nosso continente, mas o mundo inteiro à beira do abismo. Por meio de uma crítica bíblica pseudocientífica, roubou à igreja a luz de que ela necessita para sobreviver e para ser uma bênção para o mundo.

Os já mais de 500 anos da Reforma são um estímulo a abandonar, no âmbito das igrejas e além, os caminhos desgastados do espírito dos tempos. Deus diz à sua igreja que “vocês são a luz do mundo, façam sua luz brilhar!”. Voltemos, por isso, a confessar com alegria o evangelho! Ele é o poder de Deus que transforma – ontem e hoje.

Armin Sierszyn foi entre 1973 e 2013 professor de teologia histórica e prática no STH Basel, na Suíça. Também escreveu inúmeros livros.

sumário Revista Chamada Outubro 2022

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