Jesus e o Talmude
Esta série examinará os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não-cristãos. Nesta edição, continuaremos examinando as alusões a Jesus que se encontram em textos do Talmude.
Parte 2
Jesus e o Talmude
Se examinarmos em ordem cronológica o mar de tradições talmúdicas, encontraremos a obra escrita mais antiga na Mishná, publicada por volta de 200 d.C. por Judá, o Príncipe.
Um pouco mais tarde foi composta a Tosefta. Trata-se de uma coleção comparável que contém muitas tradições orais semelhantes às da Mishná, além de algumas outras. A Tosefta contém a mais antiga menção a Jesus na literatura judaica.
Os antigos eruditos que contribuíram com a Mishná e a Tosefta viveram entre os séculos 1 a.C. e 1 d.C., o período comumente chamado de tannaítico.
Após a destruição do segundo templo, no ano 70 d.C., formaram-se duas escolas intelectuais rabínicas, cada uma das quais produziu seu próprio Talmude. Cada Talmude é uma volumosa compilação de comentários judaicos e divide-se em Mishná e Guemará. A Mishná inclui material de até 200 d.C. A Guemará é uma compilação de antigos comentários da Mishná e inclui material que vai até o 5º século.
O primeiro deles é conhecido como Talmude de Jerusalém, e é na verdade o último produto da escola palestina do judaísmo rabínico, tendo sido compilado em Tiberíades no século 5 d.C. O segundo, chamado de Talmude Babilônico, foi uma obra rabínica mesopotâmica composta no século 6 d.C., na diáspora. Esse período mais tardio é chamado de período amoraico.
A censura do Talmude
A perseguição aos judeus promovida pela igreja durante a Idade Média implicou uma censura dos seus escritos. Tudo indica que as comunidades judaicas no século 17 autoimpuseram essa censura, removendo dos seus escritos as menções a Jesus a fim de não serem mais alvo de agressões. Morris Goldstein relata o seguinte em sua tese sobre “Jesus in the Jewish Tradition” [Jesus na tradição judaica]:
“Assim, a assembleia dos anciãos judeus na Polônia declarou em 1631: ‘Diante da ameaça da grande proibição, ordenamos-lhes que não se publique em nenhuma nova edição da Mishná ou da Guemará algo que se refira a Jesus de Nazaré [...] Se não fizerdes isso [...] podereis trazer sobre nós e vós mesmos sofrimentos ainda maiores do que nos tempos passados.”
Se examinarmos mais precisamente essas passagens, precisaremos levar em conta que por causa da distância histórica muitos detalhes não-históricos poderão confundir o leitor. Não é fácil identificar o efetivo núcleo da história, mas normalmente a conclusão permite reconhecer que se trata realmente de Jesus.
Jesus é mencionado em várias passagens, principalmente do Talmude Babilônico, porque no Império Sassânida seus autores desfrutavam de mais liberdade. A maioria dos textos hebraicos originais das passagens a seguir foi coletada de manuscritos talmúdicos mais antigos. Eles foram substituídos nos textos das modernas edições do Talmude.
Primeiro trecho: Ben Stada e Ben Pandira
“Ensina-se que R. Eliézer disse aos sábios: acaso Ben Stada não trouxe feitiçaria do Egito em um corte que tinha na pele? Disseram-lhe: ele era um tolo e de um tolo não se podem obter provas. Ben Stada é Ben Pandira. R. Chisdaa disse: o esposo era Stada e o amante era Pandira. O esposo era Pappos Ben Yehudah e a mãe era Stada. A mãe era Míriam, a cabeleireira de mulheres [e foi chamada de Stada]. É como dizemos em Pumbedita: ela se afastou do seu marido [Stat Da]” (Talmude Babilônico, Shabbat 104b; Sanhedrin 67a).
Esta passagem é controvertida porque o cenário, inclusive os nomes das pessoas, é bastante vago.
O texto fala de um homem, chamado Ben Stada, que praticava magia negra. Sua mãe chamava-se Míriam e também era chamada de Stada. Seu pai chamava-se Pappos Ben (filho de) Yehuda. Míriam (Stada) teve um caso com Pandira, do qual nasceu Ben Stada.
Nos tempos do segundo templo, algumas pessoas tinham familiaridade com feitiçaria e até a estudavam, havendo entre elas inclusive membros do Sinédrio. Disso resulta, segundo rabi Yohanan (século 3): “No Sinédrio só ingressa quem for sábio e estiver familiarizado com a magia”. Os sábios não contestavam a existência de ações sobrenaturais em si, mas para eles era importante discernir entre o que fosse legítimo (milagres) e ilegítimo, ou seja, feitiçaria.
Em seu livro Contra Celsum, Orígenes escreve que, segundo Celso (um escritor grego do século 2), Jesus teria aprendido magia no Egito, tendo realizado seus milagres por meio dela. Contudo, não se menciona o modo das suas apresentações. Celso também afirmava ter ouvido a respeito de um judeu de que Míriam teria sido engravidada por Pantheras, um soldado romano, tendo sido divorciada do seu marido, e que Jesus teria nascido em segredo.
Alguns historiadores supõem que Ben Stada, também conhecido como Ben Pandira, seria Jesus. Míriam, o nome de sua mãe, é o equivalente hebraico a Maria. Ela era chamada de cabeleireira de mulheres – “Miriam megadla nashaia” – o que soa semelhante a Maria Madalena, cujo nome talvez tenha sido confundido com o nome da Maria mãe de Jesus. Além disso, segundo interpretação babilônica mais tardia, “Stada” provém de “Stat Da”, o que se traduz por ela se ter afastado do seu marido.
Pappos Ben Yehuda é uma conhecida figura talmúdica, contemporânea do famoso rabi Aquiba. Isso significa que ele viveu cerca de um século depois de Jesus. Portanto, não pode ter sido seu pai. Aliás, segundo a tradição judaica, Pappos suspeitava de sua esposa e a prendia em casa sempre que saía. Talvez essa atitude em relação à sua mulher tenha contribuído para uma confusão entre ele e José, o padrasto de Jesus.
Essa passagem poderia ser do século 3 d.C., e certamente o conhecimento sobre a família de Jesus é limitado. Embora a história toda seja vaga, podemos ainda assim extrair dela alguma indicação sobre a visão que os judeus tinham da família de Jesus: segundo ela, Míriam teria traído seu esposo e gerado um filho do seu amante. Esse filho teria estado no Egito e de lá trazido a feitiçaria.
Finalmente, consideremos as diversas sugestões feitas para explicar o significado da palavra “Pandira”. Os estudiosos propuseram diferentes definições para esse nome, que, aliás, nos textos originais também aparece com variantes. Eis aqui algumas dessas propostas:
- O nome derivaria do nome pessoal “Panther”, amplamente disseminado na Antiguidade. No século 4, o patriarca da igreja Epifânio escreveu que Panther designaria Jacó, o pai de José, que por sua vez era o padrasto de Jesus.
- Strauss cria que ele derivasse da palavra grega pentheros, que significa “genro”. Outros estudiosos dizem, com razão, que essa suposição não faz sentido.
- Kamenetzky pensa tratar-se de um nome resultante de um anagrama que talvez significasse anthropos (homem). É uma ideia interessante, já que “Filho do homem” é um título usual de Jesus nos evangelhos.
- Uma alusão ao nascimento virginal de Cristo, que seria outro anagrama, agora de parthenos, a palavra grega para virgem. Esse termo grego aparece nos evangelhos no registro do nascimento virginal de Jesus (Mt 1.23; Lc 1.27).
- Klausner pensava que os judeus teriam ouvido os cristãos chamarem Jesus de “filho da virgem”, e assim o chamaram zombeteiramente de “Ben ha-Pantera”, ou seja, “filho do leopardo”.
Tendo em vista essas diferentes possibilidades, os pesquisadores não conseguiram chegar a um consenso sobre a razão ou o modo pelo qual Jesus recebeu o nome de Ben Pandira.
Segundo trecho: Jesus e seu mestre
“Sob todas as circunstâncias [convém] usar a mão esquerda para [rejeitar], e a direita para aproximar [...] não como Yehoshua Ben Perachiah, que o – Yeshu – rejeitou com ambas as mãos [...] R. Yehoshua foi [com Yeshu] para Alexandria do Egito. Quando se fez paz [...] [R. Yehoshua] foi e, ao chegar a uma certa hospedaria, renderam-lhe grande respeito. Ele disse: como é bela esta hospedaria [achsania, o que também significa hospedeiro]. [Yeshu] disse: rabi, ela tem olhos estreitos. [R. Yehoshua] disse a ele: ó ímpio, é, pois, com isso que te ocupas? [R. Yehoshua] enviou quatrocentas trombetas e o excomungou. [Yeshu] apresentou-se muitas vezes a [R. Yehoshua] e disse: recebe-me. Mas [R. Yehoschua] não lhe deu atenção. Certo dia [R. Yehoshua] recitava o Shema [que não é permitido interromper]. [Yeshu] se apresentou a ele. Ele quis aceitar [Yeshu] e fez um sinal com a mão para [Yeshu]. [Yeshu] pensou que [R. Yehoshua] o rejeitava. Ele se foi, suspendeu um tijolo e curvou-se diante dele. [Yesu] disse a [R. Yehoshua]: ensinaste-me que todo aquele que peca e induz outros a pecar não teria oportunidade de arrependimento. E um mestre disse: Yeshu, o Nazareno, praticava magia e iludiu Israel, induzindo-o ao erro” (Talmude Babilônico, Sinédrio 107b; Sotah 47a).
Este parágrafo inicia-se com uma declaração especial segundo a qual sempre se deveria rejeitar com a mão esquerda e abraçar com a direita. Segue-se a crítica de um conhecido sábio que tirou uma conclusão apressada. Tudo indica tratar-se de uma forma de autocrítica, já que o famoso rabi não abraçou Yeshu suficientemente, mas o rejeitou com ambas as mãos.
A história reza que o rei Alexandre Janeu foi ofendido pelos fariseus, seus adversários, e então tentou matar todos os rabinos fariseus. Alguns deles, como por exemplo R. Yehoshua Ben Perachiah, fugiram para Alexandria, para fora do alcance do rei.
Tudo indica que as comunidades judaicas no século 17 autoimpuseram essa censura, removendo dos seus escritos as menções a Jesus a fim de não serem mais alvo de agressões.
Mais tarde, R. Yehoshua foi chamado de volta a Israel e levou consigo seu discípulo Yeshu. Chegando a uma hospedaria, o rabino disse que aquela era uma bela hospedaria (achsania), a mesma palavra que também significa “hospedeiro”. O discípulo concordou, mas acrescentou que ela (a hospedeira) tinha olhos estreitos. O fato é que Yeshu interpretara mal as observações do seu mestre, e sua repetição revelou que ele havia contemplado de forma lúbrica uma mulher casada. O rabino chamou seu discípulo de mau (rasha’) e o excomungou. Yeshu tentou arrepender-se e, depois de muitas tentativas, o rabi Yehoshua finalmente aceitou recebê-lo de volta. Yeshu aproximou-se dele enquanto ele orava. O rabino moveu sua mão em direção a Yeshu, que interpretou o gesto erradamente como sinal para ir embora. Yeshu pensou ter sido rejeitado totalmente e então assumiu uma religião pagã e induziu muitos judeus ao erro.
Considerando bem, existe aqui um problema de datação, uma vez que as pessoas citadas viveram cerca de um século antes dos tempos de Jesus. Essa confusão pode ser compreendida por motivo da distância histórica entre o Talmude e a era do segundo templo.
Yeshu é abreviatura de Yeshua’, o nome hebraico de Jesus, com o que aparecem semelhanças entre Yeshu e Jesus. Em um manuscrito do Talmude, ele é chamado de Yeshu Hanotzri, o que poderia significar “Jesus, o Nazareno”.
As acusações de que Yeshu teria praticado magia e enganado Israel, levando-o ao erro, revelam um paralelismo próximo com os evangelhos canônicos. A acusação de feitiçaria assemelha-se à dos fariseus – de que Jesus teria expulsado os demônios por meio de Belzebu, o soberano dos demônios (Mt 12.24). Tudo indica que essa acusação é um reconhecimento tácito dos milagres que Jesus praticou segundo o Novo Testamento. Parece que os milagres de Jesus eram tão difíceis de negar que o único meio de os contestar foi atribuí-los a artes mágicas.
A acusação de induzir Israel à apostasia também está de acordo com a acusação dos líderes judeus de que Jesus quisesse incitar a nação à rebelião com seu ensino (Lc 23.2). Tal acusação parece confirmar o relato neotestamentário sobre o poder do ensino de Jesus.
(Continua na próxima edição.)
Makram Mesherky