Cinco Marcas de uma Igreja Cristocêntrica

Nesta minissérie, cinco características de uma igreja onde Cristo está no centro são enfatizadas. Nesta edição é apresentada a quarta marca.

4ª marca: Transformação contínua

4. Uma igreja cristocêntrica é marcada pela vontade de Deus: transformação contínua

Como afirmamos anteriormente, fazer a vontade de Deus tem pelo menos dois aspectos. O primeiro é a centralidade da Palavra (Cristo) e consequentemente da Palavra (Bíblia) na vida da igreja. No entanto, não basta somente que a Palavra seja pregada e estudada. É impressionante como o ser humano é capaz de dividir sua mente em “compartimentos”. Ao longo do meu ministério encontrei homens e mulheres que ensinavam a Palavra com extrema habilidade, mas infelizmente suas vidas não condiziam com ela. O conhecimento era apenas intelectual, não afetava suas almas. Um dos exemplos mais trágicos foi de um amigo que havia servido como missionário e lecionava um curso brilhante sobre o caráter de Cristo. Para minha completa surpresa, algum tempo depois ele veio me procurar para confessar que conduzia uma vida de duplicidade e promiscuidade há anos. Sua vida e casamento foram restaurados, mas a um custo altíssimo em dores e sofrimento para si e para sua família.

Essa dualidade, essa capacidade de compartimentalizar a verdade e isolá-la de nossa vida não deveria nos surpreender. Tiago nos alerta para essa possibilidade: “Sejam praticantes da palavra e não somente ouvintes, enganando a vocês mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se àquele que contempla o seu rosto natural num espelho; pois contempla a si mesmo, se retira e logo esquece como era a sua aparência. Mas aquele que atenta bem para a lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte que logo se esquece, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar” (Tg 1.22-25).

“A realidade é que muitas de nossas igrejas (mesmo conservadoras e ortodoxas) estão repletas de cristãos que simplesmente pararam de crescer.”

Uma igreja cristocêntrica é marcada pela transformação contínua de seus membros. Isso, mais uma vez, pode parecer óbvio ou até simplório, mas a realidade é que muitas de nossas igrejas (mesmo conservadoras e ortodoxas) estão repletas de cristãos que simplesmente pararam de crescer, que não apresentam uma vida de contínuo crescimento. O apóstolo Paulo escreve em 2Coríntios 3.18: “E todos nós, com o rosto descoberto, contemplando a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, que é o Espírito”. O processo, descrito por aquele que de perseguidor tornou-se perseguido por amor a Cristo, é de alguém que passa por um processo crescente de assemelhar-se a Cristo. A ideia é que aquilo que hoje eu reflito de Cristo é mais do que ontem, assim como menos do que amanhã. Ao crescer em Cristo eu, a cada dia, mostro mais da glória do Senhor.

No entanto, se queremos ser uma igreja cristocêntrica, precisamos assumir um compromisso com a transformação contínua de nossos membros. Tendo ocupado a função de pastor por quase trinta anos em minha vida, conheço de perto a dificuldade de líderes espirituais em desafiar continuamente os membros de suas igrejas a crescerem em Cristo. Com frequência encontramos membros que, pelas mais variadas razões, não querem entregar a Cristo algum aspecto de suas vidas. Pessoalmente já ouvi desculpas como “minha família toda é assim”, “eu fui criado assim” e “este é meu perfil psicológico” para justificar o não crescimento em aspectos claros da vontade de Deus. John Ortberg, em seu livro A Vida Que Você Sempre Quis, descreve um caso que teve em uma das igrejas que pastoreou:

“Álvaro não estava mudando. Ele já havia sido um jovem implicante, cresceu e se tornou um velho implicante. Mas ainda mais preocupante que sua falta de mudança era que ninguém estava surpreso com isso. Era como se todos simplesmente esperassem que sua alma permanecesse seca e amarga ano após ano, década após década. Ninguém parecia incomodado por esta situação. Não era uma anomalia que fazia as pessoas coçarem a cabeça sem ter o que dizer... A equipe pastoral tinha algumas expectativas. Nós esperávamos que Álvaro afirmasse determinadas crenças religiosas. Nós esperávamos que ele frequentasse as celebrações, lesse a Bíblia, sustentasse financeiramente a igreja, orasse regularmente e evitasse certos pecados. Mas aqui está o que não esperávamos: nós não esperávamos que ele se tornasse mais e mais como Jesus seria se estivesse no lugar de Álvaro.”[1]

O evangelho não termina seu impacto na nossa salvação, mas continua com nossa intimidade com Cristo, com nosso crescente entendimento de quem ele é e, movidos pelo ministério do Espírito Santo, por fim com nossa transformação para a glória de Deus Pai.

Realmente parece que, com muita frequência, nossas igrejas não esperam que seus membros estejam realmente crescendo. Como afirma o pastor John Ortberg no texto acima, estamos satisfeitos com que eles não apresentem pecados escandalosos e que tenham uma vida “comportada” ao invés de transformada. Uma baixa expectativa atrai muita gente, uma alta expectativa afasta muitos. É importante destacar que não estou falando de legalismo ou de expectativas perfeccionistas. Somos aceitos e permanecemos aceitos por Deus com base única e exclusivamente na obra de Cristo na cruz. Mas o evangelho não termina seu impacto na nossa salvação. O evangelho continua com nossa intimidade com Cristo, com nosso crescente entendimento de quem ele é e, movidos pelo ministério do Espírito Santo, por fim com nossa transformação para a glória de Deus Pai.

Quando um pastor ou líder espiritual negligencia o crescimento de seus membros devido à resistência destes em crescer, esse líder, ao invés de amá-los, está roubando deles aquilo que o próprio Deus sonhou para eles. Na mesma passagem de 2Coríntios Paulo deixa claro qual é o alvo de nosso crescimento: a semelhança de Cristo Jesus. Uma igreja cristocêntrica não pode ter outro alvo para seus membros. O alvo de uma igreja onde Cristo é o centro é que estejamos todos caminhando rumo à semelhança de Cristo.

Em Efésios 4.11-13, Paulo escreve: “E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de pessoa madura, à medida da estatura da plenitude de Cristo”.

Repare a associação íntima que a Palavra faz da edificação do corpo de Cristo com o atingir a medida da plenitude de Cristo. É bastante razoável entender que, ao descrever a plenitude da estatura de Cristo, Paulo esteja falando da igreja como um todo. Ou seja, em minha vida, eu apresento alguns aspectos de semelhança com Cristo, minha esposa complementa essa imagem em outros aspectos, mas mesmo nós dois juntos não representamos plenamente a Cristo. No entanto, à medida que outros irmãos e irmãs se unem a nós, na coletividade vamos apresentar ao mundo a imagem de Cristo. Contudo, para isso cada um de nós precisa estar comprometido com (1) a unidade na fé, não podendo manter crenças divergentes sobre quem é o centro da igreja, e com (2) o conhecimento do Filho de Deus, pois precisamos conhecer e crescer em conhecer quem é Jesus. Por fim, precisamos estar comprometidos com a (3) maturidade espiritual como nosso alvo de vida, uma vez que nosso compromisso é o de nos tornarmos adultos espirituais e não meramente atingir um padrão moral mínimo e aceitável.

Um importante conceito nesta discussão é de onde vem a transformação da qual estamos falando. Essa transformação não é fruto de esforço pessoal ou de programas muito bem elaborados, ainda que ambos os elementos tenham que estar presentes. A transformação contínua é tanto individual, ainda que no contexto da comunidade, quanto realizada pelo Espírito Santo. Se fosse fruto de esforço individual apenas, o cristão que cresce em semelhança a Cristo poderia se gloriar de sua capacidade ou de seu esforço. Se o crescimento espiritual fosse fruto exclusivamente de programas bem preparados e conduzidos, então uma vez mais o segredo do crescimento seria resultado do esforço e capacidade humanos.

Novamente, na passagem de 2Coríntios 3.18, Paulo nos fala que “somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, que é o Espírito”. A voz reflexiva usada no texto é fundamental. O cristão não está “se transformando”, mas sendo transformado pelo Espírito de Deus. Essa realidade não nos isenta de nos dedicarmos ao crescimento. Duas passagens nos facilitam compreender essa dinâmica de esforço pessoal em plena sintonia com o poder de Deus.

Observe a passagem de Filipenses 2.12-13: “Assim, meus amados, como vocês sempre obedeceram, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvam a sua salvação com temor e tremor, porque Deus é quem efetua em vocês tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”.

“Há um processo espiritual em que, quando eu me disponho a obedecer, o Espírito provê a força e o poder para a transformação.”

Nessa passagem Paulo exorta os cristãos a obedecer e a pôr em ação a sua salvação. Essa primeira frase parece indicar um esforço pessoal, parece apontar para a necessidade de empenho e sacrifício para seguir as instruções dadas. No entanto, no verso seguinte, o apóstolo declara que tanto o querer como o realizar são obra de Deus. Há um processo espiritual em que, quando eu me disponho a obedecer, o Espírito provê a força e o poder para a transformação. Não é um processo mágico ou simplório. Há momentos em que o Espírito vai me deixar lutar com aquilo que não consigo mudar, para cumprir seus propósitos (por exemplo, no caso do “espinho na carne”; 1Co 12.7-10).

Uma segunda passagem é Colossenses 1.29: “É para esse fim que eu me empenho, esforçando-me o mais possível, segundo o poder de Cristo que opera poderosamente em mim”. Após declarar seu chamado, Paulo expressa essa dinâmica espiritual de esforço e poder. A frase é uma construção bastante simples, mas de difícil compreensão. A palavra para “esforçando-me” é da mesma raiz de onde temos a palavra “agonizar” em português. Assim, Paulo está declarando que se esforça ao máximo, a ponto de lhe ser dolorido, a ponto de ter um custo para ele. Assim, ele dá tudo de si para cumprir seu chamado. Ao mesmo tempo, ele ressalta que esse esforço é conforme ou “segundo” esse poder sobrenatural que Deus provê. Como cristãos somos chamados a buscar transformação contínua, mas não em nossas próprias forças (nós não as temos), mas por meio das forças que Deus provê.

O segundo ponto é que essa transformação não é resultado de programas ou ações humanas. Isso não significa que não devemos nos esforçar como líderes para desenvolver e implementar programas e ações que sejam facilitadores de transformação. A ressalva que quero fazer é que a transformação em si não vem do programa ou mesmo da liderança. Estas apenas facilitam esse crescimento.

Observe comigo a passagem de 1Coríntios 3.5-9: “Quem é Apolo? E quem é Paulo? São servos por meio de quem vocês creram, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um. Eu plantei, Apolo regou, mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento. Ora, o que planta e o que rega são um, e cada um receberá a sua recompensa de acordo com o seu próprio trabalho. Porque nós somos cooperadores de Deus, e vocês são lavoura de Deus e edifício de Deus”.

Repare, de modo particular, o verso 7: “De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento”. Dessa forma, uma igreja cristocêntrica busca fazer todo o possível para a transformação contínua de seus membros, mas em plena dependência e sintonia com Deus, pois o crescimento vem apenas dele.

Logo, diante desta marca de comprometer-se com a transformação contínua de seus membros, uma igreja cristocêntrica:

  1. Preocupa-se em fazer a vontade de Deus conforme revelada na Palavra. Com muita frequência vemos igrejas que buscam aliviar ou amenizar a vontade de Deus. Pastores de destaque procuram alinhar a vontade de Deus com o paladar de nossos dias (talvez por isso sejam famosos). Sua preocupação não é a vontade de Deus, mas os índices de aceitação, o quanto são acolhidos e admirados por sua igreja e, com frequência, pelo mundo.
  2. Não se acomoda com um crescimento medíocre ou com a estagnação espiritual de seus membros. Crendo que o alvo é a maturidade, a medida de Cristo para todo cristão, uma igreja cristocêntrica continua a buscar o amadurecimento de cada membro, não visando um padrão uniforme, mas levando cada um a crescer continuamente em Cristo.
  3. Buscar desenvolver os melhores programas que consegue para facilitar o crescimento de seus membros. Isso é feito com todo empenho e dedicação, mas buscando ao mesmo tempo ouvir as instruções e orientações daquele que dá todo crescimento, Deus.

Nota

  1. John Ortberg, A Vida Que Você sempre Quis (São Paulo: Editora Vida, 2003), p. 45.

Daniel Lima é doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary. Autor e preletor, exerce um ministério na formação e mentoreamento de pastores e líderes.

sumário Revista Chamada Agosto 2022

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