A fé cristã foi perdida durante a idade média

Trecho do Livro: Lendas Urbanas da História da Igreja

Mitos históricos muitas vezes dizem mais sobre a situação contemporânea do que sobre o passado. Que tipo de situação cultural e religiosa entre os cristãos protestantes contribui para esse mito da “Idade das Trevas”? A igreja tem a tendência de exagerar o seu próprio progresso na fé e a sua proximidade da verdade, usando gerações passadas como um contraste para novas direções ou ensinos mais desenvolvidos. Embora os crentes possam usar essa abordagem para trazer entendimento e clareza, ela pode sair do controle quando eles a levam ao extremo.

O trabalho do Espírito

Em Atos 2, o Espírito desceu sobre os cristãos, um evento que a Bíblia chama de dia de Pentecostes (At 2.1). A partir daquele momento, os seguidores de Jesus eram habitados pelo Espírito Santo. Cada novo convertido recebia o Espírito, e, em todos os casos, para a vida inteira. Isso ecoa a predição de Jesus, que ele fez aos discípulos na noite anterior à sua traição: “E eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro Conselheiro para estar com vocês para sempre” (Jo 14.16).

Se acreditarmos no ministério do Espírito que começou em Atos 2, precisamos presumir que ele continuou a trabalhar de maneira redentora no mundo, e não que ele tenha simplesmente parado sua obra por mil anos.

Um fio contínuo

Quem permaneceu fiel durante a suposta Idade das Trevas? Para avaliar a fidelidade de alguém ao verdadeiro ensino cristão, é necessário ver como ele falava da pessoa e obra de Jesus e os seus efeitos sobre nós. Embora esta não seja de forma alguma uma lista exaustiva dos fiéis durante esse período, ela serve como um ótimo ponto de partida na busca pela luz nessa era “escura” da história.

Gregório, o Grande (540-604), que serviu como bispo da igreja de Roma de 590 a 604, assumiu um papel cada vez mais poderoso na liderança da igreja no mundo. Muitos protestantes o consideram como o primeiro “papa” de verdade, em grande parte pela forma como ele pôde aplicar seus diversos dons administrativos em seu ofício eclesiástico. Gregório também escreveu uma longa série de reflexões sobre o livro de Jó, na qual comentou sobre a obra redentora de Jesus, dizendo: “Por isso, em nosso lugar, o Filho do Homem adentrou o ventre da Virgem; ali, por nós, ele foi feito Homem. A natureza, não o pecado, foi assumida por ele. Ele ofereceu um sacrifício por nós, ele entregou seu próprio corpo pelos pecadores”. A narrativa de que Jesus nasceu de uma virgem e que, sendo Deus e homem, sacrificou-se pelos pecadores, permanece sendo a essência da fé cristã ortodoxa.

Mais adiante nessa “Idade das Trevas”, um monge e teólogo chamado Anselmo de Cantuária (1033-1109) juntou a pessoa de Jesus – a saber, que ele é o Deus-homem – com a morte de Cristo para explicar melhor como Deus salva. Para isso, Anselmo escreveu: “Se for necessário, portanto, como aparenta ser, que o reino celestial seja composto de homens, e isso não pode ser efetuado a não ser que a satisfação antes mencionada seja realizada, a qual somente Deus pode fazer e ninguém além do homem precisa realizar, é necessário que o Deus-homem a faça”. Em outras palavras, se o céu será povoado por seres humanos cuja dívida do pecado foi paga, mas apenas Deus é capaz de pagá-la, então Jesus teve de ser tanto divino quanto humano. O foco de Anselmo nessa importante verdade central do ensino cristão mostra que, nos séculos XI e XII, o evangelho estava vivo e bem.

Outra testemunha impressionante do evangelho na Idade Média foi um teólogo que se destacou como a figura mais importante na igreja naquela época (e por bastante tempo depois disso): Tomás de Aquino (1225-1274). Em sua obra-prima, a Suma Teológica, ele afirmou que “a verdade da fé está contida no Escrito Sagrado [Escritura]”. Aquino também escreveu um comentário do livro de Romanos, o qual inclui fartas citações de todas as partes da Bíblia. Ao tratar de Romanos 1, escreveu sobre a importância do evangelho, argumentando que é por meio da fé na palavra que recebemos o perdão dos pecados, a santificação e a vida eterna. Ele argumentou que o evangelho “concede salvação [...] por meio da fé”. Aquino entendeu bem a importância central da Escritura e em aproximar as pessoas de Cristo.

Outras figuras importantes na Igreja Católica Romana da Idade Média se posicionaram sobre aquilo que acreditavam serem extremos doutrinários e abusos na prática. Ao fazê-lo, esses indivíduos iluminaram o caminho para o evangelho, enquanto destacavam as falhas da igreja em certas áreas. Dois ótimos exemplos se manifestaram pela verdade do cristianismo e contra a corrupção doutrinária na igreja católica. Quando o professor John Wycliffe (c. 1325-1384) testemunhou abusos de poder escandalosos entre o clero, viu-se atraído de volta para a Bíblia (ao invés da liderança da igreja) para receber orientação de Deus. Ele traduziu a Bíblia para o inglês, acreditando que a Escritura era suficiente para a salvação e uma vida piedosa. Semelhantemente, o professor universitário João Huss (c. 1369-1415), que viveu e ministrou na região de Praga, onde agora é a República Tcheca, lamentou os abusos na prática espiritual tais como a compra de indulgências e a veneração de relíquias. Assim como Wycliffe, ele também afirmou a Bíblia como a principal autoridade espiritual na vida dos cristãos. Huss foi eventualmente executado pela Igreja Católica Romana por suas opiniões.

Também não devemos nos esquecer que, ao longo da Idade Média, o Credo dos Apóstolos e o Credo Niceno preservaram as doutrinas básicas da fé cristã. Eles afirmavam repetidamente – em uma linguagem simples, que as pessoas comuns podiam entender – a verdade sobre o Deus trino assim como a pessoa e obra de Cristo, que morreu por nossos pecados e ressuscitou dos mortos. Sim, a teologia e prática medievais na igreja oficial tendiam a confundir a melodia básica do evangelho de Jesus Cristo, mas Deus garantiu que as verdades essenciais da fé continuassem a ser proclamadas desde a igreja primitiva e através da Idade Média. E a obra do Espírito Santo podia limpar a desordem, para que as pessoas pudessem responder com fé à verdade simples da fé cristã.

Aplicação

Deus sempre assegurou a presença de cristãos fiéis, pessoas que servissem como testemunhas da verdade da obra redentora divina no mundo. Logo, quando se trata da igreja, podemos confiar que Deus sempre teve um grupo de pessoas habitadas pelo Espírito, que continuou a trabalhar por meio de pessoas capacitadas ao longo da história eclesiástica. A dissipação desse mito da “Idade das Trevas” deve servir como um grande encorajamento para os cristãos de hoje. O Espírito Santo está operando no seu povo. Ele nunca cessa o seu ministério de atrair pessoas ao Pai antes do retorno de Cristo.

Em segundo lugar, faríamos bem em não superestimar nossa própria proximidade da verdade, enquanto rejeitamos eras inteiras tão facilmente. Ter consideração pelos outros (estejam eles vivos ou mortos há muito tempo) requer um senso de humildade em nós que o mundo desesperadamente precisa. A tentação de rejeitar o desconhecido permanece um perigo real para os crentes, pois podemos acabar reagindo com base na ignorância que presumimos ser conhecimento. Que nós possamos nos comprometer novamente a conhecer aqueles que existiram antes de nós, para aprender com eles, às vezes discordar deles (e de suas perspectivas), e outras vezes receber apoio deles ou de seus seguidores.

O conteúdo acima se trata de um trecho resumido da 14ª lenda do livro.

Lendas Urbanas da História da Igreja
sumário Revista Chamada Abril 2022

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