O credor impiedoso e consolo da cruz
Ainda que os tempos se tornem tenebrosos, junto à cruz do Gólgota temos consolo, seja pelo perdão, a reconciliação ou a responsabilidade com que o Senhor nos encarrega.
Uma das mais famosas sinagogas alemãs é a da cidade de Essen, não só por causa de sua beleza, mas também em razão de sua história singular. Na noite de 9 a 10 de novembro de 1938, na chamada “Noite dos Cristais”, também essa sinagoga foi incendiada por ódio aos judeus. Todo o seu interior foi consumido, e os agressores bem que gostariam de tê-la eliminado completamente. Contudo, devido à solidez de sua estrutura de concreto armado, a sinagoga não pôde ser demolida, e derrubá-la com uma explosão era impossível por causa das casas vizinhas. Assim, ela permaneceu como um monumento visível do ódio contra Deus e seu povo. Ao mesmo tempo, porém, ela também se tornou um refúgio salvador e um consolo para centenas de pessoas ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Essa história foi narrada pelo pastor Wilhelm Busch, que naquele tempo atuava em Essen e que escreveu o famoso livro Jesus unser Schicksal [Jesus, nosso destino].
Na noite em que se deu a destruição, pessoas dominadas pelo ódio invadiram a sinagoga e a incendiaram, gritando e proclamando por alto-falantes palavras de ordem nazistas. E aí então sobrou a ruína, queimada e devastada, mas como um sinal impossível de remover totalmente.
Perto do fim da guerra, chegaram os aliados e lançaram bombas incendiárias sobre cidades alemãs, inclusive sobre Essen. Muitos então passaram a procurar desesperadamente algum abrigo. Encontraram um só: a sinagoga, há muito tempo queimada. Centenas foram se abrigar ali. Seus fortes muros protegiam contra as detonações com as quais tudo em torno desabava. Como a sinagoga já tinha sido queimada, ela ofereceu abrigo a muita gente. Como ali o fogo já havia ardido, outros agora puderam abrigar-se nela.
Jovens e idosos, mulheres e homens, gente que alguns anos atrás ainda havia participado da gritaria ou até do incêndio, simpatizantes ou pessoas que simplesmente se haviam calado, ignorando tudo – todas as camadas sociais encontraram abrigo na sinagoga.
Isso nos lembra da cruz do Gólgota, na qual Jesus consumou a obra redentora.
Consolo no perdão
“Ele nos libertou do poder das trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado, em quem temos a redenção, a remissão dos pecados” (Cl 1.13-14).
Perdão significa “dispensa” – quando, por exemplo, alguém livra um devedor da sua dívida e o dispensa sem cobrar restituição ou sem guardar rancor.
Os dois bodes expiatórios na oferta pelo pecado ilustram isso (Lv 16.4-10). Um dos bodes era sacrificado e o outro era expulso para o deserto. Assim, o pecado de Israel era eliminado do meio do povo.
Algo similar acontecia com a lei da purificação da lepra. Recorria-se a duas aves (Lv 14.1-7). Uma delas seria imolada, a outra seria solta. O próprio Jesus esclarece isso por meio de uma parábola:
“Por isso, o Reino dos Céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos. E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo ele, porém, com que pagar, o senhor desse servo ordenou que fossem vendidos ele, a mulher, os filhos e tudo o que possuía e que, assim, a dívida fosse paga. Então o servo, caindo aos pés dele, implorava: ‘Tenha paciência comigo, e pagarei tudo ao senhor.’ E o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida” (Mt 18.23-27).
Vamos tentar visualizar o inimaginável tamanho dessa dívida: um talento valia seis mil denários. Um denário era o salário de um dia de um trabalhador. Dez mil talentos seriam o salário de sessenta milhões de dias de trabalho ou de 250 mil anos de trabalho.
O próprio Jesus sacrificou-se pelos nossos pecados, e por isso somos postos em liberdade. Perdoar e dispensar significa, nesse contexto, que nossa dívida nunca mais será cobrada. Ela foi perdoada de uma vez por todas.
No texto original, as expressões “ele nos libertou” e “nos transportou”, bem como “em quem temos a redenção”, estão num tempo verbal que designa uma ação única, completa e pontual, com começo e fim claramente delimitados. A salvação se deu de uma vez por todas e é irreversível. “Está consumado”.
Deus perdoa plena e definitivamente. O pecado nunca mais nos é cobrado. “Pois perdoarei as suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei” (Jr 31.34).
O perdão chega ao ponto de liquidar plenamente os pecados do passado, do presente e do futuro da pessoa (Hb 7.27; 9.12; 10.10,14). Se não fosse assim, alguém redimido ainda poderia se perder. Todavia, quem está redimido, está redimido e não se perderá mais. Ele foi definitivamente retirado do reino das trevas e introduzido no reino do Filho do seu amor. O perdão liberta do soberano anterior e nos submete a um outro – assim como os escravos às vezes eram resgatados.
Por isso, a conversão a Jesus implica simultaneamente a libertação de todo o domínio demoníaco. Por isso não encontramos mais expulsões de demônios nas cartas didáticas apostólicas. Colossenses 2.14-15 sublinha isso:
“Cancelando o escrito de dívida que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, cravando-o na cruz. E, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na cruz”.
No século XIX, Johann Heinrich Wichern estabeleceu perto de Hamburgo um lar cristão para jovens fracassados. Certo dia, o juizado de menores lhe encaminhou mais um rapaz com o pedido de recebê-lo. O juizado enviou também um relatório aterrador sobre o rapaz. A jovem vida dele já estava arruinada por maus-tratos e malfeitos. Depois de ler a carta, Wichern olhou para o rapaz e disse: “Aqui você pode recomeçar porque também por você Jesus morreu e ressuscitou”.
Em seguida segurou o relatório do juizado sobre uma vela acesa e disse que no amor de Jesus a culpa do rapaz poderia queimar do mesmo modo como aquele papel. Bastaria que ele pedisse. Depois, Wichern aconselhou o rapaz a não contar nada a ninguém a respeito do seu passado para que não pudesse mais ser ligado àquilo.
“Aqui você se tornará um novo homem com a ajuda de Deus”, disse Johann Heinrich Wichern.
A obra consumada por Jesus na cruz realizou duas coisas.
Primeiro: não estamos mais sob culpa. Wilfried Plock escreve a respeito da exclamação de Jesus de “Está consumado!” (Jo 19.30): “A palavra grega ‘tetelestai’ também poderia ser traduzida como ‘está pago’ ou ‘está feito’. O dr. Arnold G. Fruchtenbaum acrescenta mais um outro aspecto interessante: ‘O exato sentido dessa palavra revelou-se há alguns anos quando arqueólogos desenterraram algo como uma agência tributária. Eles encontraram uma pilha de notificações. Atravessando cada uma constava uma palavra: tetelestai, o que significa “está consumada”, mas num sentido específico: completamente paga. A pena devida pelos pecados foi plenamente paga pela morte de Jesus. Os milhares de animais sacrificados nos séculos precedentes foram algo como prestações, mas agora a conta foi liquidada inteiramente. Daí esse tetelestai: integralmente pago’”. Não há mais nada que possamos acrescentar a essa redenção.
Segundo: o diabo não tem mais direitos sobre as pessoas crentes em Jesus. Ele não pode mais acusar. Satanás não dispõe mais de nenhuma arma que possa apontar contra nós, nem de qualquer argumento para nos acusar (1Jo 5.18). Para isso existe uma bela ilustração no Antigo Testamento. Golias, como imagem do diabo, apresentou-se e blasfemou contra Israel e o seu Deus. Desafiou Israel ao zombar dele. Então Davi o encarou como imagem de Cristo, vencendo-o por meio da confiança em Deus. Mais adiante consta: “Davi pegou a cabeça do filisteu e a levou para Jerusalém. Porém as armas dele Davi colocou em sua própria tenda” (1Sm 17.54).
Contudo, perdão também implica responsabilidade. A parábola do Senhor Jesus sobre o devedor foi sua resposta a uma pergunta de Pedro: “‘Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes?’ Jesus respondeu: ‘Não digo a você que perdoe até sete vezes, mas até setenta vezes sete’” (Mt 18.21-22).
O cristão que foi perdoado tem como supremo dever perdoar também aos outros. Por isso, o Senhor prossegue com a parábola e diz: “Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários. Agarrando-o, começou a sufocá-lo, dizendo: ‘Pague-me o que você me deve’. Então o seu conservo, caindo aos pés dele, pedia: ‘Tenha paciência comigo, e pagarei tudo a você’. Ele, porém, não quis. Pelo contrário, foi e o lançou na prisão, até que saldasse a dívida” (Mt 18.28-30).
Perdoar continua sendo uma santa obrigação. Todo aquele que não perdoar, acabará sofrendo.
Certa vez fui convidado a uma conferência num lar de férias cristão alemão. De manhã, o diretor da casa leu uma passagem de um devocionário que me comoveu muito. Pedi-lhe que me emprestasse o livro e acabei ganhando-o de presente. O texto lido destinava-se a 17 de junho, embora aquele dia fosse 15 de março. Quando perguntei o porquê, ele me disse que fazia algo assim de vez em quando. Simplesmente selecionava um texto que o tocasse. Para mim não poderia ter sido mais apropriado: “Deus sempre chega o mais tardar a tempo”.
O autor do livro é um reconhecido psicoterapeuta, professor e fundador de várias instituições de ensino, mas, acima de tudo, cristão. Sobre o perdão, ele diz: “Perdão e saúde mental andam juntos. Quem não consegue perdoar, sobrecarrega seus órgãos. Faz o seu corpo adoecer... Um falso perdão corresponde a uma repressão e desperta distúrbios psicossomáticos. Quem encobre ou reprime algo, quem guarda reservas ou preserva ferimentos não é libertado. O corpo reage, os órgãos protestam, a pessoa gemerá. Um perdão autêntico é graça, uma dádiva e não um esforço por conta própria. Ele liberta, faz o corpo, a alma e o espírito sarar e não sobrecarrega”.[1]
Quem perdoa, liberta outros e a si mesmo.
Todavia, perdoar não significa banalizar a culpa e aprovar a injustiça, nem fingir que nada tenha acontecido. É preciso falar sobre a questão, condenar o pecado e perdoá-lo. A Palavra de Deus e o Espírito Santo em nossa consciência mencionam o pecado, o condenam e nos atribuem o perdão se reconhecermos a culpa como tal e a confessarmos.
Consolo na reconciliação
“E que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus. E vocês que, no passado, eram estranhos e inimigos no entendimento pelas obras más que praticavam, agora, porém, ele os reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentá-los diante dele santos, inculpáveis e irrepreensíveis, se é que vocês permanecem na fé, alicerçados e firmes, não se deixando afastar da esperança do evangelho que você ouviram e que foi pregado a toda criatura debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, me tornei ministro” (Cl 1.20-23).
Reconciliar significa “mudar completamente”. Não foi Deus que teve de mudar. Ele sempre foi amor e sempre teve no coração o bem dos homens, mas ele alterou as circunstâncias ao proporcionar pleno acesso à graça por meio da morte expiatória de Jesus. Em Jesus, ele gerou uma mudança completa. “... Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos seres humanos e nos confiando a palavra da reconciliação” (2Co 5.19).
Não se trata aqui de um perdão e uma reconciliação baratos. O preço é o sangue de Jesus e a cruz. Realmente fomos comprados por alto preço. Em fevereiro de 2016, o jogador de futebol Gareth Bale protagonizou o valor de transferência mais elevado até então, no montante de 101 milhões de euros para migrar do Tottenham Hotspurs para o Real Madrid. No entanto, na opinião do técnico, ele não produziu aquilo que valia por aquela quantia. Ele não foi escalado, permaneceu no banco de reservas ou na arquibancada, os jornais falaram mal dele, foi vaiado e acabou novamente abandonando Madri.
Não é assim com Deus. Diante dele você tem o “valor de Jesus”. Você foi definitivamente adaptado ao céu. O psiquiatra americano Chris Thurman colecionou certa vez mais de trinta “mentiras em que cremos como cristãos”. Em todas as áreas da vida ele encontrou mentiras que consideramos verdades e que praticamos decididamente. Uma dessas mentiras ele enuncia como: “Você só vale tanto quanto o seu desempenho”. A respeito disso, ele diz: “Muitas dessas pessoas acossadas chegam [assim] ao limiar do suicídio...”.[2]
A Palavra de Deus testifica que “Deus fez isso para manifestar a sua justiça, por ter ele, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos, tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, a fim de que o próprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.25-26).
Consolo na responsabilidade
“Se é que vocês permanecem na fé, alicerçados e firmes, não se deixando afastar da esperança do evangelho que vocês ouviram e que foi pregado a toda criatura debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, me tornei ministro” (Cl 1.23).
“Se não permanecermos fundamentados e firmes na fé, mas nos abrirmos ao legalismo, ascetismo, filosofias, pecados, desobediência e outras coisas antibíblicas, nossa santificação prática sofrerá prejuízo, e ao fim teremos de responder por isso perante o tribunal de Cristo.”
E o que é que significa isso? Acaso de fato o cristão ainda pode se perder? Seriam, afinal, seus próprios esforços e suas obras ainda responsáveis por sua salvação ou perdição?
Já constatamos que o perdão e a reconciliação têm validade eterna e que são inalteráveis. Eles provêm da graça total e perfeita de Deus. Por isso, Paulo também escreve que “ele [n]os reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte” (Cl 1.22). Trata-se aqui de um ato completo, mas essa redenção destina-se a uma finalidade, a saber, “para apresentá-los diante dele santos, inculpáveis e irrepreensíveis”. Se não permanecermos fundamentados e firmes na fé, mas nos abrirmos ao legalismo, ascetismo, filosofias, pecados, desobediência e outras coisas antibíblicas (Cl 2), nossa santificação prática sofrerá prejuízo, e ao fim teremos de responder por isso perante o tribunal de Cristo: “A obra de cada um se tornará manifesta, pois o Dia a demonstrará. Porque será revelada pelo fogo, e o fogo provará qual é a obra de cada um” (1Co 3.13).
É bem nesse sentido que Paulo alerta: “Porque vocês foram comprados por preço. Agora, pois, glorifiquem a Deus no corpo de vocês” (1Co 6.20). “Vocês foram comprados por preço; não se tornem escravos de homens” (1Co 7.23).
Resumindo, pode-se dizer que diante de Deus não existem casos perdidos. Jesus consumou tudo para todos, e assim existe uma redenção perfeita para todos os que se dirigem a Jesus, mas nós também deveríamos perdoar aos outros e ser obedientes de acordo com a redenção.
Notas
- Reinhold Ruthe, Du bist an meiner Seite (Joh. Brendow & Sohn Verlag GmbH, 2011).
- Ibid.