Os ensinos e a natureza de Jesus no Alcorão

Esta série examina os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não cristãos. Nesta edição, continuamos vendo o que o Alcorão fala sobre Jesus.

Parte 7

Os ensinos e a natureza de Jesus no Alcorão

O Alcorão ensina que o Deus (Alá) Jesus (Isa) ensinou o livro, a sabedoria, a lei e o evangelho.  Ele atribui o evangelho a Jesus e cita um discurso do menino Jesus no berço, no qual, conforme já mencionamos na parte 5 (edição de agosto), ele defende sua mãe contra as acusações dos judeus. O Alcorão ainda contém outras citações atribuídas a Jesus, que passaremos a citar e examinar.

1. A missão geral de Jesus, recebida de Alá, é vista como segue: “Entregamos-lhe o evangelho contendo uma diretriz e uma luz, confirmando a Torá, que existiu antes dele, uma orientação e admoestação para os tementes a Deus” (Surata 5.46).

Portanto, Deus confiou o evangelho a Jesus, que veio ao mundo para confirmar a lei de Moisés e para ser luz e orientação para os que temessem a Deus. A primeira metade dessa frase lembra o que Jesus mesmo disso no evangelho de Mateus: “... não vim abolir [a Lei ou os Profetas], mas cumprir” (Mt 5.17).

2. Jesus é um mensageiro para os judeus: ele traz um sinal do seu Deus e seus milagres são grandiosos, mas o verdadeiro objetivo da sua mensagem e dos seus atos consiste em mostrar aos homens que devem adorar somente a Deus (Alá): “... Eis que Alá é o meu Senhor e o Senhor de vocês, por isso sirvam-no. Este é um caminho correto” (Surata 3.51; cf. tb. 3.49-50). A declaração lembra as palavras de Jesus no evangelho de João: “Estou voltando para meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês” (Jo 20.17).

Aqui Jesus é posicionado numa longa série de profetas enviados por Deus (Alá) para levar sua mensagem aos homens, que estavam sob os seus cuidados e sua onipotência. Mais sobre isso quando falarmos da natureza de Jesus.

3. Segundo o Alcorão, a reivindicação de Jesus é: “Vim a vocês com a sabedoria e para lhes explicar algo daquilo sobre o que vocês divergem” (Surata 43.63). Essa surata fala de Jesus de modo reverente: ele vem “com nítidos sinais” e traz sabedoria aos homens. Ao mesmo tempo, porém, aponta para a limitação do seu conhecimento, porque ele só explica algumas das questões controversas. A surata encerra-se com as seguintes palavras dele: “Portanto, temam Alá e obedeçam-lhe” – novamente um Jesus humano e totalmente submisso a Alá.

4. Na passagem da Surata 3.52 encontramos o apelo do Jesus do Alcorão: “Quem são os que me ajudam em direção a Alá [outra tradução: na causa de Alá]?”. Tratarei com mais detalhes desse apelo no comentário sobre os adeptos de Jesus.

5. No Alcorão, Jesus nega a pergunta de Alá sobre ele talvez ter reivindicado ser divino: “E quando Alá disser: ‘Ó Jesus, filho de Maria, acaso disseste aos homens: Admiti a mim e à minha mãe como dois deuses além de Alá?’, ele dirá: ‘Louvado sejas! Não me cabe dizer algo que não seja verdade. Se o tivesse dito, tu o saberias. Tu sabes o que se passa na minha alma; eu, porém, não sei o que se passa na tua alma. Eis que tu és o conhecedor dos mistérios. Nada mais eu lhes disse do que me determinaste, ou seja: ‘Servi a Alá, meu Senhor e vosso Senhor.’ E fui testemunha contra eles enquanto vivi entre eles. Todavia, desde que me tomaste para ti, tu és o seu vigia e testemunha de todas as coisas. Se tu os punires, eis que serão teus servos, e se os perdoares, serás o Poderoso, o Sábio” (Surata 5.116-118).

Aqui o Jesus (Isa) do Alcorão testifica que ele seria apenas um servo de Deus (Alá) que conhece seus pensamentos e todos os mistérios. Alá é o eterno vigia dos homens, enquanto Jesus foi só um vigia temporal. Alá é testemunha de todas as coisas, o Poderoso e Sábio; punição e perdão cabem a ele, uma vez que os homens são seus servos.

Portanto, essa passagem do Alcorão constitui uma clara limitação do papel de Jesus quanto a tempo, conhecimento e poder. Ele vem com uma mensagem transitória dirigida somente aos judeus. Quando falarmos da divindade de Jesus, voltaremos mais uma vez a essa passagem do Alcorão.

6. O Jesus do Alcorão anuncia a vinda de Maomé. Surata 61.6 diz: “E quando Jesus, o filho de Maria, disse: ‘Ó filhos de Israel, eis que sou o enviado de Alá a vós, confirmando a Torá, que existiu antes de mim, e anunciando um enviado que haverá de vir depois de mim, cujo nome é Ahmad’. Como, porém, ele veio a eles com os claros sinais, eles disseram: ‘Tu és um evidente feiticeiro’”.

Essa é uma das passagens controvertidas do Alcorão. O nome Ahmad também pode ser lido como forma verbal “abençoarei”, o que – em vez de “cujo nome é Ahmad” – resultaria na leitura “cujo nome abençoarei”, aplicável a um profeta futuro anônimo. No entanto, Ahmad como nome pessoal caberia melhor no contexto, e os muçulmanos são unânimes em afirmar que se trata aqui do seu profeta – mas por que então o Alcorão chama o seu profeta quatro vezes de “Maomé” e apenas aqui lhe dá um outro nome?

Os adeptos de Jesus

Conforme já mencionamos acima, o Jesus do Alcorão é um profeta enviado por Alá aos judeus; todavia, estes o acusaram de feitiçaria. Alguns, porém, creram nele. Nós já mencionamos que Jesus pergunta por seus “auxiliares” (árabe: ansar). O mesmo termo é atribuído aos adeptos de Maomé em Medina, quando ele abandonou Meca. Uma outra designação para os discípulos de Jesus é haware’in, que aparece cinco vezes no Alcorão (Surata 3.52; 5.111 etc.). O árabe haware’in assemelha-se ao hebraico haverim (“amigos”), que na época designava os discípulos do judaísmo, o que pode remeter ao conhecimento de que os discípulos de Jesus eram judeus. Por outro lado, o Alcorão declara duas vezes que os discípulos de Jesus eram muçulmanos, ou seja, crentes islâmicos.

Jesus é um dos 25 profetas citados no Alcorão. Na história do seu nascimento, ele fala ainda como bebê no berço e diz: “Eis que sou servo de Alá. Ele me deu o livro e me tornou profeta” (Surata 19.30).

Durante o período de Meca, o relacionamento entre muçulmanos e cristãos parece ter sido amigável, mas quando Maomé se estabeleceu em Medina e o islã se fortaleceu cada vez mais, esse relacionamento piorou – uma realidade que se revela num posicionamento diferente do Alcorão em relação aos cristãos. Embora permaneçam certos elementos de uma postura positiva, o Alcorão passa a criticar o monasticismo como algo que Deus não teria ordenado, e chega a designar alguns dos ascetas como devassos disfarçados (Surata 57.27). Entretanto, os cristãos continuam sendo chamados de amigos dos “fiéis” (ou seja, dos muçulmanos, a quem se deve dar preferência em comparação com os costumes judeus).

Numa outra passagem, o Alcorão descreve aqueles que odeiam os muçulmanos (ou seja, os judeus) e aqueles que os prezam (os cristãos) como parceiros de opinião, ambos contrários aos muçulmanos (Surata 5.51). E numa surata muito tardia, datada dos fins do período de Medina, muitos dos rabinos e monges são chamados de ladrões e traidores depravados e de ameaça para todos os que desejam trilhar os caminhos de Alá. Eles acumulam ouro e prata e caminham para sua justa punição nas câmaras de tortura do inferno (Surata 9.34).

A surata seguinte, um tanto estranha, também equipara judeus e cristãos: “Recebem como senhores os seus rabinos e monges, junto com Alá e o Messias, o filho de Maria, quando lhes fora dado o mandamento de servir a um só Deus...” (Surata 9.31). Existe a teoria de que os primeiros mestres de Maomé teriam pertencido a uma seita judaica influenciada pelo ascetismo cristão e que teria assumido deste certos rituais cristãos. Essa teoria tem apoio no fato de que o relacionamento entre judeus e cristãos era tenso naquela época, mas não hostil, e que a fé judaica e a cristã não ficam bem claras no Alcorão.

Assim como ocorre com a maioria dos temas no Alcorão, a imagem total permanece bastante vaga.

A natureza de Jesus

Passemos agora a investigar detidamente a natureza de Jesus tal como se depreende da sua personalidade, de suas doutrinas e de seus atos. Examinaremos seus títulos e diversos argumentos apresentados contra ele, bem como todo o modo pelo qual ele é apresentado. Por um lado, o tratamento de Jesus no Alcorão é tendenciosamente apologético e, por outro, polêmico.

O Alcorão apresenta a natureza de Jesus sob diferentes aspectos:

1. Jesus como ser humano comum

Por um lado, o Alcorão enfatiza o nascimento sobrenatural de Jesus e o apresenta como abençoado por Deus (Alá), obediente à sua mãe e de nenhum modo rebelde ou mau. Por outro lado, porém, Jesus confessa ser apenas um servo de Deus, e o Alcorão constata de modo inequívoco: “Eis que diante de Alá Jesus é igual a Adão: ele foi criado da terra e depois lhe disse: ‘Sê!’ e ele passou a ser” (Surata 3.59). Essa passagem deixa claro que nem Jesus nem Adão são filhos de Deus, ainda que não tivessem um pai humano. E na Surata 15.29 o próprio Alá fala do nascimento de Adão do mesmo modo como fala do de Jesus: “E quando o formei [Adão] e lhe inspirei do meu espírito...”.

Portanto, aqui Jesus é comparado com o primeiro homem, mas ele se equipara não só a Adão, mas é tão humano como qualquer outro homem, tal como esclarece a seguinte passagem do Alcorão: “O Messias, o filho de Maria, não é nada senão um enviado; ele foi precedido de enviados e sua mãe era sincera. Ambos comeram alimento” (Surata 5.75). Por um lado, Jesus é um enviado de Deus e filho de uma mulher decente, mas por outro ele não está acima de outros homens ou enviados porque ele e sua mãe eram mortais comuns que tinham de comer como outras pessoas também.

2. Jesus como profeta

Jesus é um dos 25 profetas citados no Alcorão. Na história do seu nascimento, ele fala ainda como bebê no berço e diz: “Eis que sou servo de Alá. Ele me deu o livro e me tornou profeta” (Surata 19.30). O Jesus do Alcorão é um dos cinco maiores profetas de Deus (árabe: ulula’zm), geralmente identificados como Noé, Abraão, Moisés, Jesus e Maomé (Surata 33.7).

Ele também é chamado de “enviado”: “O Messias Jesus, o filho de Maria, é o enviado de Alá...” (Surata 4.171). Um enviado é um grande profeta que transmite uma revelação divina escrita. Assim, o Pentateuco (al-tawrah) foi revelado a Moisés; a Davi, os salmos (al-zabur); a Jesus, o evangelho (al-injil); e, finalmente, a Maomé, o Alcorão.

3. Jesus como a palavra

Segundo uma tradição cristã apócrifa, o anjo teria dito a Maria: “Não temas, Maria, porque... pela Sua palavra engravidarás”. O Jesus do Alcorão é apresentado de forma semelhante – mais de uma vez – como a “palavra”: “O Messias Jesus, o filho de Maria, é o enviado de Alá e de sua palavra, que ele depôs em Maria, e espírito dele” (Surata 4.171). É evidente a provável ligação entre a “palavra” desta citação do Alcorão e o “logos” no evangelho de João, em que Jesus é descrito como a palavra eterna de Deus revelada na terra. Para o Alcorão, a noção bíblica não é aceitável, e possivelmente o Alcorão segue aqui por uma trajetória similar à do antigo heresiarca Ário, que negava a plena divindade da Palavra e não a considerava como eterna nem consubstancial com o Pai, mas subordinada a Deus, que a teria criado do nada.

4. Jesus como Espírito de Deus

No Alcorão, Alá testifica ter enviado seu Espírito sobre Maria. No entanto, o termo “Espírito” não é bem definível neste caso porque excede o conhecimento humano (Surata 17.85). Considerem-se, porém, as duas seguintes declarações do Alcorão: a primeira, que Alá ajudou Jesus por meio do Espírito Santo a realizar os seus milagres (Surata 2.253). A segunda é que o próprio Jesus é chamado de “Espírito” (Surata 4.171). Possivelmente essa combinação permita concluir que Maomé soubesse de uma das seitas cristãs (como p. ex. os ebionitas) que afirmavam algo assim, ou que até concordasse com ela.

Ao mesmo tempo, muita coisa depõe a favor de que Maomé não estivesse familiarizado com a corrente dominante do pensamento teológico cristão segundo o qual o Espírito Santo é considerado uma das pessoas da Trindade.

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Outubro 2020

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