Cirilo de Jerusalém e a reconstrução do templo

Chama a atenção o quanto Cirilo, líder da igreja de Jerusalém (provavelmente grego), interpretava literalmente a profecia bíblica. Na sua época, o Império Romano ainda prevalecia e a área do templo ainda abrigava seus destroços. Por isso, ele pressupôs que o Anticristo haveria de chegar quando os restos do templo tivessem sido completamente aniquilados e literalmente não houvesse mais pedra sobre pedra.

A Igreja Primitiva defendia a interpretação de que ela seria o “novo Israel”, ou a “verdadeira circuncisão”, e a “semente de Abraão”. Por isso ela não cria no arrebatamento antes da tribulação, mas ensinava que os cristãos também teriam de passar por esse período de terror e ser perseguidos pelo Anticristo (no entanto, a Igreja Primitiva cria que, no fim dos tempos, o Israel “segundo a carne” reconheceria o seu Messias, seria salvo e incorporado à igreja). No século 19 surgiu então a ideia de que seria necessário distinguir entre Israel e a igreja, e que por isso os cristãos serão arrebatados antes da tribulação, pois durante esse período de terror o povo judeu será preparado para a vinda do Messias e Deus retomará o fio da meada com seu primeiro amor. Essa é a posição defendida pela maioria dos evangélicos atuais.

Como hoje o Império Romano não existe mais, não podemos mais assumir literalmente a interpretação de Cirilo e da Igreja Primitiva. Por isso, a maioria dos intérpretes pressupõe um Império Romano restaurado nos tempos finais. Enxerga-se uma indicação disso na visão de Nabucodonosor, na qual os quatro grandes impérios – Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma – são representados por meio de uma estátua. O quarto império tem ligação com um último império, misto e mais fraco, que poderia ser o Império Romano restaurado (Dn 2.24-49).

Nos dias de Cirilo, os imperadores romanos haviam se tornado cristãos. No entanto, algum tempo depois de Cirilo ter divulgado sua interpretação, houve três anos do reinado de um imperador que se tornou conhecido como Juliano, o Apóstata. Ele quis restaurar o paganismo. Não perseguiu os cristãos abertamente, o que teria sido suicídio político, mas, para “provar” que o cristianismo estava errado, ele teve uma ideia pérfida: prometeu aos judeus reconstruir o templo em Jerusalém. Com isso ele queria contestar as profecias do Senhor Jesus no monte das Oliveiras (Mt 24–25). O sinédrio judeu em Tiberíades não se entusiasmou nem um pouco com essa ideia, mas muitos judeus em todo o Império Romano começaram a coletar dinheiro para o projeto. A área do templo foi desimpedida e se levantaram andaimes de obra. Juliano, o Apóstata permitiu iniciar a aplicação concreta do seu plano.

Para Cirilo de Jerusalém, o caso era claro. Começara o fim dos tempos. A profecia bíblica se cumpria. Ele passou a pregar o arrependimento e esperava que o Anticristo logo se revelaria e se assentaria no templo reconstruído.

No entanto, tudo correu de outra forma. Um súbito terremoto e um misterioso incêndio destruíram o canteiro de obras na área do templo. Mais tarde, Cirilo relatou a respeito de sinais e milagres sobrenaturais que teriam acontecido nesse contexto – e, ao longo desse período, Juliano morreu durante uma campanha contra os persas.

O fim ainda não chegara. Os imperadores subsequentes não se atreveram mais a reverter a “cristianização” de Roma. O entulho na área do templo foi deixado propositadamente ali como memorial até que, no século 7, os muçulmanos árabes conquistaram Jerusalém e erigiram seu Domo da Rocha na área do templo.

Esta história pode nos ensinar a não nos estendermos demais na interpretação da palavra profética. Para Cirilo, os sinais dos tempos não poderiam ter sido mais claros. Em sua época também se alastrava a heresia de que Jesus não seria verdadeiramente Deus. Havia uma maciça degeneração espiritual entre os líderes eclesiásticos e na própria igreja. Cirilo estava entre os poucos fiéis, razão por que também teve de passar dezesseis anos no exílio com base em falsas acusações. – O grande teólogo Gregório de Nazianzo, por exemplo, um contemporâneo de Cirilo, resistiu por muito tempo a assumir uma liderança de igreja porque a maioria no Império Romano estava tão depravada em procedimento e doutrina que ele não queria ser um deles.

No entanto, tudo aconteceu de forma completamente diferente do que se esperava. Deus, que é misericordioso, cheio de graça, paciente e de grande bondade, interveio de forma surpreendente na história porque a plenitude dos gentios ainda não havia sido alcançada e ele queria salvar mais das suas criaturas (cf. Rm 11; 2Pe 3). De forma igualmente surpreendente, o Senhor dos Exércitos, a quem nada se iguala e cujos pensamentos e caminhos não são os nossos pensamentos e caminhos, poderia agir também nos nossos dias... embora, apesar de tudo, nós acompanhamos Cirilo ao clamar: “Maranata, vem, Senhor nosso!”.

René Malgo

René Malgo é encarregado do trabalho editorial das revistas da Chamada em alemão. Também é autor e coautor de diversos livros.

sumário Revista Chamada Janeiro 2020

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