Nagasaki: Uma cidade com tradição cristã

A bomba atômica americana de 9 de agosto de 1945 lançada sobre Nagasaki aniquilou dezenas de milhares de pessoas numa fração de segundo. Um dado que muitas vezes é omitido é que Nagasaki foi por séculos um dos principais centros cristãos do país – inclusive durante a perseguição.

Cedo de manhã no dia 9 de agosto de 1945, o piloto americano Charles W. Sweeney decola com seu bombardeiro B-29. Aquilo não era uma missão rotineira da guerra do Pacífico. Sweeney faria história – com a ajuda de uma arma terrível. A bomba de plutônio “Fat Man”, com potência detonadora de 21 quilotons de TNT é, depois de Hiroshima, a segunda arma nuclear a ser utilizada. O alvo é a cidade-fortaleza de Kokura. Ao chegar ao local, Sweeney vê principalmente grossas nuvens de fumaça dos bombardeios nos dias precedentes. A bomba, porém, deveria ser lançada visualmente, de preferência sobre instalações militares. Sem chance. Sweeney se desvia. A lista de possíveis outros alvos inclui várias cidades selecionadas pelos militares americanos. O combustível de voo está acabando e Sweeney precisa tomar uma decisão. O piloto, de 25 anos de idade, decide-se pela cidade que é uma importante base militar que abriga o grupo industrial Mitsubishi: Nagasaki.

“Nagasaki era uma localidade de importância simbólica”, diz Takuma Melber, historiador da Universidade de Heidelberg. “Para toda a sociedade, mas em particular para os cristãos do país”. A mãe de Melber é japonesa, e seu pai foi pastor na igreja evangélica de Württemberg até se aposentar. O estudioso se especializou na história japonesa moderna – e esta inclui significativos aspectos cristãos.

No entanto, até 500 anos atrás, o Japão nem sequer aparecia em mapas ocidentais. “Circulavam relatos no oriente a respeito de um reino no leste”, diz Melber, mas aquilo permaneceu muito nebuloso. Em 1542 ou 1543, mercadores portugueses foram os primeiros cristãos a atracarem no Japão. Os habitantes locais ficaram curiosos. Eles não conheciam as especiarias e outros bens que os portugueses traziam, e também o navio era bem diferente de tudo o que eles conheciam. “Aquele exotismo foi muito interessante para os japoneses”, diz Melber. O jesuíta Francisco Xavier ficou sabendo disso numa conversa com um japonês em Málaca, e ele decidiu empreender uma viagem missionária. Em 1549, ele fundou a primeira igreja. “No entanto, a coisa toda só começou a avançar para valer depois da morte dele, quando um punhado de missionários jesuítas chegou ao país.” Milhares de japoneses aceitaram o batismo. A abordagem dos missionários foi bastante hábil. Eles buscaram o contato com os Daimyo, os príncipes locais, passando-lhes a mensagem cristã. Os Daimyo mais instruídos também se interessaram pela medicina ocidental e por cooperação econômica. Já a população simples seguia em geral os príncipes, mas também entre a população rural o cristianismo foi bem aceito, por ser revolucionário em vários aspectos. Segundo Melber, “as sociedades japonesas eram extremamente hierarquizadas de cima abaixo. A mensagem cristã mudou muito isso. ‘Ame o seu próximo’ – isto também transcende fronteiras”.

Nagasaki, antes e depois da bomba atômicaNagasaki, antes e depois da bomba atômica

A disseminação da fé cristã foi extremamente rápida; consta que em 1587 já havia 250 mil a 300 mil cristãos japoneses – menos de 50 anos após o primeiro contato efetivo com o Ocidente. Mas não demorou para o clima mudar. Depois dos navios portugueses, vieram também britânicos e espanhóis, e dizia-se que também a Holanda estaria a caminho da Ásia oriental. Os soberanos japoneses observaram enervados como o Ocidente colonizava um país asiático após o outro. O general Toyotomi Hideyoshi conseguira unir o Japão, mas agora ele temia uma agressão ao seu país. Em 1587, ele promulgou o primeiro edito de expulsão anticristão. Segundo Melber, na verdade aquilo era acima de tudo um edito antiocidental e anticolonialista. Em 5 de fevereiro de 1597, cerca de duas dúzias de missionários foram crucificados – em Nagasaki.

Seguiram-se dois séculos durante os quais o Japão se isolou quase completamente do mundo externo. “Sakoku” era o nome desse programa, que para os cristãos significava perseguição. Quando as autoridades suspeitavam que cidadãos fossem cristãos, eles aplicavam um teste. Apresentava-se aos supostos cristãos uma imagem de Jesus ou Maria, que eles deveriam pisotear. Os crentes se recusavam, e então “eram cruelmente executados. A título de dissuasão, os cristãos eram crucificados e as cruzes permaneciam em pé. A mensagem era clara: não se tornem cristãos”, explica Melber.

O cristianismo sobreviveu

Foi somente em 1853 que os EUA incentivaram o fim da dura perseguição. Apareceram navios americanos diante da costa japonesa. Os canhões dos “black ships”, sob o comodoro Matthew Perry, bombardearam a costa e os americanos forçaram passo a passo o país a se abrir. Outras grandes potências, inclusive a Prússia, se aliaram a isso. Na sequência ocorreu a chamada “Restauração Meiji” – a modernização do Japão desde a base, segundo um modelo ocidental. Com isso, o cristianismo também voltou a ser reconhecido – e a partir da década de 1870 progrediu claramente. Os cristãos voltaram até a construir igrejas. Nos anos do Sakoku, do isolamento, o cristianismo sobreviveu no Japão. “Consta terem existido aldeias inteiramente cristãs que conseguiram ocultar sua fé diante dos soberanos”, relata Melber. Kakure Kirishitan era como esses cristão se chamavam, “cristãos ocultos”. Particularmente em Nagasaki, consta terem existido verdadeiras sociedades secretas que, apesar da opressão estatal, preservaram e transmitiram a fé em Jesus ao longo de dois séculos. Em particular o vale de Urakami, uma parte de Nagasaki, orgulha-se de ter sido continuamente cristão.

Em 1945, Nagasaki era um dos centros dos crentes no país. Mesmo assim, a cidade estava na lista dos alvos da América cristã. O piloto americano Sweeney tomou sua decisão. Ele se dirige a Nagasaki, e, dessa vez com boa visibilidade, às 11h02min, lança do ventre do avião a bomba atômica de mais de quatro toneladas e meia e trata de dar meia-volta apressadamente. A “Fat Man” erra a fábrica da Mitsubishi em dois quilômetros e acerta uma área densamente povoada. O relâmpago brilhante como o sol, uma bola de fogo e depois uma gigantesca nuvem de fumaça em forma de cogumelo. A arma nuclear atinge antes de tudo uma espécie de baixada em Nagasaki, dentro da qual tudo é arrasado. Cerca de 70 mil pessoas morrem no ataque, e dezenas de milhares de vítimas fatais por radiação ainda seguem nos anos subsequentes. A 539 metros do Marco Zero, a explosão destrói a catedral de Urakami, cujo nome é o da moradia dos corajosos cristãos que resistiram por dois séculos à perseguição. Em 15 de agosto de 1945, o imperador anuncia a capitulação. No mesmo dia, o da assunção de Maria, muitos crentes se encontraram para uma missa no local em que a catedral de Urakami ainda se erguia pouco dias antes. Àquela altura, quase ninguém tinha noção da moléstia por radiação.

“Do ponto de vista atual, Nagasaki foi um crime de guerra, já que a população civil japonesa foi usada como cobaia”, diz Melber. Ele supõe que induzir o Japão à capitulação por meio do lançamento da bomba atômica sobre Nagasaki foi apenas pretexto. “A capitulação já era previsível. Em vez disso, os americanos quiseram testar uma nova tecnologia bélica, e queriam apresentar à União Soviética, que também tinha reivindicações sobre o Japão, um claro sinal de impedimento – inclusive para a nova ordem pós-guerra”.

Hoje o país abriga cerca de um milhão de cristãos – 1% da população. A catedral de Urakami foi reconstruída e tornou-se um dos mais importantes locais de romaria no Japão.

Nicolai Franz é um dos redatores da revista evangélica alemã Christliches Medienmagazin PRO. Vive em Wetzlar, Alemanha.

sumário Revista Chamada Agosto 2023

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