Por que a cruz?
Terá mesmo sido necessário Jesus derramar seu sangue na cruz de um modo tão brutal? Não poderia Deus ter providenciado a redenção de outra maneira? Terá sua execução sido apenas uma injustiça humana, um acidente no plano de Deus? Eis aqui um posicionamento bíblico.
Em Romanos 5.8, Paulo nos confronta duplamente com o passado, ou seja, com a morte do Senhor Jesus na cruz e com a nossa posição de pecadores, e também com algo que não pode ser limitado ao passado, presente ou futuro, mas que é atemporal: o amor de Deus. Deus é amor, e como ele é eterno, seu amor também é eterno. Deus é amor de eternidade a eternidade (1Jo 4.16). Em seguida, o apóstolo mostra nos versículos 9 a 11 os colossais efeitos desse amor atemporal de Deus para o nosso presente e futuro.
“Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque, se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida! E não apenas isto, mas também nos gloriamos em Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo, mediante o qual recebemos, agora, a reconciliação” (Rm 5.8-11).
Expõe-se aqui algo decisivo, a saber, que fomos justificados pelo sangue do Senhor Jesus, e com isso chegamos à questão da razão pela qual o Senhor Jesus teve de suportar a cruz. Será que não havia nenhum outro meio? Deus não poderia ter imaginado algo mais confortável, barato e menos sanguinário? É como alguém deu a entender certa vez: “A morte de Jesus não foi uma necessidade para a salvação, mas um ato bárbaro dos homens”. Em outras palavras: a crucificação não estava prevista, mas foi um acidente, um erro, um golpe do destino não planejado. Isso significaria que Deus não conseguiu impedir esse erro e que o Senhor Jesus não foi capaz de atender ao desafio: “Salve a si mesmo, se você é o Filho de Deus, e desça da cruz!” (Mt 27.40).
Se Jesus não pôde descer da cruz, a mensagem da cruz não seria de alegria, mas uma proclamação de vergonha. Ela não seria o anúncio de uma grandiosa vitória, mas uma memória de vergonha. Para Paulo, porém, a palavra da cruz e, com ela, a morte do Senhor Jesus, é o evangelho por excelência (1Co 2.2), cujo ápice, porém, não é a morte do Senhor, mas sua ressurreição. Não há, porém, ressurreição sem morte, e sem ressurreição não há vitória, de modo que uma depende da outra (1Co 15.20).
Em resumo, a morte do Senhor Jesus é o evento decisivo de todo o evangelho e, com isso, também de todo o propósito divino de salvação. A mensagem da cruz sempre foi escandalosa, não há novidade nenhuma nisso (1Co 1.18). Para muitos, a simples ideia de que o Deus Todo-poderoso e santo se rebaixa ao ponto de tornar-se homem, e que, além disso, ele veio para sofrer como homem e morrer miseravelmente na cruz, é demais. Por isso existem as vozes críticas, mesmo entre os cristãos, que não só negam o sacrifício remidor de Jesus, mas que chegam a dizer de maneira provocadora, como certa vez disse uma pastora evangélica: “Não quero ter nada a ver com um Deus que necessita de sacrifícios!”.
Todavia, pessoas que argumentam dessa forma não reconhecem a perfeita santidade de Deus e sua absoluta pureza. Na química e também na medicina, a pureza absoluta é um valor limite do qual, na prática, só é possível aproximar-se, sem atingi-lo efetivamente. Essa é uma boa imagem da discrepância entre o Deus santo e absolutamente puro e nós, seres humanos, que jamais alcançaremos sua pureza absoluta, pelo menos não por mérito próprio. Assim, Deus teria toda razão em dizer: “Não quero ter nada a ver com uma pessoa que não quer sacrifícios”, porque o sacrifício é o que purifica o ser humano. O sangue é o que santifica o ser humano (Hb 10.14; 1Jo 1.7).
Sem essa perfeição, sem essa purificação e sem essa santificação, homem nenhum terá acesso à eternidade divina. Deus não pode simplesmente desviar o olhar, porque só alguém igualmente santo e absolutamente puro tem condições de chegar à presença dele. Deus é tão santo que nem sequer pode olhar para o pecado (Hc 1.11). A morte expiatória na cruz é de fato cruel, sem dúvida, mas é indispensável, porque só o sangue do único que é puro é capaz de purificar uma vida contaminada, assim como também somente por uma transfusão de sangue a vida de alguém pode ser salva quando seu próprio sangue está contaminado.
Um outro aspecto que muitos não reconhecem é o fato de que a morte do Senhor Jesus na cruz é um ato salvador e um sacrifício de amor. A santidade de Deus condena o pecado, mas o amor de Deus prepara uma via de escape para o pecador. É fato definitivo que a presença junto a Deus é uma zona isenta de pecado e que, assim, o acesso a Deus fica impedido para qualquer pecado, por menor que seja e por mais amável que seja o pecador. Com a queda no pecado e seus efeitos, com a contaminação do nosso sangue, onde está a sede da vida, ficamos na prática sujeitos à ira de Deus (Rm 1.18).
No entanto, se Deus é amor, como é que ele pode estar ao mesmo tempo cheio de ira? O fato é que o amor de Deus e sua ira santa não se contradizem. A ira de Deus não é apenas uma punição, mas, ao mesmo tempo, também uma proteção. Sua ira é santa e amorosa, a ira daquele que não quer que nenhum homem se perca. Em seu amor, Deus detesta o pecado, porque ele contamina o homem e lhe subtrai a vida. Mas Deus não seria Deus se não tivesse também uma solução para esse dilema, essa discrepância entre sua ira santa com o pecado e seu amor pelo pecador. E essa solução é algo que provém tanto do seu amor como também da sua absoluta pureza, santidade e justiça. A justiça de Deus exige a condenação do pecado, mas o amor de Deus aplaina o caminho para o perdão (Rm 5.9).
De que modo? Quando o próprio Deus se torna homem e afixa à cruz a nossa nota de débito (Cl 2.14). Deus é o justo juiz que toma sobre si mesmo a expiação da pena que ele mesmo decretou. Existe uma história a respeito de um juiz que, segundo as leis do seu país, deveria ter condenado sua amada mãe a açoites, porque ela era claramente culpada. Seria injusto perdoá-la, mas também seria uma traição ao amor se o juiz conduzisse sua própria mãe ao justo castigo. Depois de o juiz condenar sua mãe a bem da justiça, ele se ergueu e declarou com lágrimas nos olhos: “Assumo sobre mim mesmo de forma vicária a pena da minha mãe”.
Deus não pode torcer a realidade. Deus não pode decretar arbitrariamente uma anistia geral, porque isso contraria a justiça. Seria a ruína do novo céu e da nova terra o pecado não ser vencido, expiado e eternamente condenado de uma vez por todas. Assim, o princípio é que alguém que pretenda nos livrar do pecado precisa ser pessoalmente isento de pecado. “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós” (2Co 5.21; cf. 1Pe 2.22). Alguém que queira vencer a morte precisa ser mais forte que a morte (At 2.24). Alguém que queira dar vida eterna ao homem precisa ser eterno por si mesmo. Ele precisa ser verdadeiramente homem para poder morrer, e verdadeiramente Deus para poder vencer a morte e o diabo (cf. 1Jo 3.8; Hb 2.14).
Só houve um que satisfez todas essas premissas para expiar nossa culpa em nosso lugar: Jesus Cristo! Ele é o sacerdote que apresenta a oferta e é ao mesmo tempo a oferta apresentada: “Quando, porém, Cristo veio como sumo sacerdote dos bens já realizados... não pelo sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue... obteve uma eterna redenção” (Hb 9.11-12).
Assim, a obra redentora no Gólgota é a via de escape genial de Deus para um mundo inteiramente contaminado. Ainda assim, porém, pode-se perguntar: não poderia o objetivo da reconciliação com Deus ter sido realizado sem esse sacrifício sangrento? Seria a nossa culpa realmente tão pesada a ponto de tornar-se indispensável essa morte cruel e terrível na cruz? A resposta a essa pergunta foi dada no Jardim do Getsêmani, em que o Filho único de Deus pediu três vezes para ser poupado daquele cálice (Mt 26.39,42). E ficou bem evidente que não havia outro meio, caso contrário o Pai celestial teria intervindo o mais tardar aí. O Senhor Jesus sujeitou-se à vontade do seu Pai e empreendeu essa pesada via até a cruz, voluntária e obedientemente, até a morte (Fp 2.7-8). Ele mesmo também havia comentado que teria de sofrer tudo isso (Lc 24.46), e que isso seria necessário para a salvação (Mc 10.45). Portanto, o próprio Filho de Deus falou a respeito da crucificação, sem alternativas para salvar o homem da sua ruína. A morte na cruz foi uma firme decisão de Deus que via nenhuma poderia contornar (At 2.23; 1Jo 4.10). Portanto, não se trata de um acidente, mas do amor de Deus que ele nos provou na pessoa de Jesus Cristo.
“A morte na cruz foi uma firme decisão de Deus que via nenhuma poderia contornar. Portanto, não se trata de um acidente, mas do amor de Deus que ele nos provou na pessoa de Jesus Cristo.”
Indo um passo adiante na resposta à questão da necessidade da cruz: se examinarmos o relato bíblico da Criação, veremos que o homem foi criado à imagem de Deus (Gn 1.27; cf. Gn 9.6). Isso significa também que, assim como Deus é eterno, também a vida humana foi programada para a eternidade. Com seu ato criador, em que o homem representa a coroa da Criação, Deus não criou algo passageiro, mas algo que deverá permanecer eternamente. “Deus fez tudo formoso no seu devido tempo. Também pôs a eternidade no coração do ser humano...” (Ec 3.11). Por um lado, isso se refere à noção de um Deus eterno e, por outro, que nós mesmos temos em nós essa eternidade segundo a sua imagem.
Além disso, Gn 2.7 fala do fôlego de vida que Deus soprou no homem (cf. Jó 33.4). E, quando lemos que por meio desse fôlego de Deus o homem se tornou alma vivente, isso não se refere apenas à vida como tal, já que os animais também vivem, mas a esse relacionamento muito particular com Deus, configurado para a eternidade. Afinal, a Bíblia também fala da ressurreição de todos os homens, tanto dos salvos como dos não salvos: “Os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo 5.29).
Esse é um importante aspecto da nossa criação. O segundo é a interessante declaração em Levítico 17.11, segundo a qual a vida está no sangue. Essa passagem é algo como a chave para explicar por que já na antiga aliança sempre se requeria a apresentação de sacrifícios sangrentos, e por que também o Senhor Jesus precisou selar a nova aliança com sangue (Hb 9.15-18). O mais tardar com essa declaração se revela o inseparável vínculo entre o sangue e a vida. Essa dependência mútua perpassa como um fio vermelho toda a Escritura Sagrada e é também a explicação para a impossibilidade de se estabelecer a união com Deus sem sangue.
Adão e Eva, por exemplo, ainda tentaram encobrir seu pecado com folhas de figueira. Foi a variante “vegetariana”, a tentativa humana de salvar algo que não tinha salvação. Deus, porém, esclareceu imediatamente que a salvação e sobrevivência só seria possível com a sua intervenção, e por meio de sangue, já que, se Deus vestiu o primeiro casal humano com peles, foi necessário que um animal morresse – o que até então não havia ocorrido (Gn 3.21). E, conforme dissemos, esse princípio (sangue e vida) prossegue como um fio vermelho. Abel apresentou ao Senhor uma oferta sangrenta das suas ovelhas. Noé ofereceu animais que ele levara para a arca especificamente com esse fim. Deus efetivou a aliança com Abraão por meio da morte de cinco animais diferentes (Gn 15.9-10). O êxodo do Egito e a Páscoa fundamentada nele não seriam concebíveis sem o sangue que teve de ser passado nas molduras das portas – e tudo isso, afinal, aconteceu ainda antes da introdução da lei com todas as suas prescrições sacrificiais.
Sem sangue não há contato nem comunhão com aquele que nos criou à sua imagem e soprou em nós o seu fôlego. Só por meio do sangue pode haver reconciliação com o Deus da vida, pois a vida está no sangue (Hb 9.18-22).
A nova aliança, a aliança da graça e do perdão, precisou ser selada com sangue, conforme as palavras do Senhor Jesus: “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.28). O Senhor Jesus teve de oferecer o seu sangue, teve de morrer para que nós pudéssemos viver. “Porque é o sangue que fará expiação pela vida” (Lv 17.11). Por isso, Apocalipse 5.9 se refere ao Senhor Jesus dizendo: “Foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação”, e, em Romanos 3.23-25, lemos:
“Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus apresentou como propiciação, [que é eficaz] no seu sangue, mediante a fé”.
Por meio da fé no seu sangue! Não basta crer num profeta chamado Jesus, em um Jesus operador de milagres, que anuncia o amor e pregou um genial Sermão do Monte, mas trata-se daquilo que o Senhor Jesus realizou por nós na cruz. Trata-se da fé no seu sangue. Seu sangue santo, puro e precioso purifica o nosso sangue contaminado pelo pecado. Aquilo que os sacrifícios da antiga aliança ainda deixaram incompleto, que não passava de sombra daquilo que Deus prometera, tornou-se realidade por meio do sangue do Senhor Jesus.
Não havia nem há outro meio, quer entendamos isso ou não, e ainda que não o entendamos, podemos crer que no sangue do Senhor Jesus temos a vida eterna. “Sabendo que não foi mediante coisas perecíveis, como prata ou ouro, que vocês foram resgatados da vida inútil que seus pais lhes legaram, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula” (1Pe 1.18-19).