Cinco Marcas de uma Igreja Cristocêntrica: Introdução

Li, anos atrás, uma divertida história (fictícia, é claro) em que um personagem recebeu de Deus a incumbência de construir uma arca para salvar o mundo. Ele imediatamente contratou Noé e depois, pensando melhor, decidiu contratar uma grande equipe para ajudá-lo, afinal esse empreendimento iria salvar o mundo. Assim, ele contratou um amigo para auxiliá-lo com a seleção e contratação de todo o pessoal. O amigo se responsabilizou pelo Departamento de Recursos Humanos, estabelecendo critérios e protocolos para contratações, assim planos de carreira, rendimentos e benefícios. Logo em seguida foi contratado o pessoal do Marketing para promover o projeto, divulgar seu propósito e buscar estimular o envolvimento de todos. Também foi necessário montar um departamento de Engenharia que logo começou a discutir projetos e materiais, assim como uma equipe para avaliar o impacto ambiental. Certamente toda essa estrutura exigiu um setor de contabilidade, um de finanças, consultores legais, cuidadores de animais e veterinários. Isso sem falar do espaço físico para abrigar um projeto dessa dimensão, com seu setor de manutenção, segurança e almoxarifado, cada um debaixo de uma gerência que por sua vez respondia à um crescente número de diretores e vice-presidentes. Cada passo exigiu muitas reuniões, discussões intermináveis para se estabelecer padrões, procedimentos e organizar grupos de trabalho. Em determinado momento, o diretor de Recursos Humanos reclamou para o presidente sobre um tal de Noé (que inclusive nunca tinha passado pelo processo de seleção). Não havia registro de suas qualificações, ele não demonstrava espírito de equipe e insistia em começar a construir um tal de barco. Assim, a decisão unânime foi de demiti-lo. Após mais algum tempo, a chuva começou, as águas foram se acumulando e subindo, a diretoria se reúne em pânico. Ninguém sabe o que fazer e acusações mútuas vão se acumulando. Nesse momento, alguém olha pela janela e vê ao longe passar um enorme barco de madeira escrito “Arca de Noé”.

Essa sátira poderia ser relegada a uma crítica superficial de procedimentos empresariais. No entanto, ela se torna muito relevante e mesmo profética quando olhamos a situação da igreja cristã em geral. Toda generalização é injusta, mas ao olhar para a história e para as práticas de igrejas hoje, vemos que estamos muito distantes do mandato que recebemos. Aparentemente, em algumas igrejas, mesmo sem que se perceba, Cristo foi demitido, pois suas exortações contrariavam as tradições, os objetivos e procedimentos delas.

Em um artigo sobre a essência da igreja, o dr. Scott Horrell, implantador de igrejas e professor do Seminário Teológico de Dallas, denuncia um pensamento que, apesar de trágico, é tristemente comum: “Na prática, (1) ser igreja é ter terreno, ter prédio, estar sediado no que chamamos de a casa de Deus, o templo. O que fazemos por Deus fazemos lá. (2) Ser igreja é guardar o domingo, o dia em que se centraliza nosso culto e serviço ao Senhor. Quando o leigo faz algo fora do sábado cristão, é um brinde para Deus – isso, no subconsciente, pois jamais se atreveria a dizer tal coisa. (3) Ser igreja é ser culto, ápice espiritual dos crentes e palco de Deus para o incrédulo. É no culto que encontramos a Deus. É no culto que pessoas são convertidas. E (4) ser igreja é ter um clero, quem nos leva a Deus e traz Deus até nós. O pastor é o homem de Deus, profeta e intercessor pelo povo. Mesmo repelindo tais exageros, é assim que entendem milhões de membros de nossas igrejas. Sem estes quatro fundamentos, não há igreja”.[1]

Temos nos preocupado com programas, números de frequentadores, presença na mídia, relevância, novas perspectivas sobre a Bíblia, contextualização e novas formas. No entanto, me parece que, como na empresa descrita acima, nos esquecemos de nosso propósito e isolamos o personagem principal. Corremos o risco de ficar à margem do que Deus está fazendo e vai fazer em nosso tempo.

“Aparentemente, em algumas igrejas, mesmo sem que se perceba, Cristo foi demitido, pois suas exortações contrariavam as tradições, os objetivos e procedimentos delas.”

Como recuperar, como resgatar o que é central ao ser igreja? Não basta um retorno a velhas formas e tradicionalismos. Não basta afastar qualquer aparência de modernidade ou de sintonia com a cultura em que estamos inseridos. Precisamos identificar e retornar ao cerne, ao centro do que somos chamados.

Rainer e Geiger escrevem sobre isso: “Muitas de nossas igrejas se tornaram complexas. Tão complexas que as pessoas têm dificuldade de se encontrar com a mensagem simples e poderosa de Cristo. Tão complexas que muitas pessoas estão ocupadas em fazer igreja em vez de ser igreja”.[2]

No Novo Testamento, a palavra para igreja é ekklesia e ela é usada em vários sentidos. Desde uma reunião local, uma assembleia de cidadãos de uma cidade e até como o conceito que mais tarde emerge de uma comunidade espiritual de todos os cristãos. Ao longo da história surgiram então diferentes maneiras de se explicar uma igreja. Muitos falam da igreja visível, referindo-se às comunidades organizadas, e à igreja invisível, referindo-se a esse corpo místico, identificado como corpo de Cristo. Mais frequente na atualidade é a utilização do conceito de igreja universal e igreja local.

Ryrie define assim: “[Igreja] universal é um bom termo para se referir ao Corpo de Cristo, na Terra e no céu (Hb 12.23) [...] O termo igreja local algumas vezes descreve a igreja em uma casa. Essa é a unidade retratada no Novo Testamento, mas a igreja em Corinto (1Co 1.2) devia abranger várias igrejas nas casas [...] Mesmo assim, a palavra ‘igreja’ no singular também é usada para designar as várias igrejas de uma região (At 9.31)”.[3]

Muito embora a identificação como corpo de Cristo tenha implicações profundas para a expressão local, é com relação à igreja universal que o Novo Testamento afirma a relação de Cristo e a igreja: “Ele é a cabeça do corpo, que é a igreja...” (Cl 1.18); “... seu corpo, que é a igreja” (Cl 1.24); “... à igreja, a qual é o seu corpo...” (Ef 1.22-23; 1Co 12.12-27). Na verdade, é praticamente impossível descrever a igreja sem usar como referencial central a pessoa de Cristo.

Estudiosos que optam pela abordagem aliancista das Escrituras, poderiam afirmar que Israel no Antigo Testamento era igreja sem uma referência direta a Cristo. Mesmo estes apontam que a obra salvífica de Deus gira necessariamente em torno da morte e ressurreição de nosso Senhor Jesus. O debate sobre continuidade ou descontinuidade entre Antigo Testamento e Novo Testamento tem sido muito bem tratado ultimamente[4] e não cabe no âmbito deste artigo. Ainda assim, não resta dúvidas, seja a aliancistas ou a dispensacionalistas, que Cristo é a base e o fundamento da igreja no Novo Testamento (1Co 3.11; Ef 2.20).

Quando exploramos o conceito da igreja local, a centralidade de Cristo continua indiscutível. O dr. Scott Horrell define assim a igreja local: “A igreja local é composta de crentes batizados que professam Jesus Cristo, praticam a ceia do Senhor e se organizam para fazer a vontade de Deus”.[5] Ou seja, tanto a igreja universal como suas expressões locais precisam manter a Cristo como elemento central, unificador e mesmo aquele que dá às comunidades locais seu poder e autoridade. Com muita propriedade nos cabe relembrar as palavras de Jesus no evangelho de João 15.5: “Eu sou a videira, vocês são os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada”.

A partir dessas afirmações, todo cristão precisa se alinhar com a verdade de que Cristo é o centro da igreja; sendo assim, toda igreja local deveria ser cristocêntrica. Uma vez mais, esse embasamento pode parecer ao leitor desnecessário ou óbvio, mas, infelizmente, não é o caso. A variedade, a diversidade e mesmo a “dissonância” entre as muitas igrejas nos força a examinar essa questão mais de perto.

Se Cristo é o centro, a igreja deve demonstrar as mesmas características do mestre.

Não conheço alguém que, dizendo-se cristão, afirma que Cristo não é o centro da igreja, mas a nível teológico, surge então a questão: sobre qual “Cristo” essa igreja está fundamentada? Dependendo da compreensão de Cristo que uma igreja defende, seus compromissos, valores, crenças e mesmo modo de viver serão profundamente afetados. Lembro-me com tristeza de uma situação em que, ao confrontar um membro de minha igreja com respeito a seu divórcio e novo relacionamento, eu o convidei a estudar comigo passagens chave sobre o tema. Ao final, ele, ao se ver sem defesa para seu comportamento diante de uma das passagens, afirmou: “O meu Jesus não diria isso!”. O problema era que o “Jesus dele” não era o Jesus da Bíblia. Igrejas de uma linha teológica liberal desenvolveram um conceito de Cristo que não se encaixa com o Cristo que vemos na Bíblia. Assim, muito embora afirmem serem centradas em Cristo, seu referencial teológico está totalmente divorciado da verdade. Um exemplo claro são os vários pensadores da teologia da libertação, que descrevem o evangelho assim: “A boa nova do reino não está reduzida a uma espiritualização ou doutrina, mas em um compromisso de amor pelos pobres”.[6]

Entre aqueles que acreditam na autoridade da Bíblia, o significado da afirmação de que Jesus Cristo deve ser o centro de toda igreja tem implicações profundas para a igreja e para os cristãos. Se realmente Cristo é o centro de toda igreja, quais seriam algumas características observáveis dessa verdade? Ou seja, quais são as marcas de uma igreja cristocêntrica? A resposta exige que examinemos a pessoa de Cristo. Se Cristo é o centro, essa igreja deve demonstrar as mesmas características do mestre. O tema poderia se estender para as muitas questões levantadas na área doutrinária que conhecemos como cristologia. Muito embora esta seja preciosa, nosso foco será a igreja em sua tarefa primordial de promover a Cristo. Nos próximos artigos desta série, analisaremos cinco marcas de uma igreja cristocêntrica.

 

Notas

  1. Scott Horrell, ed. Ultrapassando Barreiras, Novas opções para a igreja brasileira na virada do século XXI, (São Paulo: Edições Vida Nova, 1994), p. 9.
  2. Thom Rainer e Eric Geiger, Igreja Simples, Retornando ao Processo de Deus para Fazer Discípulos (Brasília: Editora Palavra, 2012), p. 32.
  3. Charles Ryrie, Teologia Básica ao alcance de todos (São Paulo: Mundo Cristão, 2004), p. 223.
  4. John S. Feinberg, ed., Continuidade e Descontinuidade: Perspectivas sobre o relacionamento entre o Antigo e Novo Testamento (São Paulo: Hagnos, 2012).
  5. Scott Horrell, A Essência da Igreja, Fundamentos do Novo Testamento para a Igreja Contemporânea (São Paulo: Hagnos, 2004). (Nessa definição, o dr. Horrell declara: “Apropriei-me e modifiquei a definição de Charles C. Ryrie, A Survey of Bible Doctrine [Chicago: Moody, 1972], p. 99”.)
  6. Marcos Aurélio, “Jesus e as Boas Novas de Libertação”, Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), 28 fev. 2018. Disponível em: https://cebi.org.br/noticias/jesus-e-as-boas-novas-de-libertacao/.

Daniel Lima é doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary. Autor e preletor, exerce um ministério na formação e mentoreamento de pastores e líderes.

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