A Carta aos Romanos

Capítulo 1

Introdução (v. 1-15)

As palavras introdutórias do apóstolo Paulo (Rm 1.1-15) correspondem a uma peroração na qual ele mostra de modo pessoal qual será a ênfase da sua carta: o evangelho de Deus.

O evangelho de Deus (v. 16)

O evangelho de Deus não é ninguém outro senão Jesus Cristo. Ele é a pessoa por excelência, o poder da vida eterna, o poder da vontade onipotente e o poder do amor infinito. Tudo isso atua em conjunto tendo por objetivo “a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16).

Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva (Ez 33.12). Assim, o evangelho atua no mundo inteiro, já que Paulo diz: “... para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego”.

Ninguém precisa se perder, já que Deus oferece a salvação a toda a humanidade. Ela se destina a todo o que crer. Entretanto, a ação salvadora de Deus acaba sendo restrita pelo próprio homem, já que podemos aceitá-la ou rejeitá-la. Só aquele que aceitar a oferta de Deus pela fé será salvo. Sobre quem a rejeitar permanece a condenação eterna. Por essa razão, Deus também implora tão insistentemente, dizendo: “Hoje, se ouvirem a sua voz, não endureçam o coração...” (Hb 3.15; cf. Sl 95.7-9).

Se nos autoexaminarmos, teremos de reconhecer e dizer que não podemos salvar a nós mesmos. Ninguém chega ao céu por seu próprio mérito. Nossos esforços podem ser grandes, mas não bastam, e se nos examinarmos honestamente, reconheceremos a nossa incapacidade. Estaremos perdidos, conforme Paulo expressa por uma citação de Salmo 14.1-3: “Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus” (Rm 3.10-11). Nossa condição é a seguinte: “Todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças são como trapo da imundícia. Todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniquidades nos arrastam como um vento” (Is 64.6).

A salvação divina – nossa incapacidade (v. 17-18)

Deus contrapõe seu evangelho à nossa incapacidade e perdição; seu perdão e sua salvação – o evangelho – ao nosso pecado, conforme Paulo diz: “... a salvação de todo aquele que crê...” (Rm 1.16a).

É como uma luz brilhante incidindo sobre um fundo escuro. Com isso, não só a escuridão se torna mais escura, mas também a luz se torna mais clara. É assim com nossa perdição. Só a reconhecemos verdadeiramente à luz da santidade de Deus.

Se eu reconhecer isso, ou seja, minha própria perdição e meu pecado em contraste com a realidade da santidade de Deus, precisarei também aceitar a sentença correspondente sobre o meu estado: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e injustiça dos seres humanos que, por meio da injustiça, suprimem a verdade” (Rm 1.18).

“Tal como um cirurgião, a carta aos Romanos revela antes de tudo a nossa ‘enfermidade espiritual’, nossa completa deterioração.”

Tal como um cirurgião, a carta aos Romanos revela antes de tudo a nossa “enfermidade espiritual”, nossa completa deterioração: “Porque, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, e o coração insensato deles se obscureceu” (Rm 1.21).

A noção de Deus (v. 19-22)

Todo ser humano traz em si a noção de um Deus vivo, seja o silvícola na mais profunda selva, o ateu nos auditórios das universidades ou o operário na fábrica. Ninguém pode negar que possui uma noção de Deus, como diz a Bíblia: “Deus fez tudo formoso no seu devido tempo. Também pôs a eternidade no coração do ser humano...” (Ec 3.11).

Todo ser humano tem essa noção de Deus no coração. É claro que se pode matá-la calando-a, rindo ou falando dela – e mesmo assim permanece ali Deus falando no coração. No entanto, embora ele esteja presente, Paulo precisa escrever: “Porque, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças...” (Rm 1.21a).

Essa é a tragédia da maioria das pessoas: a verdade que não se admite não pode existir, e assim a pessoa vira as costas a Deus, rejeita-o, nega-o e finalmente faz calar o que Deus fala no coração. Acontece então o que Paulo escreve: “Dizendo que eram sábios, se tornaram tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao ser humano corruptível, às aves, aos quadrúpedes e aos répteis” (Rm 1.22).

No entanto, Deus nunca deixou de se revelar. Já no Antigo Testamento, o livro de Jó diz:

“Pelo contrário, Deus fala de um modo, sim, de dois modos, mas o homem não atenta para isso. Em sonho ou em visão de noite, quando o sono profundo cai sobre as pessoas, quando adormecem na cama, então lhes abre os ouvidos e lhes sela a sua instrução, para afastar o ser humano dos seus planos e livrá-lo do orgulho; para guardar a sua alma da cova e a sua vida de passar pela espada. Também no seu leito é castigado com dores, com incessante conflito em seus ossos; de modo que abomina o pão, e detesta até a comida mais saborosa. A sua carne, que se via, agora desaparece, e os seus ossos, que não se viam, agora aparecem. A sua alma está perto da morte, e a sua vida se aproxima dos que trazem a morte. Se com ele houver um anjo intercessor, um dos milhares, para declarar ao homem o que é certo, então Deus terá misericórdia dele e dirá ao anjo: ‘Livre-o para que não desça à cova; já achei um resgate para ele’” (Jó 33.14-24).

Deus fala com todo ser humano, seja por meio da consciência, da criação, da Palavra de Deus e finalmente pela pessoa de Jesus Cristo. Sim, a Palavra de Deus diz: “Contudo, não deixou de dar testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando a vocês chuvas do céu e estações frutíferas, enchendo o coração de vocês de fartura e de alegria” (At 14.17).

A grande tragédia (v. 23-32)

Quem rejeitar o que Deus diz incorre em perigo mortal, enredando-se cada vez mais e experimentando que Deus nos permite fazer o que queremos: “Por isso, Deus os entregou à impureza, pelos desejos do coração deles, para desonrarem o seu corpo entre si. Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito para sempre. Amém!” (Rm 1.24-25).

 A carta aos Romanos se parece com um processo judicial. Chega-se à definição da justa sentença.

Ser entregue – uma declaração terrível. Entregue ao animismo, à crença em deuses e espíritos, e à crescente escuridão. Entregue até à perversão sexual pela falta de fé, à desobediência e à rebelião. Que tragédia (Rm 1.28-32)!

É uma entrega tríplice: entregue às cobiças do coração, entregue a paixões depravadoras, e entregue a uma mentalidade indigna.

Desponta o evangelho

No meio dessa escuridão de desesperança, perdição e pecado desponta o brilho do evangelho, mostrando-nos a saída do dilema: “Porque a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá por fé’” (Rm 1.17; cf. Hc 2.4). Assim o evangelho nos mostra a saída: “O justo viverá por fé”!

Esse foi o versículo decisivo para Martinho Lutero. Por anos ele se esforçara em alcançar uma vida pura para poder prevalecer diante de Deus. Contudo, por mais que se esforçasse, se flagelasse a ponto de sangrar e jejuasse dias inteiros, sua angústia íntima crescia com a consciência de que não conseguiria – até que um dia se deu conta do versículo citado acima: “O justo viverá por fé”. De repente Lutero, tal como muitos antes e depois dele, descobriu: Deus não quer o meu desempenho, não é minha oração o que Deus exige, não é a minha vida “santa” que me aproxima de Deus, nem exercícios espirituais ou rituais são o que Deus requer, mas simplesmente “o justo viverá por fé”. A fé é a saída da perdição, do enredamento no pecado e da separação de Deus.

A saída do dilema se dá exclusivamente pela fé no evangelho de Deus quando confiantemente aceito como verdade e assumo pessoalmente para mim o que Jesus Cristo fez na cruz do Calvário – e essa oferta não se destina apenas a alguns poucos, mas a todo o que desejar receber essa salvação. A chave para isso é a fé. Ninguém é depravado demais para isso nem está excessivamente atolado no pecado. Sim, é justamente nisso que se revela a justiça de Deus: que Deus aceita todos os que se achegam a ele em fé, “porque a justiça de Deus se revela” nisso (Rm 1.17).

A razão é que em Jesus Cristo a justiça de Deus foi satisfeita! O próprio Deus, o juiz, assumiu na cruz do Calvário a posição de réu. Ao fazer isso pendurado na cruz, pagando pela nossa vida com a sua própria vida, assumindo a punição em si mesmo, Deus não só assumiu a posição de réu, mas também sua culpa e punição. Todos os que crerem nisso e o aceitarem para si serão absolvidos, e muito mais: serão também reabilitados e aceitos como filhos de Deus. Por isso Paulo pode afirmar que “o justo viverá por fé” (Rm 1.17).

A absolvição antecipada

Alguma vez você já passou por algo como o que segue? Você está no consultório médico esperando por um tratamento urgente para salvar sua vida, mas antes de o médico começar com o tratamento, ele já lhe promete a cura. Antes mesmo de o paciente ingerir o medicamento, ele já recebe a garantia de cura plena. Qualquer médico que trabalhasse assim seria rejeitado como charlatão! Mas é exatamente isso o que Deus faz: com ele o sucesso é garantido.

Ainda antes de Deus expor seu diagnóstico (este virá só no capítulo 3 da carta aos Romanos), ele já promete a cura a todo o que crer. A razão é simples: “O justo viverá por fé”. Ou seja: absolvido de antemão pela fé. Pela fé – não há mais condenação. Pela fé – livre do peso do pecado. Pela fé – aceito por Deus. Pela fé – garantia do céu. Por isso o evangelho é extraordinário.

Mesmo se eu ainda não tiver entendido o evangelho em toda a sua profundidade, mas crer nele, serei justificado diante de Deus. Mesmo se não conseguir ainda sondar toda a dimensão da graça de Deus, mas crer nela, serei considerado justo diante de Deus! Ainda que não consiga entender a minha pecaminosidade e perdição em toda a sua profundidade, mas pela fé me agarrar à obra salvadora de Jesus, serei justificado por Deus.

Esse é o evangelho sobre o qual Paulo escreve: “Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego. Porque a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá por fé’” (Rm 1.16-17).

O processo judicial

O filme “Os doze jurados” (1957) trata de um processo por homicídio. Um rapaz de 18 anos é acusado de matar o pai. Depois de longos debates no tribunal, os doze jurados retiram-se para elaborar a sentença, que precisa ser unânime. Não parece haver dúvidas sobre a culpa do réu. Contudo, um dos jurados não tem certeza, e assim, contra todos os outros onze jurados, ele vota pela inocência. Segue-se um violento e acalorado debate, em que um argumento atropela o outro. Finalmente, depois de muitas idas e vindas e meticulosa consideração de todos os argumentos, o réu é absolvido e a acusação contra ele é anulada como inconsistente.

A carta aos Romanos também se parece com um processo judicial. Chega-se à definição da justa sentença. Em seguida, a justiça é satisfeita, realiza-se a expiação e o estado de direito é reconstituído, permitindo uma nova vida em liberdade.

A acusação

A acusação inclui três grupos de pessoas:

  • pagãos ignorantes (pessoas que nunca ouviram nada do evangelho);
  • pagãos instruídos (pessoas que alegam conhecer a Deus);
  • e finalmente também os judeus piedosos (que têm a Palavra de Deus).

Todos eles estão sujeitos à acusação de Deus: “Todos se desviaram e juntamente se tornaram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.12). Que acusação!

A acusação de Deus aos pagãos “ignorantes”

Mesmo o habitante das profundezas da selva sabe que existe um Deus, “pois o que se pode conhecer a respeito de Deus é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou” (Rm 1.19). Eles o sabem por meio da sua consciência, da revelação de Deus na natureza “porque os atributos invisíveis de Deus, isto é, o seu eterno poder e a sua divindade, claramente se reconhecem, desde a criação do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que Deus fez” (Rm 1.20).

A criação fala de um Criador e aponta para um Deus planejador. Embora Deus não tenha deixado de oferecer testemunhos de si, os homens fazem o seguinte: “Porque, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, e o coração insensato deles se obscureceu” (Rm 1.21).

Embora o homem tivesse noção de Deus, ele preferiu adorar a criatura, preferindo a matéria morta ao autor da vida! E assim tornaram-se vítimas da ilusão: “Dizendo que eram sábios, se tornaram tolos...” (Rm 1.22).

Que fim levou as grandes culturas do passado? Os incas, maias, babilônicos... Afundaram na poeira da história. Os testemunhos da sua antiga grandeza limitam-se a pistas arqueológicas. Ocorre o que a acusação destaca: “E trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao ser humano corruptível, às aves, aos quadrúpedes e aos répteis” (Rm 1.23). Disso resulta a sentença de Deus: “Por isso, Deus os entregou...” (Rm 1.24).

Que sentença! Pois “entrega” significa abandono ao seu próprio jeito, dependência de si mesmo, sem estar a caminho com Deus. Nessa “entrega” ocorre o que Paulo escreve: “... para desonrarem o seu corpo entre si” (Rm 1.24).

“Ser entregue” significa distorção de pensamentos e atos. Apesar de todo conhecimento e toda inteligência, perdeu-se a capacidade de conseguir aplicar decisões éticas. Fica-se assim à mercê dos mais diversos vícios e das drogas, abandonado em casamentos e famílias em ruínas, em uma noção errada da sexualidade e a estados ingovernáveis.

A causa

“Quando se nega consciente e voluntariamente a noção de Deus, toda a vida acaba desembocando em uma só grande mentira, até o ponto que Paulo descreve: 'Por causa disso, Deus os entregou a paixões vergonhosas'.”

Quando se nega consciente e voluntariamente a noção de Deus, toda a vida acaba desembocando em uma só grande mentira, até o ponto que Paulo descreve: “Por causa disso, Deus os entregou a paixões vergonhosas. Porque até as mulheres trocaram o modo natural das relações íntimas por outro, contrário à natureza. Da mesma forma, também os homens, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo indecência, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro” (Rm 1.26-27).

Como não preservaram a noção de Deus, “o próprio Deus os entregou a um modo de pensar reprovável...” (Rm 1.28).

A sentença

Que tragédia quando a acusação precisa declarar: “Estão cheios de todo tipo de injustiça, perversidade, avareza e maldade. Estão cheios de inveja, homicídio, discórdia, engano e malícia. São difamadores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, arrogantes, orgulhosos, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, desleais, sem afeição natural e sem misericórdia. Embora conheçam a sentença de Deus, de que os que praticam tais coisas são passíveis de morte, eles não somente as fazem, mas também aprovam os que as praticam” (Rm 1.29-32).

E assim a negação de Deus resulta na sentença do juiz divino, de que “os que praticam tais coisas são passíveis de morte” (Rm 1.32). Sim, o juiz insiste e diz: “...não somente as fazem, mas também aprovam os que as praticam” (Rm 1.32b).

Samuel Rindlisbacher é ancião da igreja da Chamada na Suíça e foi fundamental no desenvolvimento do grande ministério de jovens dela.

sumário Revista Chamada Janeiro 2022

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