O sonho do Ocidente: um Talibã moderado

Duas décadas após o início da intervenção militar no Afeganistão e o amargo combate ao terrorismo, de repente o Talibã é considerado um possível garantidor da paz. Essa política é perigosa, e não apenas para Israel.

Os financiadores e parceiros de negociações, como a UE, os EUA e a ONU, acompanham apreensivos os acontecimentos em Cabul, bem como ao seu redor. Era previsível que o Talibã expandisse sua área de domínio após a saída de todas as tropas ocidentais. O que surpreendeu a muitos, no entanto, foi a forma ultrarrápida, abrangente e sem combates da tomada do poder. O que também surpreendeu foi a maneira “moderada” com que o Talibã agiu em suas primeiras aparições: as mulheres deveriam usar véus, mas poderiam trabalhar e estudar. Funcionários do governo anterior, bem como as minorias étnicas e religiosas, não precisariam temer nenhuma perseguição.

Caso essas promessas demonstrarem que são confiáveis, pela primeira vez haveria a confirmação que o direito islâmico, a sharia, como base de um governo, seria compatível com os direitos humanos em geral. É isso o que muitos esperam no Ocidente, para que possam manter relações comerciais e para não precisarem suspender as ações de ajuda internacional.

“A nova aparência amistosa do Talibã contraria suas crenças de fé fundamentais, segundo as quais as mulheres e pessoas de outros credos têm menos direitos e podem rapidamente perder seu direito à vida”.

No entanto, a nova aparência amistosa do Talibã contraria suas crenças de fé fundamentais, segundo as quais as mulheres e pessoas de outros credos têm menos direitos e podem rapidamente perder seu direito à vida. Sob o domínio do Talibã, nos anos 1996 até 2001, as mulheres viviam em reclusão domiciliar. Mesmo para uma consulta médica elas só poderiam comparecer mediante companhia masculina. No entanto, pelo fato de não poderem trabalhar, até mesmo na área médica, e os homens não poderem tocar em mulheres, era praticamente impossível aplicar qualquer tratamento e elas acabavam falecendo pelas enfermidades mais simples.

Desde 2001, o dia 11 de setembro se repetiu anualmente. Na média, o número anual de vítimas do terrorismo no Afeganistão até esteve mais elevado. Os mortos, no entanto, não eram mais os americanos, mas civis afegãos – milhares a cada ano, uma tendência antes crescente do que decrescente. Por razões táticas, os terroristas agora estão tentando conter os seus recrutas ávidos por sangue até que o governo do “Emirado Islâmico do Afeganistão” seja oficialmente reconhecido. Todavia, pelo visto a fachada já está desmoronando. Estratagemas são elaborados e jornalistas são rastreados. As mulheres são novamente afastadas da vida pública. É dito que uma delas tenha sido executada porque o que ela cozinhou não foi do agrado do guerreiro divino.

Negociar a qualquer preço

Apesar de tais relatos, parece que o Ocidente democrático deseja insistentemente negociar com o Talibã. Para tanto, ele se baseia no constructo de uma luta entre terroristas radicais e “moderados” – assim como no Irã se considera o cabo-de-guerra entre os de “linha dura” e os “reformadores”. Afirmações, atos e ideologias básicas de várias décadas são simplesmente ocultados. Na tentativa de garantir uma paz duradoura após a saída das tropas americanas, foi acionado o chamado “Processo Doha” – o nome se refere à capital do Catar. O governo afegão da época deveria se acertar com o Talibã.

Antes, em 29 de fevereiro de 2020, os EUA assinaram um acordo intitulado “Bringing Peace to Afghanistan” [Trazendo paz ao Afeganistão], e isso com o Talibã. Para ser reconhecido como parceiro da paz o Talibã deveria, entre outras coisas, se afastar de outros grupos terroristas, mesmo os não tão conhecidos. Deveria afastar-se do terrorismo e também do comércio de mulheres sequestradas ou jovens mulheres escravizadas. Ou do extermínio do grupo afegão Hasara. O acordo foi assinado paralelamente a assassinatos, mutilações e comércio humano, sendo apoiado expressamente pelo Ministério de Relações Exteriores da Alemanha.[1]

Heiko Maas (PSD), Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, ainda em junho de 2021, se mostrou otimista de que o Talibã não poderia desconsiderar as negociações. Ele “deveria lembrar”, explicou Maas, “de que não há ‘regresso para o ano de 2001’”. Haveria uma sociedade civil afegã consciente contrária a isso. Essa sociedade civil, porém, é composta por mais de 60 por cento de analfabetos empobrecidos e amedrontados. Quase o dobro de mulheres, em relação a homens, não sabem ler nem escrever. Elas são tão autoconfiantes quanto o exército afegão, mal remunerado e malnutrido, e que não dispõe nem mesmo de uma força aérea após a saída das tropas dos EUA. Os civis afegãos certamente não colocarão suas cabeças a prêmio contra o Talibã, pois foram durante anos o alvo principal dos terroristas. Normalmente, da metade a três quartos das vítimas afegãs dos terroristas eram civis.

Não – se alguém pudesse proteger o povo civil afegão contra a ameaça de um governo terrorista, este seria o Ocidente democrático. Para tanto, ele deveria estabelecer limites rígidos não somente para o Talibã, mas também para o Paquistão, de onde o Talibã recebe apoio existencial.[2] O Paquistão, porém, consta simultaneamente como parceiro indispensável da OTAN, “principalmente em relação ao Afeganistão, onde há um interesse comum no combate ao extremismo”.[3] Não poderia haver contradição maior. Essa afirmação consta no texto introdutório sobre as relações com o Paquistão na página oficial do site da OTAN. Até o ano de 2014, o Paquistão garantiu direitos de trânsito às tropas da ISAF (Força Internacional de Assistência Social). Do contrário, ela precisaria encontrar uma outra via de acesso às operações do Afeganistão. Todavia, se o Paquistão não tivesse ajudado o Talibã com dinheiro, educação e possibilidades de retirada, além de apoio com milhares de soldados paquistaneses, talvez esse processo nem precisaria ter acontecido.

Dois governos no Afeganistão

Hoje o Talibã é sem dúvidas a maior força no Afeganistão e, assim, deve ser “considerada”. Ele se empenha ao máximo para se tornar a única alternativa. Nesse sentido, os ataques sangrentos da organização terrorista Estado Islâmico ao aeroporto de Cabul, em agosto, não foram inconvenientes. Por um lado, o EI é um grupo terrorista do qual o Talibã pode se “distanciar” e, por outro, com essa sombra ele pode fortalecer sua imagem de terroristas “moderados”.

O reconhecimento do emirado quase ocorreu com facilidade, se não permanecesse um legítimo sucessor do presidente refugiado no vale Panjshir, ao norte de Cabul. Ali, o vice-presidente, Amrullah Saleh, juntamente com os soldados remanescentes, mantêm resistência contra o Talibã. Em uma carta manuscrita para o periódico Spiegel, ele se refere ao Processo Doha como “o início do fim”. Ele nunca reconhecerá o Emirado do Talibã. Ele se encontra diante de um adversário enorme, mas os “patriotas” estariam dispostos a “fazer o sacrifício maior”. Para o Ocidente, ele indica que “ainda há uma solução”: “Impor sanções concretas ao Paquistão, proporcionar uma solução política. Reconhecer a legitimidade do governo de resistência nacional de Panjshir e oferecer para este todo o apoio moral e político”. É muito improvável que isso venha a acontecer. A oposição fraca, mas disposta a lutar contra o terror, normalmente não recebe apoio considerável. Nem os curdos contra o EI, nem os manifestantes iranianos contra o regime Mullah, nem os palestinos frustrados contra o Hamas, e também não o novo e legítimo governo afegão contra o Talibã.

Grupo de mulheres afegãs vestindo a burca. (Wikipédia) Grupo de mulheres afegãs vestindo a burca. (Wikipédia)

O último sinal de vida recebido de Saleh é uma mensagem de vídeo, do dia 03 de setembro, em que desmente notícias de que o Talibã havia conquistado totalmente o vale Panjshir e que ele teria se refugiado no Tadjiquistão. A situação estaria difícil. O Talibã teria desligado os telefones e a energia elétrica e cortado o reabastecimento no vale. Eles estariam conduzindo homens de Panjshir através dos campos minados para utilizá-los como “ferramentas de limpeza”. A resistência nacional, no entanto, não se dobraria diante do terrorismo.[4]

Enquanto isso, no início de setembro, o Talibã apresentou o seu novo governo. No topo encontram-se terroristas de primeira. Os EUA enviaram somas milionárias para eles. Um porta-voz do Talibã admitiu que gostaria até de dialogar com a América do Norte. Os americanos seriam bem-vindos se desejassem ajudar na restauração do Afeganistão. Os EUA não se mostram totalmente contrários a isso. Um porta-voz do Ministério do Exterior comunicou que o governo avaliaria o Talibã de acordo com suas ações e não pelas suas declarações. Além disso, lamentam que não há nenhuma mulher compondo o gabinete dos terroristas – como se a quota feminina fizesse alguma diferença no regime terrorista. Não importa quantos combatentes ainda resistam no vale Panjshir: em breve eles estarão esgotados. Então não haverá mais nenhum obstáculo para as negociações.

Antissemitismo oculto

Diante dos acontecimentos no Afeganistão, Israel se fortalece mediante a manutenção do controle sobre a Cisjordânia e ao não confiar nas tropas internacionais na questão da segurança das fronteiras. Todavia, também o Hamas e outros grupos terroristas são fortalecidos na esperança de que o islamismo consiga se impor diante das forças ocidentais. E é justamente essa a mensagem fatalista do Ocidente para o islamismo: “Nossa proteção própria é prioritária. Nós combatemos o terrorismo apenas em nosso próprio país. Enquanto vocês nos deixarem em paz, vocês podem fazer o que quiserem. Assim vocês serão considerados como agentes globais e interlocutores confiáveis”.

Criança refugiada após o colapso do Afeganistão (1o de agosto de 2021).Criança refugiada após o colapso do Afeganistão (1o de agosto de 2021).

O mundo ocidental não está desamparado nem desinformado. Para ele, o terrorismo é simplesmente insignificante enquanto ele mesmo não for atingido. No final, essa conta não vai fechar. Somente um grupo que é financeira e logisticamente forte é capaz de executar um ataque como o do 11 de setembro. E ele o fará. Isso de longe não se restringe apenas ao Talibã no Afeganistão. É o mesmo princípio para o Hezbollah no Líbano, os guardiães da revolução islâmica no Irã e o Hamas na Faixa de Gaza e, menos divulgado, também na Cisjordânia. Os terroristas se promovem a líderes governamentais e assim são reconhecidos internacionalmente.

Mesmo que o Hamas e o Hezbollah sejam classificados, em parte ou como um todo, como grupos terroristas, sempre são mantidas portas dos fundos abertas para negociações. Enquanto os islâmicos expulsarem e aterrorizarem apenas a sua própria população, eles não serão perturbados. Pelo contrário: eles recebem até ajuda financeira para seus súditos carentes e com ela financiam seus programas armamentistas. Isso acontece abertamente com o Hamas e o Talibã. Além disso, o Talibã também se financia por meio de excessivo comércio de drogas, sexo e pessoas. Ninguém consegue acreditar seriamente que os açougueiros barbudos armados se tornaram “moderados” da noite para o dia.

Grande perigo para Israel

Essa esperança ingênua é especialmente perigosa para Israel, pois ele consta no topo da lista de alvos de todos os grupos islâmicos. Com o Talibã, isso não está tão óbvio como com o Hamas e o Hezbollah, os quais operam diretamente junto às fronteiras com Israel. Parece que a área de influência do Talibã se restringe ao Afeganistão – naturalmente, visto a partir das estreitas ligações com o Paquistão. No entanto, o antissemitismo serve de elemento unificador, ou até de base unificadora de todos os grupos islâmicos, superando todas as fronteiras teológicas.

O ataque ao World Trade Center, em 2001, ocorreu por este ser considerado o centro “financeiro judeu internacional”. Em seu livro The Eleventh Day [O décimo primeiro dia], Antony Summers e Robin Swan descrevem o ódio a Israel como o fator que unificou os assassinos. Os EUA foram atacados por serem a força protetora de Israel. O próprio Osama Bin Laden havia divulgado sua imagem antissemita mundial numa declaração intitulada “Jihad contra judeus e cruzados”:[5] o objetivo dos EUA seria, através de guerras, servir a Israel e desviar a atenção da ocupação de Jerusalém e da morte dos muçulmanos de lá. A missão de cada muçulmano seria a de matar os americanos e seus aliados e libertar a mesquita de Al-Aqsa. Foi totalmente nesse sentido que o Talibã anunciou, na “formação de seu governo”, que manteria relações diplomáticas com todos os países, exceto com Israel.

Durante o conflito israelense-palestino, a prática do Ocidente foi a de minimizar ou ignorar o antissemitismo exterminador dos grupos terroristas islâmicos. Também o grupo Al Fatah, estruturado de modo mais nacionalista do que islâmico e apresentado como parceiro pacífico de Israel, demonstra abertamente seu ódio aos judeus. Se o líder palestino Mahmud Abbas (Al Fatah) fosse um cidadão alemão ou brasileiro, certamente estaria na prisão, por negação do Holocausto e por ligação e apoio às associações terroristas. Em relação a Israel, no entanto, os parâmetros são diferentes.

Em 2013, John Kerry, o então Ministro do Exterior dos EUA, convidou pela primeira vez o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para analisar uma possível solução para o conflito israelense-palestino. De acordo com esse modelo, Israel poderia se retirar da Cisjordânia e os EUA se encarregariam de manter os terroristas sob controle. Haveria uma viagem secreta para o Afeganistão. Netanyahu agradeceu e recusou.[6]

Lembranças de experiências israelenses no Líbano e em Gaza

Israel é um dos poucos países, senão o único exemplo de país, que mantém o controle dos grupos terroristas inimigos a tal ponto que ainda é possível para os cidadãos do país levarem uma vida livre e democrática. A desagradável “surpresa” no Afeganistão é uma experiência vivida por Israel já por duas vezes, de maneira diferenciada e com consequências terríveis: após a retirada das tropas militares do Líbano, no ano 2000, e da Faixa de Gaza, em 2005, o vácuo de poder resultante foi preenchido pelo terrorismo. Desde então, o Hezbollah, no Líbano, e o Hamas, em Gaza, conseguiram desenvolver potentes exércitos terroristas. A proteção das pessoas em Israel é sempre um imenso desafio. Esse desafio ficará ainda maior à medida em que o Ocidente permitir o surgimento de mais estruturas terroristas no mundo e, ao mesmo tempo, condenar Israel até por suas medidas defensivas como muros e pontos de inspeção.

O caso do Afeganistão também é um trunfo para o Irã, cujo governo deseja cenários semelhantes para a Síria e o Iraque: que os americanos saiam de lá e entreguem os países ao caos e que o Irã consiga ajustar mais o cinto de influência em torno de Israel. Após um passado de amargas lutas, a liderança iraniana se reconciliou com o Talibã e agora apoia abertamente o seu emirado. Também a Rússia e a China não o rejeitam. Os fronts que aqui se abrem não atingem somente o Afeganistão, mas ameaçam a Israel, além de todo o mundo livre. Apesar disso, logo mais voltará a calma, isto é, quando algumas “forças simbólicas locais” saírem e, juntamente com os últimos soldados, também as últimas câmeras forem levadas de Cabul. Os governos dos EUA, Alemanha e outros países participantes, bem como as sociedades que representam, vão retornar à sua rotina, até o momento em que a pressão for excessiva ou até que “aconteça” o próximo ataque islâmico a uma feira natalina.

Com os direitos gentilmente cedidos
por israelnetz.de.

Notas

  1. https://www.auswaertiges-amt.de/de/aussenpolitik/regionaleschwerpunkte/afghanistan-internationales-engagement/arria-treffen-afghanistan/2418548
  2. https://www.files.ethz.ch/isn/117472/DP%2018.pdf
  3. https://www.google.com/url?q=https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_50071.htm&sa=D&source=editors&ust= 1631308011794000&usg=AOvVaw3mzYcyGGO3X0_gJ12FCuNg
  4. https://twitter.com/AmrullahSaleh2?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Eserp%7Ctwgr%5Eauthor
  5. https://irp.fas.org/world/para/docs/980223-fatwa.htm
  6. https://www.jpost.com/israel-news/netanyahu-rejected-kerrys-afghanistan-style-solution-for-palestinians-677046
sumário Revista Chamada Novembro 2021

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