Cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus?

Será que Alá é apenas um outro nome para o único Deus verdadeiro? Os católicos dizem que sim, e os evangélicos em geral, não. Eis uma proposta de solução que leva em conta a realidade vivida no Oriente Médio.

Como árabe cristão, cujo avô se chama A’bd Allah (“Escravo de Deus”) e que tem um filho chamado Yoh’anna (“Javé é misericordioso”), é uma honra especial escrever sobre este tema.

Até onde sei, todas as versões bíblicas árabes traduzem por Allah o hebraico Elohim e o grego Theos. Além disso, usamos diariamente expressões como noshkor Allah (para dar graças a Deus) e Inshaa’ Allah (“Seja feita a vontade de Deus”).

Então, a grande questão é a seguinte: será que Alá é apenas um outro nome para o único Deus verdadeiro? Em outras palavras: seriam Alá e Deus simplesmente nomes diferentes para o mesmo Deus?

Desde sua declaração sobre seu relacionamento com as religiões não cristãs aprovada no Concílio Vaticano II (“Nostra Aetate”), a Igreja Católica Romana ensina que cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus. E como ficamos nós, os evangélicos? Teríamos uma resposta ao mesmo tempo honesta e sábia para o dilema da identidade entre o Alá do Alcorão e o Deus da Bíblia?

Para nos aprofundarmos um pouco nesse complexo tema, vamos então examinar o significado, a essência e as características de Alá e compará-los com o retrato bíblico de Deus.

Origem e significado

A palavra Allah parece derivar do árabe al-ilah, que significa “o Deus”. Alá é mais antigo que o islã e era originalmente um dos deuses no Al-kaa’ba, o principal centro de adoração em Meca. Alá era a designação genérica do deus supremo na península Arábica. Ele tinha três filhas: Al-lat, Al-u’zza e Manat. Em meio a uma inédita controvérsia com o politeísmo, o Alcorão decidiu-se por Alá como o único Deus verdadeiro e repudiou a ideia de que Alá teria filhos ou filhas.

De forma similar, a palavra grega Theos, que originalmente designava os deuses pagãos da Grécia, é usada tanto na Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento) como também no Novo Testamento grego como equivalente ao hebraico Elohim. Da mesma forma, o inglês God e o alemão Gott provavelmente remontam ao Guthan germânico pré-cristão, portanto também a um termo pagão.

A importação de palavras de culturas do passado é uma prática absolutamente comum. Tais palavras terão sempre um significado denotativo (conceitual) como também conotativo (as noções e os sentimentos ligados àquela palavra). Com base nisso, parece correto dizer que ambos, Deus e Allah, designam o conceito de “Deus”. No entanto, a conotação resulta daquilo que alguém imagina em relação ao objeto designado por tal palavra.

As características de Alá

Alá é descrito por toda uma série de nomes, atributos e atitudes, que juntos são conhecidos como “os 99 mais belos nomes de Alá”. Destes, 36 referem-se ao seu domínio e sua soberania, como por exemplo “onisciente”, “onipotente” e “insigne”. Outros 24 tratam da sua misericórdia e graça, como por exemplo “benevolente”, “paciente” e “perdoador”. Os outros nomes tematizam diferentes aspectos, como por exemplo “vingador”, “vivente”, “fiel”, “protetor”, “destruidor”, “líder” e “tentador”.

Talvez você já tenha notado que um determinado nome de Alá pode negar outro, ou seu significado pode estar incluso também em um outro nome. Em última análise, os muçulmanos veneram um Deus desconhecido e multidimensional. Eles vivem em grande temor e reverência diante dele e se esforçam em obedecer rigorosamente a todos os seus mandamentos.

A expressão “Allahu akbar!” pode nos ajudar a entender essa noção intuitiva. Essa expressão não tem sentido isolado, mas é parte de uma sentença. Literalmente, ela significa “Alá é maior!” – maior do que todos e tudo que conhecemos.

Vamos tentar entender a noção que os muçulmanos têm de Alá. Quem é esse Deus que eles buscam pela oração? Examinemos a imagem muçulmana de Alá e verifiquemos se coincide com a imagem cristã de Deus. Eis aqui algumas das características essenciais (e em parte contraditórias entre si) de Alá:

A. O Único

A primeira parte do credo islâmico reza: “Não existe Deus além de Alá!”. Este é ao mesmo tempo o principal dogma islâmico, que contrapõe a absoluta unidade de Alá às afirmações de que existiriam outros deuses além dele. É o que diz o Alcorão na Surata 112:1-4: “Dize: Ele é Deus, o único. Deus! O absoluto! Jamais gerou ou foi gerado! E ninguém é comparável a Ele”.[1]

Isso significa que Alá não tem filhos (nem espirituais nem biológicos). Portanto, ele não pode ser nem pai nem filho. O Espírito Santo é identificado pela maioria dos muçulmanos com o anjo Gabriel. Esta é uma absoluta negação da condição de filho e de divindade de Jesus e da paternidade de Deus.

Em contrapartida, o Deus da Bíblia é em sua essência um Deus trino. A eterna interação na Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) é um relacionamento de amor que se aplica também à criação.

B. Senhor e Criador

O muçulmano piedoso prostra-se várias vezes ao dia em adoração diante de Alá. Toda a sua vida e mente são determinadas por Alá e seus mandamentos. As palavras árabes para “culto” (E’bada) e “adorador” (A’abed) derivam ambas da palavra A’bd (“escravo”). Ninguém é livre no islã – todos são escravos de Alá, e seu único privilégio consiste em adorá-lo cheios de medo.

Alá também é o criador do mundo, o que lembra os homens distraídos de que a criação é uma boa dádiva pela qual eles deveriam ser gratos. Todavia, Alá é excessivamente santo para ter um relacionamento pessoal com suas próprias criaturas.

Já o Deus da Bíblia não é apenas o Senhor do universo, mas também um Pai que deseja adoração voluntária daqueles que nele creem e que ele chama de filhos. O Deus da Bíblia é soberano, infinito e o criador do universo, mas seu relacionamento com o seu povo é o de um pai amoroso que zela pelos seus filhos.

Parece correto dizer que ambos, Deus e Allah, designam o conceito de “Deus”. No entanto, a conotação resulta daquilo que alguém imagina em relação ao objeto designado por tal palavra.

C. Intrigante

O relacionamento de Alá com o pecador é multifacetado. Antes de tudo, ele fundamentalmente não o ama. “... Deus não estima os agressores... Ele não aprecia nenhum incrédulo, pecador” (Surata 2:190,276). Mas há mais: “... Deus... encaminha pela senda reta quem Lhe apraz” (Surata 6:39). Os infiéis, por sua vez, ele não se limita a punir e julgar, mas os conduz propositadamente ao erro (“... Deus desvia quem quer...”, Surata 6:39). Aos anjos ele ordena: “Congregai os iníquos com suas esposas e tudo quanto adoravam, em vez de Deus, e conduzi-os até à senda do inferno!” (Surata 37:22-23). O Alcorão também apresenta Alá como aquele que engana os infiéis e tece intrigas contra eles: “Os hipócritas pretendem enganar Deus, porém, Ele os enganará...” (Surata 4:142). “Porém, [os infiéis] conspiraram; e Deus, por Sua parte, planejou, porque é o melhor dos planejadores” (Surata 3:54; cf. 8:30).

O Deus da Bíblia, por sua vez, não é nem enganador nem intrigante. Ele é um amoroso Salvador, “que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4). Deus ama a todos, não importa o quanto tenham pecado. Ele é a fonte do amor e desafia seus discípulos a amarem até seus inimigos.

D. Anulador

Alá revela e anula arbitrariamente versículos do Alcorão. “Não ab-rogamos nenhum versículo, nem fazemos com que seja esquecido (por ti), sem substituí-lo por outro melhor ou semelhante. Ignoras, por acaso, que Deus é Onipotente?” (Surata 2:106).

Isso significa que, em última análise, Alá não é consistente e muitas vezes modifica sua vontade revelada. Se isso for verdade, nenhuma das suas promessas de eterna bem-aventurança dos fiéis estará garantida.

Bem diferente é o Deus da Bíblia: ele não modifica suas palavras e promessas. Por meio de Jesus Cristo, ele nos assegura de forma firme e irrevogável a salvação e a bem-aventurança eterna porque suas promessas provêm da sua natureza imutável.

E. Recompensador

Segundo o Alcorão, a recompensa eterna para os fiéis é o paraíso. Trata-se principalmente de um paraíso para homens (muçulmanos), cheio de prazeres sensuais: banquetes intermináveis, sexo em abundância com uma grande multidão de virgens que permanecem virgens para sempre. “Por outra, os tementes obterão a recompensa, jardins e videiras, e donzelas, da mesma idade, por companheiras, e taças transbordantes” (Surata 78:31-34).

Em vez de responder essa pergunta com um “sim” católico ou um “não” evangélico, há uma outra via que parece melhor.

A recompensa eterna de que a Bíblia fala é completamente diferente. Os crentes cristãos estarão para sempre no céu com Deus e desfrutarão de sua presença, de seu infinito amor e de alegria – algo bem diferente de prazeres sensuais. Os bem-aventurados “não se casarão nem serão dados em casamento... são filhos da ressurreição” (Lc 20.35-36). “Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria...” (Rm 14.17).

Conclusão

O Alá do islã é um deus oculto e distante, que revela sua vontade, mas não a si mesmo, de modo que não há possibilidade de um relacionamento pessoal com ele. Em sua absoluta unicidade existe unidade, mas não trindade e, com isso, nenhum relacionamento. Disso resulta que o amor não constitui nenhum valor relevante. Para o muçulmano, Alá é um título ou uma designação genérica do Deus verdadeiro.

Quando árabes cristãos falam de Alá, eles se referem ao Deus da Bíblia, pessoal e trino, o Pai amoroso que se tornou homem em Cristo Jesus e que interferiu na história humana a fim de se revelar a nós e nos salvar da nossa pecaminosidade. Ele pagou o preço dos nossos pecados para nos libertar, restaurar a imagem de Deus em nós e nos dar a certeza da vida eterna. Esta é uma imagem da divindade radicalmente diferente daquela do islã, para o qual tais conotações são impensáveis.

Certamente os muçulmanos e os cristãos árabes continuarão utilizando o nome “Alá” no futuro, com interpretações radicalmente diferentes. Em vez de tentarmos negar essa realidade e responder à pergunta inicial deste artigo com um “sim” católico ou um “não” evangélico, uma outra via, mais moderada, perece melhor.

Que tal se déssemos respeitosamente ouvidos aos muçulmanos e lhes perguntássemos o que eles entendem por Alá, assim como também fazemos com termos típicos de outras religiões (p. ex. carma, halal, kosher etc.)? Seria uma abordagem cordial e prática que poderá conduzir a uma conversa amigável que nos oferecerá a oportunidade de testemunhar sobre nossa fé por meio da exposição do nosso conceito bíblico da divindade.

Nota

  1. Todas as passagens do Alcorão foram extraídas da tradução do professor Samir El Hayek, de 1994. Disponível em: https://alcorao.com.br

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Março 2021

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