A crucificação e o propósito de Jesus no Alcorão

A posição islâmica geralmente aceita é que Jesus não morreu na cruz, mas que alguém outro, parecido com ele, foi crucificado, enquanto Jesus foi arrebatado vivo para o céu.

Há muitos séculos, a crucificação de Jesus é um dos temas teológicos mais controversos. Por que ela teria sido necessária, quando, onde, como ela ocorreu e inclusive a questão altamente melindrosa de quem a executou – tudo isso tem sido repetidamente discutido. Segundo os evangelhos canônicos, os líderes judeus prenderam Jesus, condenaram-no segundo as leis da Torá e entregaram-no ao governador romano Pôncio Pilatos, o qual, após uma avaliação jurídica do caso, o condenou à morte por crucificação.

Alguns antigos hereges não criam que Cristo tivesse efetivamente sido crucificado. Os adeptos do gnóstico Basílides achavam que alguém outro tivesse sido crucificado no lugar de Jesus, e os chamados docetistas ensinavam que Jesus era só aparentemente humano e que só ilusoriamente tinha um corpo, de modo que toda a crucificação não teria passado de encenação.

O Alcorão tem sua visão própria e específica da crucificação. Vamos examiná-la com base nas seguintes duas passagens corânicas:[1]

“E quando Jesus lhes sentiu a incredulidade, disse: Quem serão os meus colaboradores na causa de Deus? Os discípulos disseram: Nós seremos os colaboradores, porque cremos em Deus; e testemunhamos que somos muçulmanos. Ó Senhor nosso, cremos no que tens revelado e seguimos o Mensageiro; inscreve-nos, pois, entre os testemunhadores. Porém, (os judeus) conspiraram (contra Jesus); e Deus, por Sua parte, planejou, porque é o melhor dos planejadores. E quando Deus disse: Ó Jesus, por certo que porei termo à tua estada na terra; ascender-te-ei até Mim e salvar-te-ei dos incrédulos, fazendo prevalecer sobre eles os teus prosélitos, até ao Dia da Ressurreição. Então, a Mim será o vosso retorno e julgarei as questões pelas quais divergis. Quanto aos incrédulos, castigá-los-ei severamente, neste mundo e no outro, e jamais terão protetores” (Surata 3.52-56).

“E por dizerem: Matamos o Messias, Jesus, filho de Maria, o Mensageiro de Deus, embora não sendo, na realidade, certo que o mataram, nem o crucificaram, senão que isso lhes foi simulado. E aqueles que discordam, quanto a isso, estão na dúvida, porque não possuem conhecimento algum, abstraindo-se tão-somente em conjecturas; porém, o fato é que não o mataram. Outrossim, Deus fê-lo ascender até Ele, porque é Poderoso, Prudentíssimo. Nenhum dos adeptos do Livro deixará de acreditar nele (Jesus), antes da sua morte, que, no Dia da Ressurreição, testemunhará contra eles” (Surata 4.157-159).

A morte de Jesus no Alcorão

O Alcorão faz Jesus dizer claramente a respeito da sua morte: “A paz está comigo, desde o dia em que nasci; estará comigo no dia em que eu morrer, bem como no dia em que eu for ressuscitado” (Surata 19.33). Todavia, na tradição mais tardia do Alcorão, o quadro se torna mais complexo: segundo esta, os judeus teriam admitido ter morto Jesus, mas essa morte é descrita como ilusória. Se juntarmos esses textos, poderíamos concluir daí que, ainda enquanto o plano do assassinato estava sendo engendrado, Deus (Alá) teria exaltado Jesus para si no céu.

A questão central é se Jesus realmente morreu ou se foi arrebatado a tempo para o céu. Segundo a Surata 3.55, Alá teria dito a Jesus, conforme já vimos: “... porei termo à tua estada na terra”. A palavra árabe traduzida aqui por “termo” (motawaffika), que aparece no Alcorão em mais de 20 passagens em diferentes formas gramaticais, sempre significa “morte” quando se refere a pessoas concretas (cf. Surata 39.42; 2.234; 3.193 etc.). Adiante: a sequência das palavras na frase “não sendo, na realidade, certo que o mataram, nem o crucificaram” (Surata 4.157) parece refletir o modo pelo qual os antigos povos orientais procediam com seus inimigos: primeiro os executavam e depois os enforcavam ou suspendiam. O método especificamente romano era a execução por crucificação. Pode muito bem ser que a sequência que notamos em um artigo precedente sobre a execução de Jesus no Talmude Babilônico (primeiro apedrejamento, depois enforcamento) também tenha influenciado a formulação no Alcorão.

Crucificação ou ascensão?

O modo como os evangelhos sinóticos descrevem a confusão geral e as discussões dos discípulos depois da ressurreição de Jesus também é digno de nota. Alguns se espantaram, outros consideravam tolice a ressurreição. Entre aqueles que só creram na ressurreição depois que Jesus aparecera a eles pessoalmente estavam explicitamente também os Onze (Lc 24.11,22; Mc 16.14).

É bem possível que os relatos cristãos sobre a ressurreição tenham contribuído para a complexidade e a confusão do Alcorão sobre os eventos nos últimos dias de Jesus na terra. Como já foi mencionado, o Alcorão responsabiliza os judeus pela morte de Jesus e, depois de pesadas acusações, finalmente reconhece que o crucificaram. No entanto (prossegue o Alcorão), aquele que foi crucificado ali nem era o Jesus que os judeus imaginavam, mas apenas “lhes pareceu assim” (árabe: shubbiha lahum).

O ensino inequívoco do Alcorão é que Cristo não foi crucificado ou morto pelos judeus, ainda que certas circunstâncias levassem a essa ilusão no pensamento dos seus inimigos. “... o fato é que não o mataram. Outrossim, Deus fê-lo ascender até Ele” (Surata 4.157-158). Baseada nessa passagem do Alcorão, a posição islâmica geralmente aceita é que Jesus não morreu na cruz, mas que alguém outro, parecido com ele, foi crucificado, enquanto Jesus foi arrebatado vivo para o céu.

Por um lado, vemos aqui uma certa influência da doutrina cristã no sentido de que o Alcorão não nega o fato de uma crucificação ter ocorrido. Por outro lado, porém, isso implica que, se aquele que foi crucificado não tivesse sido Jesus, os muçulmanos teriam todos os motivos para rejeitar a doutrina da morte vicária de Cristo.

Jesus nos últimos dias

O Alcorão concede a Jesus uma posição especial em relação aos últimos dias do mundo – mais um aspecto da posição especial de Jesus no Alcorão.

1. Jesus como indicador do fim do mundo. No seu período de Meca, o Alcorão diz aos que se desentendiam sobre Jesus e àqueles que não queriam ter nada com ele que ele “será um sinal da Hora” (Surata 43.61; cf. toda a passagem de 43.57-61). Em outras palavras: ele é um sinal para a chegada da hora do juízo. No entanto, o Alcorão testifica em várias passagens que Deus (Alá) reservou a si o conhecimento dessa hora (Surata 41.47; 45.27; 43.85). Há uma passagem que oferece uma introdução extremamente interessante para essa constatação: “As pessoas te interrogarão sobre a Hora (do Juízo). Dize-lhes: Seu conhecimento somente está com Deus!” (Surata 33.65).

O Alcorão considera Jesus, como profeta e curador, conferindo-lhe diversos títulos, virtudes e atos de poder – mas não mais do que isso.

Por um lado, encontramos no Alcorão uma distinção entre o próprio Deus, que conhece a hora do juízo, e Jesus, que é o sinal ou a pré-condição que precede essa hora. Por outro, o Alcorão concede aqui a Jesus uma posição escatológica única, para qual na verdade Maomé seria o candidato lógico.

2. Jesus como testemunha no dia do juízo. Outro aspecto do papel de Jesus nos últimos dias é seu testemunho escatológico. Segundo o Alcorão, sua mãe já é informada no anúncio do seu nascimento de que ele será “nobre neste mundo e no outro, e que se contará entre os diletos de Deus” (Surata 3.45). O Jesus terreno é descrito como mensageiro que transmite sua doutrina ao povo de Israel e é uma testemunha (Surata 5.117). Também os outros profetas, entre os quais Maomé, serviram aos seus povos como testemunhas de Alá (Surata 4.41). Jesus, porém, é apresentado não só como testemunha neste mundo terreno, mas também como testemunha no vindouro: “Nenhum dos adeptos do Livro deixará de acreditar nele (Jesus), antes da sua morte, que, no Dia da Ressurreição, testemunhará contra eles” (Surata 4.159). É impossível determinar no texto árabe se a expressão “antes da sua morte” se refere a Jesus ou, pelo contrário, a alguém outro do povo da Escritura. E, embora se confira aqui a Jesus uma posição inigualada, em última análise – tal como também nas referências paralelas – sempre será Deus (Alá) a testemunha para todos os povos (Surata 22.17) porque a ele tudo pertence e ele é onisciente (Surata 85.9; 58.6).

Resumo

As tradições judaicas e cristãs conhecidas para o Alcorão parecem ter sido numerosas e variadas. Por isso não é fácil detectar quais delas foram as principais fontes para as declarações do Alcorão. Encontramos no Alcorão elementos diversos dos quais alguns combinam bem com o espírito daqueles tempos e que mais provavelmente foram incluídos casualmente.

Como é usual no desenvolvimento de tradições narrativas religiosas, ocorreram trocas de identidades, e influências sociais, políticas e religiosas levaram a alterações de eventos, locais e outros detalhes. O Jesus do Alcorão revela ao longo de toda a sua vida uma nítida tendência de se distanciar. Na sua infância, ele se distancia dos judeus, que acusaram sua mãe de adultério. Como adulto, ele realiza seus sinais e milagres, mas esclarece que Deus (Alá) é seu Senhor e que os homens deverão obedecer a esse Deus. E quando finalmente o próprio Alá lhe pergunta se ele quer ser adorado, ele nega e se distancia também disso. Em cada fase da sua vida ele indica não ser mais que um fiel servo de Alá.

Podemos, portanto, constatar que o Alcorão considera Jesus, desde seu nascimento e durante toda a sua vida, como profeta e curador, conferindo-lhe diversos títulos, virtudes e atos de poder – mas não mais do que isso.

Makram Mesherky

Nota

  1. Todas as passagens do Alcorão foram extraídas da tradução do professor Samir El Hayek, de 1994. Disponível em: <https://alcorao.com.br>.

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Janeiro 2021

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