Entre o Direito Internacional e a Realidade em Transformação

Desde dezembro de 2017, quando o presidente dos EUA, Donald Trump, reconheceu Jerusalém como a capital do Estado de Israel, protestos ocorreram mundo afora. Há uma insistência internacional pela manutenção do status quo. Todavia, do que de fato se trata e por que o tema está novamente na boca de todos?

Em setembro, Israel assinou os históricos acordos com os Emirados Árabes Unidos (EAU) e com o Bahrein. Uma “barreira de som” foi rompida no Oriente Médio. Subitamente parece que muita coisa se tornou possível. Observando melhor, no entanto, descobre-se que há muita coisa possível, mas nem tudo. Os dois Estados árabes já anteciparam que não instalarão suas embaixadas em Jerusalém, mas em Tel Aviv. A mídia imediatamente relatou sobre o assunto.

Enquanto isso, manchetes também anunciaram que Sérvia e Kosovo, ao contrário, possivelmente estabelecerão as embaixadas em Jerusalém. Afinal, quando se trata do status quo da cidade de Jerusalém, por que sempre se fala sobre as embaixadas estrangeiras nessa cidade?

A marcha solitária dos EUA

No dia 6 de dezembro de 2017, o presidente Donald Trump, notório por suas declarações bombásticas, anunciou: “Cheguei à conclusão de que está na hora de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel”. Ele cumpriu sua palavra. Logo após alguns meses foi executado o que o Congresso norte-americano havia decidido, em 24 de outubro de 1995, em virtude do decreto sobre a embaixada em Jerusalém (Jerusalem Embassy Act): a transferência da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém.

Aquilo que tanto os democratas como os republicanos pretendiam unânimes implantar, os presidentes Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama, bem como posteriormente também Trump, suspendiam a cada seis meses. Com isso eles exerciam o poder administrativo de veto que os presidentes da nação dispõem (executive waiver), pois eles compartilhavam os temores do mundo de que a alteração do status quo de Jerusalém poderia causar tensões no Oriente Médio e talvez até em todo o mundo islâmico. É de fato um cenário a ser considerado, pois o islamismo é a religião oficial em 27 países do mundo. Cerca de 1,8 bilhão de muçulmanos consideram Jerusalém como a terceira cidade mais santa de sua confissão religiosa.

Trump não deu muita importância a isso e a cerimônia de transferência da Embaixada dos EUA foi realizada no dia 14 de maio de 2018, como símbolo para o 70º aniversário da Declaração do Estado de Israel de acordo com o calendário ocidental. Em 1948 os judeus de todo o mundo comemoraram, mas ainda na mesma noite aquele jovem Estado estava sob guerra. Também em 2018 Israel comemorou que o maior aliado do país entrou na brecha em favor da capital, Jerusalém. Israel estava ciente de que para Trump havia antigos interesses próprios envolvidos, mas isso se tornou algo secundário diante do reconhecimento de Jerusalém como a capital do país. O mundo todo estava na expectativa quanto ao nível de protestos que surgiriam. Estes não deixaram de acontecer, mas não chegou a ser a esperada onda de violência.

Outra situação também não ocorreu: Israel esperava que outros países acompanhassem o exemplo dos EUA. De fato, alguns países reconheceram Jerusalém como a capital de Israel, entre eles a Austrália e a Guatemala. A Rússia já havia reconhecido Jerusalém Ocidental como a capital do Estado judeu. Todavia, no outono de 2020 aconteceu algo em relação às transferências de embaixadas que se tornou uma espécie de prisma para o reconhecimento da presença de Israel, bem como dos direitos dos israelenses na Cidade Santa. Até países como a Hungria, República Tcheca e Brasil, considerados bem-intencionados com Israel, até então escolheram uma “via com menor oposição”: eles abriram somente representações comerciais em Jerusalém.

Até países como a Hungria, República Tcheca e Brasil, considerados bem-intencionados com Israel, até então escolheram uma “via com menor oposição”: eles abriram somente representações comerciais em Jerusalém.

O status quo

Quem visitava Jerusalém no século 19 considerava-a como uma pequena cidade provinciana adormecida e atrasada, que servia de magneto para milhões de peregrinos das três grandes religiões mundiais: judaísmo, cristianismo e islamismo. Mudanças já ocorreram em Jerusalém (é a única cidade de Israel que caminha ao encontro da marca dos milhões), mas ainda pertence às cidades mais pobres do país. Entre suas características particulares não aparecem apenas os diferentes grupos que compõe a população, mas também a história mais recente com seu status quo muito observado.

Em reação à marcha solitária de Trump, quase todos exigiram “respeito ao status quo da cidade”. Esse status quo é respeitado como garantia para que Jerusalém não seja motivo de outra guerra no Oriente Médio, ou além dele. O Plano de Divisão da Palestina de 29 de novembro de 1947, da Organização das Nações Unidas (ONU), declarou Jerusalém como corpus separatum. Com a criação do Estado para os judeus e um Estado para os árabes, na área da Palestina, Jerusalém seria um “corpo separado” submetido ao controle internacional, isto é, nominalmente à ONU. É justamente a isso que ainda hoje se reportam, invocando o atual direito internacional. Contudo, a realidade já havia tomado outro rumo em 1948.

No decorrer da Guerra da Independência, em 1948-1949, a Jordânia ocupou a área ocidental de Jerusalém, habitada majoritariamente por cidadãos árabes. Israel não teve mais acesso à área mais santa para o judaísmo, ao Muro das Lamentações, que é uma área remanescente do complexo do templo – igualmente à Cidade Antiga e arredores, isto é, à antiga área de assentamento de Jerusalém e, com isso, aos locais singulares para a história do povo judeu. Jerusalém estava dividida.

Não apenas isto foi alterado com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, mas também a realidade política e jurídica da cidade. Quando o Estado de Israel publicou o Decreto de Jerusalém, em 30 de julho de 1980, o mundo não aceitou simplesmente a aplicação do direito de Israel – como ocorreu após o dia 5 de janeiro de 1950, quando o parlamento havia declarado Jerusalém como capital de Israel. Afinal, não se tratava “apenas” da área majoritariamente judaico-israelense de Jerusalém, mas de toda a cidade e assim também da então já numerosa população árabe. Atualmente esta compõe 35% dos 927 mil habitantes. A primeira reação foi da ONU, que declarou nulo o decreto de Jerusalém e exortou os países-membros a transferirem suas embaixadas para Tel Aviv. Naquela época, 45 países mantinham embaixadas em Israel, sendo que 13 delas estavam localizadas em Jerusalém e foram então transferidas.

Ninguém consegue contornar o fato de que, já há muitas décadas, Jerusalém é o centro governamental e administrativo do Estado de Israel.

Jerusalém: o microcosmo das aspirações

Desde 1967 Israel considera a cidade como sendo reunificada, mas, mesmo assim, as pessoas vivem realidades muito diferenciadas na área oriental e na ocidental. Os palestinos já desejam há alguns anos uma declaração de guerra diplomática. Eles proclamaram um “Estado da Palestina” independente. Quando 138 dos 193 países-membros da ONU reconheceram um “Estado da Palestina” independente, eles também não deram seu veto à aspiração palestina em querer transformar Al-Quds (“A Santa”, a designação árabe para Jerusalém) na capital da “Palestina”.

Nem as leis israelenses, nem as aspirações palestinas alteraram o status quo da cidade, para o qual se insiste com o direito internacional; porém, este não pode ser considerado no lugar do status quo da área ao redor do monte do Templo. Sobre a situação da cidade de Jerusalém, a qual é denominada como o coração do conflito entre israelenses e palestinos, ambos os lados deverão decidir por meio de negociações sobre a solução para esse conflito. Mesmo que a decisão seja atribuída às negociações diretas entre as duas partes, o mundo – principalmente a União Europeia (UE) – já decidiu qual deve ser a decisão final: a aplicação da solução de dois Estados.

À primeira vista, parece que tudo está paralisado, e não apenas em relação a Jerusalém. Até mesmo o “acordo do século” de Trump já foi diversas vezes considerado como um “canto de cisnes”. No entanto, o mês passado trouxe mudanças, que envolvem principalmente os EUA e o presidente Trump: Israel e os EAU formalizaram suas relações. Em seguida, o Bahrein aderiu, o que despertou a atenção, pois este país está estreitamente ligado à Arábia Saudita. O fato de haver contatos dignos de nota entre Israel e países árabes moderados do Golfo já não era mais segredo. Mesmo assim, trata-se de uma evolução notável, pois Trump, por ocasião da assinatura do acordo em Washington, fez novos e pomposos anúncios: outros países árabes acompanharão o reconhecimento do Estado de Israel.

Não é surpresa que essas monarquias dos xeiques não instalarão suas embaixadas em Jerusalém, mas em Tel Aviv. É uma clara afirmação para o qual o direito internacional praticamente não tem relevância. Ela, como também outras, reforça o reconhecimento do Estado de Israel por meio da instalação de uma embaixada em Tel Aviv. Com a localização em Tel Aviv, no entanto, eles indicam claramente que consideram as aspirações palestinas em relação à sua capital. Isso vale especialmente para os países muçulmanos, que assim obviamente mantém o olhar sobre o monte do Templo. Todavia, ninguém consegue contornar o fato de que, já há muitas décadas, Jerusalém é o centro governamental e administrativo do Estado de Israel.

Disputa entre Sérvia e Kosovo retarda o reconhecimento

As negociações entre israelenses e palestinos causam movimentação no status quo? O assunto da localização de embaixadas em Jerusalém ultimamente trouxe novidades, até fatos inovadores. O presidente da Sérvia, Aleksandar Vučić, anunciou a intenção de transferir a embaixada de seu país para Jerusalém. Assim, a Sérvia seria o primeiro país europeu a ousar dar esse passo. No entanto, ainda mais sensacional é o anúncio de Kosovo reconhecendo Jerusalém como capital de Israel e do plano de instalar ali sua embaixada. Assim, Kosovo seria o primeiro país a quebrar mais um tabu: muçulmanos que se declaram abertamente sobre uma ligação judaica com Jerusalém.

Todavia, antes que isso de fato acontecesse, aconteceram novas brigas. Sérvia e Kosovo não mantém relações amistosas, motivo pelo qual a Sérvia anunciou que não transferiria sua embaixada para Jerusalém caso houvesse, por parte de Israel, o reconhecimento de Kosovo – contra cuja independência a Sérvia havia mantido seu veto. Já havia outras disputas em andamento quando a UE afirmou claramente que tanto a Sérvia quanto Kosovo estariam colocando em risco sua membresia junto à própria UE caso transferissem suas embaixadas para Jerusalém...

Será que teremos mais movimentações sobre esse assunto? A República do Chade, outro país com maioria muçulmana, anunciou a intenção de instalar uma representação diplomática em Israel. Caso a localização da embaixada do Chade seja de fato em Jerusalém, conforme informações vazadas, parece que haverá mudanças no status quo de Jerusalém. Resta observar: nem todos estão tão contentes como Israel com esse fato.

Antje Naujoks

Antje Naujoks dedicou sua vida para ajudar os sobreviventes do Holocausto. Já trabalhou no Memorial Yad Vashem e na Universidade Hebraica de Jerusalém.

sumário Revista Chamada Dezembro 2020

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