A divindade de Jesus no Alcorão

Esta série examina os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não cristãos. Nesta edição, continuamos vendo o que o Alcorão fala sobre Jesus.

Parte 8

A divindade de Jesus no Alcorão

O título “Filho de Deus” é considerado no sentido biológico-sexual e é respectivamente rejeitado em todo o Alcorão, pois é um absurdo pensar num Deus que teve relações sexuais com alguém. Pessoas que defendem o título “Filho de Deus” são tratadas de diferentes maneiras. Abaixo darei alguns exemplos de como o Alcorão descreve os defensores da expressão “Filho de Deus” e como ele os contraria. Descreverei o desenvolvimento histórico dessa posição e a sua relação com Jesus.

1. Reações iniciais às diferentes ideias politeístas

Nos capítulos iniciais do Alcorão (o período de Meca), as expressões “filhos de Deus” e “filhas de Deus” representam ideias politeístas vigentes na península Arábica naquela época. Uma das mais conhecidas era a honraria às três deusas al-Lat, al-’Uzzah e Manat. Elas eram consideradas as três filhas de Alá, e o Alcorão claramente condena as honras a elas (Surata 53.19-23).

Em outras manifestações desse período, o Alcorão refere-se à afirmação corrente entre os adoradores de ídolos de que Deus teria um filho (Surata 25.2-3) e explica claramente: “Ele é Deus, o Único... Jamais gerou ou foi gerado! E ninguém é comparável a Ele!” (Surata 112.1-4).[1] O Alcorão menciona diversas razões para a rejeição da doutrina de que Deus tem um filho:

Primeira, essa doutrina é arrogante e demoníaca. É impossível que o Criador do mundo tenha uma mulher e que essa lhe gere um filho. O mundo todo pertence a ele, de maneira que ele não necessita de um filho para governar juntamente com ele (Surata 72.2-6; 17.111).

Segunda, essa doutrina é blasfema e seus seguidores serão duramente castigados no mundo vindouro (Surata 10.68-70). Por um lado, ela é uma grande mentira e, por outro, algo que as pessoas não conseguem saber.

Terceira, um outro argumento diz: “Se Deus quisesse tomar um filho, tê-lo-ia eleito como Lhe aprouvesse, dentre tudo quanto criou” (Surata 39.4). Essa frase provavelmente quer expressar que Deus não permitiria que alguém determinasse quem seria o seu filho.

Vemos que o Alcorão oferece argumentos simples contra a existência de um Filho de Deus que pretendem mostrar de maneira lógica que não pode haver um Filho de Deus. Com isso o Alcorão visa, em primeira linha, os adoradores de ídolos daquela época.

2. Reações posteriores às honras para Jesus como Filho de Deus

Somente nos capítulos posteriores do Alcorão (no período de Medina), quando as relações entre muçulmanos e cristãos pioraram, encontramos referências diretas e claras para a fé em Jesus como o Filho de Deus; e essa fé é decisivamente rejeitada. Nesse sentido, temos o seguinte desenvolvimento de argumentos:

A. Reação apologética

“Dizem...: Deus adotou um filho! Glorificado seja! Pois a Deus pertence tudo quanto existe nos céus e na terra, e tudo está consagrado a Ele. Ele é o Originador dos céus e da terra e, quando decreta algo, basta-Lhe dizer: ‘Seja!’ e ele é” (Surata 2.116-117).

Isso poderia representar uma espécie de transição entre os dois períodos, justamente quando Maomé começou a consolidar sua autoridade. Por um lado, essas frases soam mais como uma expressão de espanto do que uma condenação; por outro lado, não é possível afirmar claramente se foram os judeus ou os cristãos que disseram que Deus tem um Filho – uma ambiguidade que permanece até os capítulos cronologicamente finais do Alcorão.

B. Divergências com os detentores de Escrituras

Pouco depois encontramos a seguinte afirmação: “Dize-lhes: Ó adeptos do Livro, vinde, para chegarmos a um termo comum, entre nós e vós: Comprometamo-nos, formalmente, a não adorar senão a Deus, a não Lhe atribuir parceiros e a não nos tomarmos uns aos outros por senhores, em vez de Deus. Porém, caso se recusem, dize-lhes: Testemunhais que somos muçulmanos” (Surata 3.64).

O ápice da confrontação entre o islã e os detentores de Escrituras (judeus e cristãos) trata-se da adoração a Deus, em que somente o Alcorão sabe a maneira correta; ele está muito acima de todos que não seguem seus ensinamentos.

Isso significa que, se não houvesse concordância sobre isso com os detentores de Escrituras (ou seja, judeus e cristãos), que todos adorassem somente a Deus sem colocar companheiros mortais ao lado dele. Os muçulmanos continuariam mantendo a fé no único Deus.

Mais adiante, na mesma surata, isso é ampliado mais um pouco: “É inadmissível que um homem a quem Deus concedeu o Livro, a sabedoria e a profecia, diga aos humanos: Sede meus servos, em vez de o serdes de Deus!... Tampouco é admissível que ele vos ordene tomar os anjos e os profetas por senhores. Poderia ele induzir-vos à incredulidade, depois de vos terdes tornado muçulmanos?” (Surata 3.79-80).

Isso é confirmado em uma surata de Meca, cujos versículos seguintes são atribuídos pelos estudiosos ao período de Medina: “Este é Jesus, filho de Maria; é a pura verdade, da qual duvidam. É inadmissível que Deus tenha tido um filho. Glorificado seja! quando decide uma coisa, basta-lhe dizer: Seja!, e é. E Deus é o meu Senhor e vosso. Adorai-O, pois! Esta é a senda reta” (Surata 19.34-36). Essas palavras têm uma conotação acusatória, mas não está claro a qual comunidade de fé elas se referem.

C. A Trindade

Com referência à Trindade, o Alcorão explica aos detentores de Escrituras, sem rodeios: “Ó adeptos do Livro, não exagereis em vossa religião e não digais de Deus senão a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, foi tão-somente um mensageiro de Deus e Seu Verbo, com o qual Ele agraciou Maria por intermédio do Seu Espírito. Crede, pois, em Deus e em Seus mensageiros e digais: Trindade! Abstende-vos disso, que será melhor para vós; sabei que Deus é Uno. Glorificado seja! Longe está a hipótese de ter tido um filho. A Ele pertence tudo quanto há nos céus e na terra, e Deus é mais do que suficiente Guardião. O Messias não desdenha ser um servo de Deus... quanto àqueles que desdenharem a Sua adoração e se ensoberbecerem, Ele os castigará dolorosamente e não acharão, além de Deus, protetor, nem defensor algum” (Surata 4.171-173).

Aqui encontramos, pela primeira vez no Alcorão, uma negação direta da crença de que Jesus é o Filho de Deus. Esses versículos falam, sem rodeios, que Deus é um só, e não três – uma afirmação que é atribuída aos detentores de Escrituras –, e o Alcorão exige que eles se abstenham e não sejam arrogantes. Mesmo assim, não está expresso claramente que são os cristãos que creem em Jesus como Filho de Deus e na Trindade.

D. A acusação de falsa doutrina

Em uma surata posterior, do período de Medina, o tom fica mais acentuado. Ali Jesus é primeiramente apresentado como homem mortal e que é impossível que seja divino: “São blasfemos aqueles que dizem: Deus é o Messias, filho de Maria. Dize-lhes: Quem possuiria o mínimo poder para impedir que Deus, assim querendo, aniquilasse o Messias, filho de Maria, sua mãe e todos os que estão na terra?” (Surata 5.17).

De acordo com esse versículo, Jesus nasceu de uma mulher comum, mas era inspirado como outros profetas. Contudo, quem afirmasse que ele é Deus seria incrédulo e promoveria uma falsa doutrina. Para o Alcorão, a reivindicação de que Jesus é divino é considerada como mera invenção de pessoas; o próprio Jesus nunca teria expressado essa reivindicação.

Em continuidade, lemos na Surata 5: “São blasfemos aqueles que dizem: Deus é o Messias, filho de Maria, ainda quando o mesmo Messias disse: Ó israelitas, adorai a Deus, Que é meu Senhor e vosso. A quem atribuir parceiros a Deus, ser-lhe-á vedada a entrada no Paraíso e sua morada será o fogo infernal!... São blasfemos aqueles que dizem: Deus é um da Trindade!” (Surata 5.72-73).

A afirmação é clara: todos que disserem que Deus é Jesus e todos que creem em mais de um Deus são incrédulos, mentirosos, filhos da perdição e enganadores enganados, para os quais há um terrível castigo à espera. O Jesus do Alcorão despreza os crentes do povo de Israel e os amaldiçoa. Aqui ainda são os judeus que transformaram Jesus em Deus e que são exortados a servirem apenas a um só Deus.

Ao final da Surata 5, encontramos um diálogo mantido entre Deus e Jesus, no qual Deus lembra Jesus da graça e da ajuda que ele lhe proporcionou para que pudesse realizar os diversos milagres. De acordo com esse texto do Alcorão, Deus pergunta diretamente a Jesus se ele reivindica a sua divindade e Jesus responde com um decisivo “não” (Surata 5.116-117). Aqui também observamos que o Alcorão considera Deus, Jesus e Maria como a trindade – o que definitivamente não é a Trindade da igreja cristã. É interessante que, no século 4 d.C., em sua obra Panarion, Epifânio, bispo de Salamina, menciona uma seita árabe que cria numa trindade composta por Deus, Jesus e Maria.

E. O estado final do desenvolvimento

Em um texto ainda posterior, o desenvolvimento no Alcorão alcança seu final para o tema da divindade de Jesus: “Os judeus dizem: Ezra é filho de Deus; os cristãos dizem: O Messias é filho de Deus. Tais são as palavras de suas bocas; repetem, com isso, as de seus antepassados incrédulos. Que Deus os combata! Como se desviam! Tomaram por senhores seus rabinos e seus monges em vez de Deus, assim como fizeram com o Messias, filho de Maria, quando não lhes foi ordenado adorar senão a um só Deus. Não há mais divindade além d’Ele! Glorificado seja pelos parceiros que Lhe atribuem!” (Surata 9.30-31).

Essa Surara foi escrita numa posição de poder e superioridade; a partir disso, ataca os detentores de Escrituras porque estes permitem honrar outras pessoas como sendo Deus. A culpa imputada aos judeus é que eles aparentemente endeusam “Ezra” (nome “Esdras” em forma diminutiva – e sobre isso não há registro na literatura judaica), e os cristãos são acusados de declarar que Jesus é Deus. Com isso os detentores de Escrituras se revelam como incrédulos para os muçulmanos. Ao final, a agressão é intensificada com ataques às autoridades religiosas dos judeus e cristãos. Na minha opinião, temos aqui um desenvolvimento posterior, que se manifesta por meio de uma série de acusações como não se encontra em outra parte do Alcorão. Os judeus são maus porque endeusam Ezra, os cristãos porque endeusam Jesus e os detentores de Escrituras, em geral, porque endeusam os seus superiores. Eles são acusados de perdição e de falsa doutrina, e o inferno está à espera de pessoas como eles.

Este é o ápice da confrontação entre o islã e os detentores de Escrituras (judeus e cristãos). De acordo com as suas próprias afirmações, somente o Alcorão sabe qual é a maneira correta de adorar a Deus; ele está muito acima de todos que não seguem seus ensinamentos.

Resumo

Vimos que no período de Meca o título “Filho de Deus” não se refere aos detentores de Escrituras (judeus e cristãos), mas às concepções religiosas na antiga Arábia pagã. No período de Medina observa-se uma alteração, mas o Alcorão ainda não atribui o título “Filho de Deus” claramente aos judeus e cristãos. Trata-se, sim, de Jesus, mas não se afirma claramente qual é a comunidade de fé que o honra como Deus. Uma complicação adicional do quadro ocorre ao não sabermos exatamente a qual comunidade de fé o Alcorão se refere com a absurda trindade formada por Deus, Jesus e Maria. Apenas bem no final, na última sura cronológica, o ataque se torna claro, descompromissado e autoritário ao extremo.

Makram Mesherky

Nota

  1. Todas as passagens do Alcorão foram extraídas da tradução do professor Samir El Hayek, de 1994. Disponível em: <https://alcorao.com.br>.

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Novembro 2020

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