O caos israelense do coronavírus

A primeira onda do coronavírus foi superada muito bem em Israel. Contudo, após os primeiros afrouxamentos do lockdown, muitas novas contaminações ocorreram.  O que aconteceu?

Sob o título: “A nação cai no caos do coronavírus”, um jornal israelense descreveu a situação atual em Israel.

Israel é o país que, provavelmente, melhor superou a primeira onda do coronavírus. A taxa de óbitos ainda continua sendo uma das mais baixas em todo o mundo. Um motivo para isso certamente foi a decretação imediata do lockdown. O país, principalmente o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, via-se como “uma luz para as nações” que mostraria ao mundo como se administra a crise da pandemia com êxito.

Todavia, após quatro meses desde a sua eclosão, quando se começou a aliviar paulatinamente as restrições, as novas contaminações aumentaram rapidamente, de modo que Israel agora está entre os países com o maior índice de novas infecções. Os médicos até alertam para um colapso do sistema de saúde. O que aconteceu?

Acontecimentos políticos

Passou-se a procurar pelas causas e eventuais culpados para esse desenvolvimento, o que naturalmente causou acusações e tensões em todas as direções. Netanyahu e o governo começaram então a cogitar um novo lockdown. O setor de restaurantes e a área de entretenimento, mas também muitos outros setores, protestaram dizendo que não suportariam novas restrições totais, pois, para muitos, significaria o colapso de sua existência. A taxa de desemprego, em consequência do vírus, encontrava-se acima de 21%.

As constantes idas e vindas das decisões e determinações na área governamental afetaram seriamente a confiança no governo, principalmente em Netanyahu. Acrescente-se a isso que os processos pendentes contra Netanyahu são constantemente protelados, o que muitos da sociedade consideram uma manipulação – acabando com sua tolerância.

Justamente nessa época, em que muitos enfrentam desde sérios problemas financeiros até o risco de extinção, o governo aumentou seus próprios salários e criou ministérios adicionais, o que causa a compreensível indignação e rejeição.

Ao observar o declínio de sua popularidade, Netanyahu apresentou a proposta de distribuir seis bilhões de shekels entre a população, quer alguém tenha necessidade ou não, para estimular a economia. No entanto, essa proposta não foi bem recebida pela maioria. Até mesmo entre o pessoal do seu próprio partido e entre os membros do governo surgiram crescentes críticas. Tudo isso levou pessoas de todas as camadas sociais a realizarem diariamente manifestações até que Netanyahu apresente sua renúncia.

O novo coronavírus causou um grande prejuízo nos cálculos políticos de Netanyahu. A autonomia da Judeia, Samaria e do vale do Jordão, tão grandiosamente proclamada por Netanyahu, foi transformada em algo secundário, sem importância existencial. Ao invés disso, ele agora precisa se preocupar com assuntos que prejudicam sua popularidade e dos quais ninguém sabe como e quando vão ter um final. O Knesset (parlamento) agora aprovou projetos emergenciais possibilitando sua intervenção em casos de surtos localizados do vírus.

Isso, no entanto, não é tudo. Uma vez que o partido Yamina, de extrema-direita, sob liderança de Naftali Bennett, não apoia mais o governo, Netanyahu não tem inimigos apenas da esquerda, mas também da extrema-direita. O partido de coalizão Kachol-Lavan [Azul e branco] também está dificultando a vida de Netanyahu, de modo que também no partido Likud (de Netanyahu) se ouve rumores de que talvez uma nova eleição seja a solução. Com isso surge uma questão: será que, em vista da atual situação, o povo perdoará Netanyahu por tal ação ou o penalizará? A situação não é nada promissora.

Acontecimentos tecnológicos

A base da forjaria de inovações de Israel é: o que importa não é o fracasso, mas a maneira de reagir a ele.

Em fevereiro de 2020 surgiram em Israel as primeiras infecções “viajantes” de Covid-19. Já no início de março, Israel estava entre os primeiros países que adotaram o isolamento. Na primavera (local) de 2020, Israel entrou numa guerra, cujo primeiro round foi superado excepcionalmente bem: as correntes de infecção foram amplamente detectadas, os hospitais se adaptaram para a emergência, a Defesa Civil agiu efetivamente e os cidadãos, em sua grande maioria, colaboraram disciplinadamente observando as restrições. Israel não foi apenas a democracia que talvez tenha implantado leis com maiores restrições de locomoção – em momentos era permitido afastar-se somente até 100 metros de sua residência –, mas também a tecnologia era comentada por todos. Laboratórios de pesquisa estavam em alta rotação tentando aplicar suas experiências para vacinas e medicamentos, inovações médicas foram aprimoradas para essa virose, e tudo tão rapidamente que outros países aproveitaram esses desenvolvimentos, e não apenas de telemedicina. O mundo estava definitivamente olhando para Israel quando o Mossad, serviço secreto israelense, foi convocado para combater a epidemia.

Até mesmo no partido Likud se ouve rumores de que talvez uma nova eleição seja a solução.

Israel também foi uma das poucas democracias que interferiu bastante na vida privada de seus cidadãos nessa área. Quem voltava do exterior era obrigado pelo governo a permanecer em quarentena, aquele que poderia infectar outros cidadãos era hospedado num “hotel corona”. O Mossad agia em duas frentes na batalha: (1) acompanhar os amplos contatos no exterior para adquirir equipamentos e (2) rastrear celulares, via GPS, para proteger as pessoas.

O maior êxito do Mossad, na época inicial da pandemia, foi o abastecimento de equipamentos de saúde. No início da crise (mal calculado e, assim, mal preparado) havia 2 300 respiradores em todo o país. Se observarmos a situação na Itália, para os mais de nove milhões de habitantes do país, isso seria um cenário catastrófico. Porém, graças ao Mossad, Israel atualmente tem o dobro de equipamentos disponíveis, cuja capacidade os especialistas do país ainda ampliaram por meio de soluções não convencionais. Ao todo, o Mossad providenciou 47 postos de equipamentos médicos (máscaras, testes, medicamentos etc.) em grandes quantidades, apesar da escassez mundial. Essa foi uma façanha quase inacreditável, principalmente se considerarmos que as aquisições também foram feitas de países com os quais o Estado judeu sequer mantém contatos diplomáticos. Um outro assunto são as manchetes no mundo proporcionadas por Israel, pois as máscaras obtidas com tanto esforço pelo Mossad são pouco utilizadas pelos seus cidadãos ou, às vezes, o fazem irregularmente, o que é uma das várias razões que provocaram a segunda onda em Israel, muito pior do que a primeira.

Israel também foi uma das poucas democracias que interferiu bastante na vida privada de seus cidadãos.

Outra área em que o Mossad e Israel atraem as atenções se refere à utilização da tecnologia moderna combinada com técnicas do serviço secreto. Enquanto, por exemplo, na Alemanha se discutia intensamente sobre a proteção de dados, os cidadãos em Israel, da noite para o dia, estavam num país como 1984, de Orwell. Mesmo que, à semelhança da Alemanha, os aplicativos do Ministério da Saúde pudessem ser utilizados voluntariamente (e, assim como aconteceu na Alemanha, em Israel também houve falhas de funções e várias correções), o Supremo Tribunal de Justiça de Israel determinou que, em caso de epidemias, os serviços secretos podem atuar como fazem nos casos de detecção de terroristas. Ainda assim, persistem diferenças marcantes: na Alemanha houve detalhadas discussões, avaliações e só então decisões foram tomadas, com as quais seguiram diretamente. No entanto, Israel é e continua sendo Israel: aqui se avança, se rema para trás, para novamente partir do ponto inicial – da mesma situação miserável inicial, porém, agora com mais experiências.

O maior êxito do Mossad, na época inicial da pandemia, foi o abastecimento de equipamentos de saúde.

Isso não se refere apenas ao Mossad e ao serviço secreto nas epidemias, mas a todas as áreas da administração israelense de epidemias: os hospitais rapidamente instalaram exemplares postos de tratamento intensivo para o coronavírus que, não tendo sido utilizados, foram desmontados tão rapidamente como haviam sido montados para, pouco tempo depois, serem novamente instalados. Israel não somente adotou rapidamente o lockdown (acompanhado de regras muito restritas) como também suspendeu as restrições quase tão rapidamente – que precisaram ser novamente adotadas em curto espaço de tempo. O governo não tomou decisões ousadas, a nova coalizão com ministros recém empossados balançou, ou a comissão do coronavírus tomou decisões que contrariavam as orientações do governo e funções de liderança profissionais permaneceram temporariamente vagas. O Mossad estava juridicamente impedido de aproveitar conhecimentos sobre infecções, e o exército e a sua Defesa Civil – mais um recurso israelense quando se trata de logística e soluções incomuns para problemas que todos consideram insolúveis – foram mantidos à distância. Quando a comunicação inadequada e a falta de coordenação são ainda acompanhadas de planejamento insuficiente (sem planos de longo prazo, que são impossíveis para Israel, mas de curto prazo para um período de 14 dias), além de quedas de braço entre políticos, temos algo diferente do que uma coalizão de governo estável, que também não agiu com brilhantismo no lado econômico da epidemia, e o resultado são as manchetes que Israel agora proporciona: incapacidade de dominar a segunda onda. Admite-se que há mais outros fatores a incluir – entre eles, que os israelenses não são os cidadãos mais obedientes quando se trata de leis e restrições –, mas isso não altera a sua extensão. No pico da primeira onda, Israel apresentou o recorde diário de, no máximo, 900 novas infecções; no final de julho de 2020, contudo, foram quase dois mil por dia.

Logicamente, diante da possibilidade de uma situação dramática, o Mossad foi novamente convocado. O serviço secreto israelense não dispõe apenas de habilidades excepcionais, mas também de tecnologias excepcionais. Voltando às atividades no serviço da epidemia, em apenas algumas horas eles colocaram dezenas de milhares de israelenses em quarentena domiciliar; uma das medidas comprovadas de baixa tecnologia para interromper as cadeias de infecção. Mas o Mossad também prendeu incontáveis cidadãos que comprovadamente estavam separados de alguém infectado por, pelo menos, uma parede ou teto, pois eram vizinhos de edifícios sem qualquer contato entre si. O caos se tornou um mega caos, e o Mossad precisou reconhecer que os programas e modelos utilizados funcionam melhor quando se pretende evitar um atentado praticado por um só terrorista em meio a uma multidão de pessoas. Quando muda o foco – prevenir indivíduos contra muitos perigos – os obstáculos aparecem.

Todavia, em Israel há infinitas idas e vindas, além de ousadia, que se alternam entre êxitos e falhas. O que é e permanece no somatório é aquilo que mantém Israel em pé, e que numa época de crise põe à prova o Estado, a democracia, o exército, a sociedade e cada cidadão: tão rapidamente como cometemos um ato falho, tão rapidamente podemos aprender com ele. Essa é uma receita que ajudou ao único Estado judeu no mundo não só na sua fundação, mas também a sobreviver florescendo e prosperando durante essas mais de sete décadas. Do mesmo modo, Israel está firmemente decidido a superar esta pandemia.

Fredi Winkler e Antje Naujoks

Fredi Winkler é guia turístico em Israel e dirige, junto com a esposa, o Hotel Beth-Shalom, em Haifa, que é vinculado à missão da Chamada.

Antje Naujoks dedicou sua vida para ajudar os sobreviventes do Holocausto. Já trabalhou no Memorial Yad Vashem e na Universidade Hebraica de Jerusalém.

sumário Revista Chamada Outubro 2020

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