Jesus e o Talmude

Esta série examinará os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não-cristãos. Nesta edição, continuaremos examinando as alusões a Jesus que se encontram em textos do Talmude.

Parte 3

Jesus e o Talmude

O Talmude apresenta Jesus como adversário do judaísmo de dentro para fora. Ele teria sido um feiticeiro que seduziu Israel e o induziu ao erro, razão pela qual foi enforcado na véspera da Páscoa e condenado ao inferno por ter escarnecido das palavras dos sábios.

Terceiro trecho: Yeshu como idólatra

“‘Nenhuma praga há de aproximar-se da tua tenda’ – não terás nenhum filho ou discípulo que queime publicamente seu alimento como Yeshu, o Nazareno” (Talmude Babilônico, Sanhedrin 103a).

Em um comentário sobre o texto bíblico citado acima (Sl 91.10), os rabinos advertem contra ter um filho ou discípulo que queime publicamente o seu alimento como Yeshu, o Nazareno. O emprego dos termos “filho” e “discípulo” enfatiza a perspectiva judaica segundo a qual Yeshu viveu no judaísmo, mas transgrediu suas regras.

A “queima do alimento” transmite a ideia de que aquilo que esse Yeshu fez prejudicou algo que lhe era próximo.

Beit Shammai, uma escola do pensamento rabínico, afirma que um homem pode divorciar-se quando sua esposa queimar a comida (e assim causar dano à sua casa). Certamente o sentido aqui é figurado, porque concretamente trata-se de depravar a doutrina do judaísmo. Pode ser uma alusão a sacrifícios pagãos ou simplesmente uma metáfora para apostasia.

Com isso, é possível concluir que esse Yeshu, chamado de Nazareno, é filho da nação judaica e também um discípulo judeu. Ele teria causado dano aos judeus de dentro para fora, e esse dano se tornou publicamente conhecido.

Quarto trecho: a execução de Yeshu

“Ensina-se que na véspera da festa de Páscoa Yeshu, o Nazareno foi enforcado e que quarenta dias antes o arauto saiu e declarou: ‘Yeshu, o Nazareno será apedrejado por ter praticado feitiçaria, por ter seduzido Israel, conduzindo-o ao erro. Todo que souber de algo que possa descriminá-lo deve manifestar-se e descriminá-lo’. Mas ninguém tinha nada que o descriminasse, e então o enforcaram na véspera da festa de Páscoa. Ulla disse: ‘Alguém imaginaria que devêssemos procurar provas discriminadoras para Yeshu? Ele era um sedutor, e Deus disse (Dt 13.8): ‘Não terás misericórdia dele nem o ocultarás’. Yeshu era diferente porque era próximo do governo” (Talmude Babilônico, Sanhedrin 43a).

Aqui temos o relato da execução de Yeshu, o Nazareno na véspera da festa de Páscoa porque ele praticava feitiçaria, seduzia Israel e o induzia ao erro. Antes que fosse executado, o tribunal procurou por testemunhas que pudessem limpar seu nome, como ocorre normalmente antes de qualquer execução. No entanto, para o rabino Ulla, o motivo para a justificação de Yeshu não procedia porque ele era um sedutor e, assim, segundo a Bíblia, ele não poderia contar com misericórdia nem se pudessem conceder-lhe esse benefício. A resposta a isso é que ele recebeu um tratamento especial porque Yeshu era próximo do governo (era ligado ao governo). Por quarenta dias, o tribunal procurou por algo que o descriminasse – para que não fosse necessário executá-lo e irritar o governo. A proclamação do arauto de que Yeshu deveria ser apedrejado poderia sugerir alguma divergência de opinião entre as intenções dos líderes judeus e da posição romana.

O Talmude sustenta neste trecho que Yeshu ganhou aquilo que merecia quando foi executado na tarde da Páscoa,

Examinemos melhor este trecho. A ênfase está em Yeshu, o Nazareno e, quando se diz que ele foi enforcado, isso na verdade significa que foi crucificado. O termo “enforcado” é sinônimo de “crucificado”, e algumas poucas passagens do Novo Testamento utilizam-no nesse sentido (p. ex. Lc 23.39; At 5.30). O Talmude declara que Yeshu foi crucificado na véspera da festa de Páscoa, o que cria mais uma ligação com Jesus.

Segundo este trecho, o motivo da sua crucificação também foi o exercício de feitiçaria e a sedução de Israel à apostasia. Como essa acusação provém de uma fonte um tanto hostil, não deveria espantar que encontramos aqui uma descrição um pouco divergente da ocorrência e dos motivos da crucificação que constam no Novo Testamento. Já tratamos, no segundo trecho da edição anterior, da perspectiva judaica a respeito dos milagres de Jesus (“Jesus e seu mestre”).

Quem ler atentamente essa passagem do Talmude encontra nela a confirmação de grande parte do nosso conhecimento sobre Jesus baseado no Novo Testamento.

Quinto trecho: os discípulos de Yeshu

“Ensina-se que Yeshu tinha cinco discípulos – Matai, Nekai, Netzer, Buni e Todah. Ele lhes disse: será que Matai será morto? Está escrito (Sl 42.2): ‘Quando virei [Matai] e me apresentarei diante da face de Deus’. Disseram-lhe: sim, Matai será morto como está escrito (Sl 41.5): ‘Quando ele [Matai] morrerá e seu nome será extinto’...” (Talmude Babilônico, Sanhedrin 43a).

Segue-se outra cena depois da execução de Yeshu, que descreve a execução dos seus alunos. Mencionam-se os nomes de cinco alunos de Yeshu, mas, com exceção de Matai, os nomes dos outros são vagos. Matai é o equivalente hebraico de Mateus, um dos discípulos de Jesus. Os outros quatro discípulos atribuídos a Jesus são Nekai, Netzer, Buni e Todah. Conforme dissemos acima, apenas o primeiro pode ser claramente identificado. Alguns estudiosos apresentaram sugestões de identificação dos outros nomes, como por exemplo Nazareno para Netzer e Tadeu para Todah. Todavia, essas diversas tentativas de identificação parecem bastante forçadas.

Segundo essa passagem, os cinco discípulos de Yeshu foram submetidos ao tribunal, acusados de idolatria e executados segundo o direito bíblico. A passagem mostra como cada discípulo apresenta espertamente um versículo bíblico para se inocentar, e como o tribunal reage a isso. (Inquiriu-se o nome dos discípulos, e eles explicaram seu nome mediante um versículo bíblico. Seus inquiridores os condenaram à morte mediante um outro versículo bíblico.)

Vejamos, por exemplo, a sentença sobre Matai, começando com seu apelo: “Quando virei [Matai] e me apresentarei diante da face de Deus?” (Sl 42.2). A isso os juízes responderam com a declaração: “Quando ele [Matai] morrerá e seu nome será extinto?” (Sl 41.5).

Esta é uma demonstração de zelo jurídico e dos rabinos a respeito da sua firmeza em cumprir a lei, se bem que tudo isso vem embutido em um método interpretativo no estilo midrash, que interpreta o texto bíblico de um modo bastante singular.

Sexto trecho: cura em nome de Yeshu

“Ocorreu certa vez que R. Elazar Ben Damah foi picado por uma serpente e Ya’akov veio do povoado de Sechania para curá-lo em nome de Yeshua’ Ben Pandira, mas R. Yishmael não o permitiu” (Tosefta, Chullin 2,22).

Este antigo testemunho textual relata sobre o rabino Elazar Ben Damah, que foi picado por uma serpente; então veio um homem chamado Ya’akov, de Sechania, para curá-lo em nome de Yeshua’ Ben Pandira, mas o rabino Yishmael não quis que Ben Damah aceitasse a cura naquele nome, por não ser compatível com a lei judaica. Ben Damah procurou provar que ele o poderia curar, mas morreu antes. Ben Damah foi abençoado por ter se mantido puro, não se submetendo a essa cura.

A declaração final diz: “Não derrubaste a cerca dos sábios”.

A história dá a entender que, por um lado, havia um relacionamento mútuo entre judeus e cristãos; por outro, havia um impedimento legal do qual um judeu não poderia sequer aceitar uma cura em nome de Jesus. A cerca constitui uma limitação legalista dos judeus destinada a mantê-los no judaísmo sob quaisquer circunstâncias. Tudo indica que prevalecia a noção de que uma atitude condescendente com o rigoroso código legal poderia começar com a cura em nome de Jesus e terminar com a conversão ao cristianismo.

Conforme o estudioso Goldstein observa com relação a essa passagem, aquela foi uma outra forma de dizer que o judaísmo não reconhecia a religião baseada em Jesus no período tannaítico.

De qualquer forma, isso mostra que se realizavam curas em nome de Jesus. Temos aqui um testemunho antigo e, de certo modo, a admissão de que realmente havia curas de pessoas em nome dele, até no caso de eventos fatais.

Essa é também uma das poucas passagens em que os nomes de Yeshua e Ben Pandira estão ligados. No Tosefta, Jesus só é denominado de Yeshua. Todos os outros portadores desse nome chamam-se Yehoshua. Uma outra literatura talmúdica o chama de Yeshu, uma abreviação que mais tarde é explicada na literatura Toledot-Yeshu.

Sétimo trecho: Yeshu no inferno

“Pergunta-se [a Yeshu no inferno]: qual é a sua punição? Ele respondeu: com excremento fervente, porque um mestre disse: quem escarnecer das palavras dos sábios será punido com excremento fervente” (Talmude Babilônico, Gittin 57a).

Consta que essa lenda talmúdica tenha acontecido no inferno. Onkelos bar Kalonikos, filho da irmã de Tito, queria converter-se ao judaísmo e, por meio de necromancia, primeiro invocou do inferno seu tio Tito (que queimara o templo), depois Balaão e, finalmente, Yeshu, vistos aqui como os piores inimigos do judaísmo.

Os dois primeiros homens aconselharam Onkelos a não aceitar o judaísmo, embora admitissem que Israel fosse o povo mais respeitado no restante do mundo. Ambos foram punidos terrivelmente no além, enquanto Israel foi premiado.

Então Onkelos perguntou a Yeshu: “Quem é respeitado neste mundo?” Yeshu disse: “Israel”. – “Seria o caso de unir-se a eles?” Yeshu lhe disse: “Busque o bem deles; não faça nada que os prejudique; quem os tocar, toca até a menina dos seus olhos”. Diante disso, Onkelos perguntou como seria sua punição, e Yeshu lhe disse que seriam excrementos ferventes – o destino vergonhoso daqueles que escarneceram das palavras dos sábios. Aquilo teria convencido Onkelos a se converter ao judaísmo.

Aqui Yeshu se encontra no inferno, e como motivo da sua condenação cita-se que, embora ele tivesse entendido que Israel era o ápice, ele assim mesmo teria sido um sedutor que escarneceu dos ensinos dos sábios.

Conclusão

Muitos estudiosos apontam para as semelhanças entre o Yeshu talmúdico e Jesus. Em ambas as partes desta série vimos alusões a Jesus, à sua mãe e a seus discípulos.

O Talmude apresenta Jesus como adversário do judaísmo de dentro para fora. Ele teria sido um feiticeiro que seduziu Israel e o induziu ao erro, razão pela qual foi enforcado na véspera da Páscoa e condenado ao inferno por ter escarnecido das palavras dos sábios.

As histórias são contraditórias e cheias de lendas porque a distância histórica dos efetivos acontecimentos é tão grande. Mesmo assim, alguns poucos aspectos coincidem com a apresentação neotestamentária de Jesus.

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Abril 2020

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