Os milagres de Jesus segundo o Alcorão

Esta série examina os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não cristãos. Nesta edição, examinaremos as alusões a Jesus no Alcorão.

Parte 6

Os milagres de Jesus segundo o Alcorão

Jesus é no Alcorão um profeta extraordinariamente importante. Já comentamos o detalhado histórico do seu nascimento e, neste artigo e nos próximos, apresentaremos aspectos da vida adulta de Jesus do ponto de vista do Alcorão. Acompanharemos as descrições corânicas dos milagres, dos ensinos e do caráter único de Jesus como profeta. Posteriormente analisaremos e esclareceremos o polêmico ataque do Alcorão a importantes doutrinas cristãs, como a divindade de Cristo e a Trindade. Finalmente trataremos da negação da crucificação no Alcorão e da ascensão de Jesus ao céu, bem como das alusões feitas a respeito de Jesus e dos últimos dias.

Neste artigo enfatizaremos os milagres de Jesus e a sua denominação no Alcorão de acordo com as duas passagens a seguir:

“Naquela ocasião, os anjos disseram: ‘Ó Maria, Alá te anuncia uma palavra dele; seu nome é o Messias, Jesus, o filho de Maria, reconhecido no aquém e no além, e um daqueles próximos (a Alá). E ele falará no berço aos homens, e também como adulto, e ele será um dos justos’. Ela disse: ‘Meu Senhor, (nasceria) um filho a mim, quando nenhum homem me tocou?’ Ele disse: ‘Alá faz o que ele deseja; quando ele decide algo, simplesmente diz “Sê!” e aquilo será’. E ele lhe ensinará o livro e a sabedoria e a Torá e o Evangelho e o enviará aos filhos de Israel (Dirá:) ‘Vede, vim a vós com um sinal do vosso Senhor. Vede, crio para vós a imagem de barro de um pássaro e soprarei nela; com permissão de Alá ela se tornará um pássaro; e curarei o cego de nascença e o leproso e com permissão de Alá vivificarei os mortos e anuncio-vos o que comeis e o que armazenais em vossas casas. Em verdade, isso contém um sinal para vós se fordes crentes. E vim como confirmador da Torá, que existia antes de mim, e para vos permitir uma parte daquilo que vos era proibido e vim a vós com um sinal do vosso Senhor. Portanto, temei Alá e obedecei-me. Em verdade Alá é meu Senhor e vosso Senhor, por isso servi-o. Este é um caminho reto” (Surata 3.45-51).

A literatura apócrifa contém ainda muitos outros milagres, tanto da infância como também da idade adulta de Jesus. Sua natureza e descrição frequentemente se distinguem claramente dos milagres nos evangelhos.

“Quando Alá disser: ‘Ó Jesus, filho de Maria, lembra-te da Minha graça para ti e tua mãe, como te fortaleci com a santa inspiração – falaste aos homens tanto no berço como também na idade adulta; e como te ensinei a Escritura e a sabedoria e a Torá e o Evangelho; e como com Minha permissão moldaste de barro o que se assemelhava a pássaros. Depois tu lhe sopraste (fôlego), e com Minha permissão tornou-se em pássaros (verdadeiros), e como com Minha permissão curaste os cegos e os leprosos, e como com Minha permissão despertaste os mortos, e como afastei de ti os filhos de Israel quando te aproximaste deles com claros sinais e os descrentes entre eles disseram: ‘Isso não passa de manifesta feitiçaria’” (Surata 5.110).

Os nomes de Jesus

Três vezes o Alcorão cita o nome islâmico completo de Jesus, a saber: “Al-Masih Isa Ibn Mariam” (Messias, Jesus, o filho de Maria).

“Isa” (Jesus) é seu nome pessoal. Por um lado, esse nome aparece analogamente a “Musa” (Moisés), e no Alcorão os dois nomes se encontram quatro vezes bem próximos entre si; por outro lado, tudo indica que o nome Isa deriva do grego Iesous.

“Al-Masih” é a designação árabe paralela ao hebraico Mashiach (Messias, ungido). No árabe, o significado é o mesmo.

O relacionamento especial de Jesus com sua mãe é expresso pela designação “Ibn Mariam”, o que significa “filho de Maria” – uma expressão que aparece 23 vezes no Alcorão. A propósito, em árabe é usual relacionar os filhos com seu pai. Por isso, essa é provavelmente uma indicação do seu nascimento sem pai humano. No mais, o cognome “filho de Maria” não é muito usual, já que aparece apenas uma vez no Novo Testamento e três vezes no Evangelho da Infância, um apócrifo árabe. Por isso, “Ibn Mariam” poderia também ser uma reação islâmica ao título “filho de Deus” a fim de enfatizar a humanidade de Jesus.

Os milagres de Jesus

Os quatro evangelhos canônicos expõem detalhadamente cerca de 35 milagres. A literatura apócrifa contém ainda muitos outros milagres, tanto da infância como também da idade adulta de Jesus. Sua natureza e descrição frequentemente se distinguem claramente dos milagres nos evangelhos.

Por sinal, o Toledot Yeshu judeu afirma, em reação aos milagres de Jesus, que ele cresceu em conhecimento da Torá, em sabedoria, em astúcia e em magia. Contrastando com isso, o Alcorão cita os milagres de Jesus apenas brevemente, em poucas frases, chamando-os de “claros sinais”. A impressão é que outras tradições repercutem no Alcorão. Assim, por exemplo, o Alcorão diz que os descrentes entre os judeus consideravam os milagres de Jesus como magia.

Segundo o Alcorão, os milagres que Jesus realizou podem ser divididos em sete pontos:

1. A fala no berço

Esse milagre foi discutido no artigo anterior, sobre o nascimento de Jesus.

2. A criação de um pássaro

Segundo este milagre narrado no Alcorão, Jesus criou com barro a imagem de um pássaro e então soprou o seu fôlego nessa imagem, transformando-a com permissão de Deus num pássaro. Milagres com pássaros são um elemento recorrente na literatura apócrifa. Na referência mais antiga, o evangelho apócrifo de Tomé, Jesus teria realizado tal milagre com a idade de cinco anos.

Embora o Alcorão enfatize que o milagre foi realizado somente com permissão divina, em outros contextos o Alcorão atribui o ato criativo a partir de barro sempre a Deus (Surata 6.2; Surata 7.12 etc.). Além disso, a capacidade de transmitir o espírito da vida por meio do sopro é um ato exclusivo de Deus (Surata 15.29 etc.).

3. A cura de um cego de nascença

Este milagre mencionado no Alcorão é extraordinário e comparável somente à cura do cego de nascença em João 9. Todavia, a palavra árabe akmah não precisa referir-se necessariamente a um cego de nascença, mas ainda que signifique “apenas” a cura de um cego, continua sendo um milagre fenomenal, que destaca um feito extraordinário e inédito de Jesus.

4. A cura de um leproso

O Novo Testamento relata dois milagres de cura de leprosos. Posteriormente, histórias apócrifas falam de leprosos que foram lavados e curados com a mesma água com que Jesus foi lavado quando era bebê.

Não deixa de ser mais um milagre extraordinário o fato de Jesus ter curado uma doença para a qual não havia remédio naquele tempo.

5. A revivificação de mortos com a permissão de Deus

Os evangelhos relatam três milagres em que Jesus ressuscitou mortos. Posteriormente, a literatura apócrifa fala de outros milagres desse tipo. Ambas as passagens corânicas usam dois verbos árabes diferentes para descrever os atos milagrosos de Jesus. O primeiro significa “vivificar mortos”, o que aponta para o ato em si, e o outro significa “despertar” ou “apresentar mortos”, o que indica o tipo de ato, ou seja, tirar os mortos da sepultura.

O primeiro termo poderia ser aplicado a praticamente todos os milagres de ressuscitação nas diversas variedades de literatura cristã, com exceção da ressurreição de Lázaro no evangelho de João, que vemos literalmente saindo da sepultura.

6. A proclamação de conhecimento inédito

Em uma declaração exclusiva, o Jesus do Alcorão diz: “Anuncio-vos o que comeis e o que armazenais em vossas casas. Em verdade, isso contém um sinal para vós se fordes crentes” (Surata 3.49).

Esse milagre não tem nenhum paralelo na antiga literatura cristã ou judaica. Além disso, não se trata aqui de conhecimento profético geral, mas de um conhecimento prévio particular que demonstra a exclusividade do profeta Jesus.

7. O ato de baixar do céu uma mesa posta

Segundo esse milagre corânico, os discípulos dizem: “‘Ó Jesus, filho de Maria, será o teu Senhor capaz de nos enviar do céu uma mesa (com alimentos)?’ [...] Eles disseram: ‘Queremos comer dela, e nossos corações se aquietarão, e queremos saber que tu nos disseste a verdade, e nós mesmos queremos testemunhar dela’. Então Jesus, filho de Maria, disse: ‘Ó Alá, nosso Senhor, envia-nos uma mesa (com alimentos) do céu, a fim de que seja uma festa para nós, para o primeiro dentre nós e o último dentre nós e um sinal de ti, e supre-nos, pois tu és o melhor supridor’. Alá disse: ‘Eis que vos enviarei (a mesa); mas quem depois disso for descrente entre vós, eu punirei com um castigo com que não punirei mais ninguém sobre a terra’” (Surata 5.112-115).

Neste milagre os discípulos pedem a Jesus que lhes traga uma mesa posta do céu, da qual possam comer. Isso também seria para eles uma confirmação da missão dele e apoiaria seu testemunho a favor dele. Jesus ora pedindo isso a Deus, a fim de que se torne um dia de festa duradouro e um sinal de Deus. Deus responde que enviará a mesa e que punirá severamente aquele que insistir em não crer.

Esse milagre não pode ser facilmente comparado com algum milagre semelhante na literatura cristã. Seu contexto no Alcorão também não é suficientemente claro.

Pode ser uma mistura confusa da última ceia pascal de Jesus com seus discípulos, o milagre da multiplicação dos pães e peixes e do milagre veterotestamentário da dádiva do maná de Deus ao seu povo. Também é possível que se trate aqui de uma repercussão do lençol baixado do céu que Pedro viu em Jope (At 10.9-19).

Semelhantemente ao que se dá com as narrativas do nascimento, aqui também podemos concluir por uma clara influência dos evangelhos apócrifos ao observarmos como o Alcorão descreve os milagres e a pessoa de Jesus.

Makram Mesherky

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Setembro 2020

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