Jesus na Toledot Yeshu

Esta série examina os rastros de Jesus em diversos escritos antigos não-cristãos. Nesta edição, examinaremos as alusões a Jesus que se encontram na Toledot Yeshu.

Parte 4

Jesus na Toledot Yeshu

A Toledot Yeshu [História de Jesus] é uma paródia medieval do evangelho, uma espécie de anti-história, ou seja, um relato da vida de Jesus de uma perspectiva oposicionista. A Toledot existe em várias versões e línguas, das quais a primeira composição provavelmente foi em aramaico. A literatura rabínica não considera nenhuma das versões como canônica ou normativa, mas na Idade Média parece ter sido amplamente divulgada na Europa e no Oriente Médio.

A Toledot Yeshu e o Talmude representam duas vias paralelas por meio das quais o judaísmo reagiu à disseminação da fé cristã, agredindo para isso a pessoa de Jesus.

No entanto, até o século 17, o mundo ainda não conhecia a Toledot, até que Wagenseil e Huldreich coletaram e publicaram duas versões, cada uma acompanhada de uma tradução latina.

No início do século 20, os cientistas começaram a coletar mais outras versões da Toledot. O professor Samuel Krauss publicou seu livro “A vida de Jesus segundo fontes judaicas” já em 1902. Seu estudo serviu de base para a moderna análise histórica desses textos. Em 1970, William Horbury redigiu uma tese intitulada “Um exame crítico da Toledot Yeshu”.

Posteriormente, o cientista italiano Riccardo Di Segni aprofundou ainda mais a questão das origens da Toledot em seu livro Il vangelo del ghetto [O evangelho do gueto], de 1985. Ele propôs uma classificação das fontes, a qual foi amplamente aceita: assim, ele organizou as diferentes versões segundo as autoridades que presidiram o processo contra Jesus: a rainha Helena, Herodes e Pilatos. A maioria dos estudiosos concorda que as versões textuais com Pilatos seriam as mais antigas. Elas consistem principalmente de fragmentos de manuscritos aramaicos.

Os textos aramaicos mais antigos da Toledot Yeshu não incluem os primeiros estágios da vida de Jesus. O antigo manuscrito hebraico de São Petersburgo contém uma passagem de texto a esse respeito, sendo provavelmente uma tradução de uma versão aramaica antiga que não se conservou até hoje.

De qualquer modo, porém, a postura negativa das três versões básicas da Toledot Yeshu nunca muda, embora assuma diferentes formas. Os nomes dos personagens mudam, mas em geral trata-se dos nomes conhecidos encontrados nos textos talmúdicos anteriores, como por exemplo Yeshu, Miriam, Ben Pandira etc.

O relato é detalhado e imaginoso, concebido em forma de conto, mas pouco conhecido mundialmente.

Ao contrário do Talmude, que agride Jesus diretamente e se baseia na lei, a Toledot Yeshu é uma narrativa folclórica de origem inferior, um ataque de dentro para fora. De qualquer modo, ambos representam duas vias paralelas por meio das quais o judaísmo reagiu à disseminação da fé cristã, agredindo para isso a pessoa de Jesus.

A Toledot Yeshu pode ser resumida da seguinte maneira:

1. Jesus é apresentado desde o início como fruto ilegítimo de um caso entre Maria, uma mulher casada, e um estranho maligno, o que torna Jesus um filho ilegítimo. Pretende-se com isso contestar a doutrina cristã da concepção virginal.

2. Em seguida, Jesus é descrito como um discípulo judeu desrespeitoso diante dos seus mestres, que se envolve em disputas com eruditos judeus. Finalmente, ele teria se envolvido em feitiçaria por meio de poderes furtados.

3. Os milagres que Jesus realizou para respaldar sua reivindicação como Filho de Deus são atribuídos à magia. Em contraste com o Talmude, no qual não há maiores descrições desses milagres, a Toledot oferece mais detalhes. Alguns são mencionados nos evangelhos, como por exemplo a alimentação dos discípulos e a transformação de água em vinho. Outros milagres conhecemos da literatura apócrifa, como a criação de pássaros a partir de barro, que voam milagrosamente, ou o tingimento de vestimentas no mesmo recipiente. Os milagres relatados assemelham-se aos dos textos cristãos, mas não lhes correspondem porque na Toledot são apresentados apenas brevemente e não são tão marcantes.

4. Observa-se também um quadro diferenciado dos próprios judeus. Por um lado, relata-se a ocorrência de suborno e preconceito em um juizado local judeu, mas por outro uma piedade generalizada e dedicação de todas as comunidades judaicas, que obedecem ao decreto dos sábios e jejuam de todo o coração por três dias, de forma similar ao jejum geral na época de Ester (Et 4.16-17).

5. A Toledot também lança mão conscientemente de eventos dos evangelhos, como por exemplo a traição de Judas Iscariotes e a negação de Simão Pedro. No entanto, as informações são limitadas e provavelmente se baseiam em tradições verbais, como por exemplo o que se refere ao número dos discípulos, sua localização e seu destino.

6. Imprecisões históricas são fáceis de identificar e por vezes se expressam em óbvios anacronismos. Assim, por exemplo, o rabi Yehoshua, que viveu bem antes de Tibério César, teria tido contato direto com este, já que mora em Tiberíades.

7. Em várias das versões, Jesus é chamado de “Yeshu Rashia”, ou seja, Yeshu o Maligno. Em versões mais tardias, o nome “Yeshu” é apresentado com alguma indicação especial. Yeshu é uma derivação abreviada de Yehoshua, com eliminação das letras hebraicas hey e ayin. As letras remanescentes, yud, shin e vav, formam a palavra Yeshu (ישו). A Toledot utiliza essas três letras como abreviação para três palavras:

(י) Yud para “Yemach” (ser extinto).

(ש) Shin para “Shemo” (seu nome).

(ו) Vav para “Vezechro” (e sua memória).

Ao contrário do Talmude, a Toledot apresenta aqui claramente uma interpretação, segundo a qual as três letras reunidas significam: “Seu nome e sua memória serão extintos”.

Em resumo, pode-se dizer que a literatura da Toledot Yeshu apresenta de forma clara e nítida detalhes que no Talmude permanecem vagos: problemas na família, a infidelidade de Maria perante seu esposo, Jesus como filho ilegítimo que, como adulto, pratica magia e heresia, bem como seu modo vergonhoso e miserável de morrer.

Na verdade, a Toledot Yeshu é uma anti-história da polêmica judaica contra a crescente fé cristã, dirigida principalmente contra sua figura determinante, ou seja, Jesus Cristo.

Makram Mesherky

Makram Mesherky é um consultor especializado no contexto bíblico, em religiões comparadas e na literatura judaica e muçulmana. Obteve seu Ph.D. pela Universidade de Haifa e mora em Tiberíades (Israel) com sua esposa e 4 filhos.

sumário Revista Chamada Junho 2020

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