Estudando os Patriarcas

O Chamado de Abraão: Gênesis 12

Deus escolheu Abraão para ser o pai de um novo povo, cujo objetivo era restaurar o relacionamento da humanidade com Deus – o que aconteceu na vida e obra de Cristo Jesus. Mas, para sabermos como isso começou, precisamos olhar as histórias dos patriarcas de Israel: Abraão, Isaque e Jacó.

“Saia da sua terra, da sua parentela e da casa do seu pai e vá para a terra que lhe mostrarei. Farei de você uma grande nação, e o abençoarei, e engrandecerei o seu nome. Seja uma bênção! Abençoarei aqueles que o abençoarem e amaldiçoarei aquele que o amaldiçoar. Em você serão benditas todas as famílias da terra.” O que você faria se recebesse tal mensagem?

Penso que vale muito a pena parar aqui e se imaginar no lugar de Abrão. Você vive na Mesopotâmia, região que possui uma das civilizações mais antigas do mundo, local propenso ao cultivo de animais e da terra. Você tem 75 anos, está na fase da vida em que deveria descansar e se estabelecer em um local fixo. Você adora diversos deuses, assim como os demais habitantes da terra.

De repente, você é o receptor de ordens e promessas que mudarão completamente sua vida. Ainda por cima, o transmissor da mensagem não é um rei poderoso ou um sacerdote influente, mas Deus, o único Deus!

A Bíblia não informa como se deu a comunicação acima, encontrada em Gênesis 12.1-3. Seja por uma visão, seja por um sonho, seja por uma aparição sobrenatural, o importante é que temos acesso ao conteúdo do que ficou conhecido como o chamado de Abrão.

O chamado de Abrão (12.1-9)

As promessas de Deus (12.1-3)

Nos três primeiros versículos de Gênesis 12 encontramos dois imperativos e seis promessas de Deus para Abrão. É através desses imperativos que podemos estruturar o chamado divino.

Primeiro imperativo: “Saia...”

  1. Farei de você uma grande nação;
  2. O abençoarei;
  3. Engrandecerei o seu nome.

Segundo imperativo: “Seja uma bênção!”

  1. Abençoarei aqueles que o abençoarem;
  2. Amaldiçoarei aquele o amaldiçoar;
  3. Em você serão benditas todas as famílias da terra.

Professor de hebraico por muitas décadas, Allen P. Ross explica a lógica por trás dessa estrutura: “O imperativo inicial é seguido de três promessas, e essas promessas conduzem e possibilitam o segundo imperativo [...] que por sua vez leva a mais três promessas. A simetria reforça o sentido de que o chamado de Deus tem um propósito e que a obediência de Abrão traz uma bênção”.1

O primeiro imperativo possui três ordens que Abrão deveria seguir; as áreas de influência das quais Abrão deveria renunciar estão em ordem de abrangência – do geral ao específico. A “terra” seria a Mesopotâmia, a “parentela” seria seu clã e as pessoas vinculadas a ele, a “casa de seu pai” seria as gerações familiares mais próximas dele. Por mais que as primeiras duas áreas poderiam ser deixadas em certos cenários, a última área era complicadíssima: a família era a esfera mais importante naquela época, pois “servia como o centro da vida religiosa, social e econômica”.2 Ela de fato foi a área mais difícil para Abrão, pois sabemos que ele partiu com seu pai, Tera, e seu sobrinho Ló (Gn 11.31).

Após falar do que Abrão precisava se desfazer, Deus disse que ele então deveria ir “para a terra que lhe mostrarei”. Se já não fosse difícil o bastante se livrar de tudo que lhe era conhecido e familiar, Abrão “partiu sem saber para onde ia” (Hb 11.8); ele não sabia nem mesmo qual era o destino!

 “Se já não fosse difícil o bastante se livrar de tudo que lhe era conhecido e familiar, Abrão não sabia nem mesmo qual era o destino!”

É muito fácil lermos esse versículo e logo avançarmos para o próximo, sem percebermos o tamanho do desafio que aguardava Abrão. Sua vida seria drasticamente diferente a partir de agora. Seus planos e objetivos foram subitamente alterados com esse chamado divino. De certa forma, o mesmo ocorre conosco: quando cremos em Jesus, nossa vida passa a lhe pertencer; não somos mais donos de nosso presente e futuro, mas servos de Cristo (Jo 12.26).

Depois de informar seu requerimento, Deus faz as seis promessas listadas acima.

A primeira promessa, de que Deus faria uma “nação” de Abrão e sua família, talvez seja a mais espantosa. A palavra usada aqui (hebr., goy) traz a ideia de povo “como uma unidade política e territorial”,3 conceito semelhante ao atual que temos. Ou seja, uma grande nação sairia de Abrão, que, sem filhos e com uma esposa estéril (Gn 11.30), tinha 75 anos quando saiu de Harã (v. 4).

A segunda promessa traz a primeira menção à ideia de “bênção” neste trecho. No livro de Gênesis e na cultura do Antigo Oriente Próximo, o conceito de “bênção” estava primariamente atrelado a dois benefícios: descendência e riqueza material.4

A terceira promessa faz uma interessante conexão com o episódio da torre de Babel no capítulo anterior. Ao passo que em Babel o objetivo dos seres humanos era tornar “célebre o nosso nome” (Gn 11.4), aqui é Deus quem fará o nome de Abrão grande. A lição que nos fica é: devemos buscar cumprir a vontade de Deus, em conformidade com a oração do Pai Nosso – “seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Deus tem o melhor em mente para nós e deseja que caminhemos alinhados com seus planos. Buscar honra própria é fútil e só traz proveitos passageiros.

O próximo conjunto de três promessas desenvolve e esclarece a questão da “bênção”. Caso Abrão obedeça ao Senhor e se torne uma bênção, consequências serão observadas naqueles ao seu redor. Quem abençoasse Abrão seria abençoado, e quem o amaldiçoasse seria amaldiçoado. Por fim, todas as famílias da terra seriam benditas por meio de Abrão.

Isso ocorreria de pelo menos duas formas. Primeira, recebemos a bênção suprema da salvação, da vida eterna, da comunhão com Deus Pai através de Jesus Cristo, o descendente de Abrão (Gl 3.16), a qual só podemos obter através da fé nele e do sacrifício dele na cruz por nós. O segundo aspecto dessa promessa é o modelo de Abrão deixado para nós. Paulo menciona o final do versículo 3 e afirma que “os que têm fé é que são filhos de Abraão” (Gl 3.6-9). Veremos abaixo como Abrão, obedecendo ao Senhor, nos serve de modelo de fé.

A obediência de Abrão (12.4-9)

Nenhuma palavra ou ação de Abrão nos foi relatada até aqui. Não sabemos qual foi sua reação ao receber essas ordenanças e promessas. O que sabemos é que ele obedeceu ao Senhor: “Partiu, pois, Abrão, como o Senhor lhe havia ordenado. E Ló foi com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. Abrão levou consigo a sua mulher Sarai, o seu sobrinho Ló, todos os bens que haviam adquirido e as pessoas que lhes foram acrescentadas em Harã. Partiram para a terra de Canaã e lá chegaram” (v. 4-5).

Muito já foi dito sobre a companhia de Ló. Alguns teólogos acreditam tratar-se de uma falha por parte de Abrão, pois este deveria sair “da sua parentela”. Contudo, o texto bíblico permanece neutro nessa questão; ele somente nos informa que “Ló foi com ele”. Uma vez que o pai de Ló, Harã, havia falecido (Gn 11.27-28), é possível que Abrão tenha tomado para si a responsabilidade de cuidar do sobrinho.

O texto também informa que Abrão tinha 75 anos “quando saiu de Harã”. Uma aparente contradição surge quando Deus afirma, em Gênesis 15.7, que ele tirou Abrão de “Ur dos caldeus”. Em seu discurso perante o sinédrio, o diácono Estêvão oferece informações adicionais úteis: “O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai, quando este esteve na Mesopotâmia, antes de morar em Harã, e lhe disse: ‘Saia da sua terra e do meio da sua parentela e vá para a terra que eu lhe mostrarei’” (At 7.2-3). Portanto, existem duas opções: (1) o trecho de 12.1-3 ocorre cronologicamente antes de 11.31-32, isto é, da viagem a Harã; ou (2) Abrão recebeu dois chamados semelhantes de Deus, um na Mesopotâmia (provavelmente Ur) e outro em Harã. Ambas são plausíveis e resolvem qualquer aparente conflito no texto bíblico.

Quanto às “pessoas que lhes foram acrescentadas em Harã” (v. 5), a interpretação comum é que se trata de escravos. Contudo, Ross afirma que o termo empregado para “pessoas” (hebr., nepeš) provavelmente não seria usado para isso e apresenta a possibilidade de se tratar de prosélitos.5 As consequências dessa perspectiva são interessantíssimas: elas comprovariam a genuinidade da fé de Abrão e seu papel como mediador da bênção antes mesmo de adentrar Canaã! A própria vinda de Tera e Ló poderiam ser vistas à luz dessa óptica. Com isso, Abrão não teria meramente deixado tudo o que lhe era familiar e viajado para um local desconhecido, mas também teria convidado outros a acompanhá-lo, a seguir o Deus que prometeu abençoar aqueles ao redor de Abrão.

A seguir, nos é informado que Abrão chegou em Canaã e passou certo tempo em Siquém, e depois em um monte entre Betel e Ai, construindo em ambos os lugares um altar ao Senhor (v. 6-8). Siquém era uma cidade próspera entre 2000 e 1800 a.C.,6 provável período da chegada de Abrão. Muitas estradas se encontravam perto de Siquém, o que fazia dela a parada inicial ideal em Canaã. Com relação ao “carvalho de Moré”, uma vez que “Moré” significa “professor”, “mestre”, “ensino”, poderia tratar-se de um antigo santuário ou local em que oráculos eram proferidos. O texto de Oseias 4.13 afirma que “debaixo dos carvalhos” ocorria adoração idólatra. Se essa interpretação estiver correta, a informação de que “nesse tempo os cananeus habitavam essa terra” (Gn 12.6b) também vincularia esse povo com tal ação imoral.

Logo, temos aqui o primeiro atrito na na narrativa. A terra prometida a Abrão por Deus não estava desocupada. Aquele que recebeu o chamado do único Deus para receber uma terra estrangeira chega em um local habitado por outros povos que adoram outros deuses.

“O Senhor prometeu fazer grande o nome de Abrão, fazê-lo famoso, e Abrão respondeu proclamando o nome do Senhor – fazendo o Senhor famoso em Canaã.”

A informação de que Canaã era a terra escolhida por Deus é expressa na aparição do Senhor registrada logo no versículo seguinte: “O Senhor apareceu a Abrão e lhe disse: ‘Darei esta terra à sua descendência’” (v. 7a). Deus unifica as promessas de terra e descendência. Junto com isso, temos a primeira indicação de que a conquista da terra não aconteceria imediatamente; a descendência de Abrão a receberia do Senhor.

Como Abrão reage? Ele realizou uma viagem longa, saindo de sua zona de conforto e chegando a um local estranho, com um povo diferente habitando a terra que lhe fora prometida quando ainda estava na Mesopotâmia, e agora ele descobre que sua descendência receberia aquela terra – descendência que ainda nem existia, pois Abrão não tinha filhos!

A reação de Abrão é adoração: “Ali Abrão edificou um altar ao Senhor, que lhe tinha aparecido” (v. 7b). Ele faz a mesma coisa quando chega no monte entre Betel e Ai (v. 8). A fé de Abrão se mostra na prática. “O Senhor prometeu fazer grande o nome de Abrão, fazê-lo famoso, e Abrão respondeu proclamando o nome do Senhor – fazendo o Senhor famoso em Canaã.”7 Que homem de fé!

A mentira de Abrão (12.10-20)

Era muito comum haver períodos de seca nessa região, o que podia ocasionar “fome naquela terra” (v. 10). O Egito, por outro lado, possuía o rio Nilo, o que lhe proporcionava muito mais regularidade na produção de alimentos. A terra egípcia era tão fértil que foi preciso construir uma fila de fortes a fim de afastar estrangeiros (como Abrão) da terra!8

Abrão “foi para o Egito, para ali ficar” (v. 10). A raiz do verbo “ficar” indica que não se tratava de uma estada permanente. Isso explica por que a NVI traduz “para ali viver algum tempo”. Abrão tinha a intenção de retornar a Canaã quando a fome passasse.

O que Abrão não intencionava era contar aos egípcios que Sarai era sua esposa. Ele a apresentou como sua irmã (o que, pelo jeito, fazia aonde ia; Gn 20.12-13), com medo de que seria morto para que outro pudesse tomar ela como esposa (v. 11-12).

No que se refere à beleza de Sarai, àquela altura com pelo menos 65 anos de idade (v. 4; 17.17), precisamos entender que se tratava de uma outra cultura, com outros padrões de beleza. Basta olharmos para a moda há cem anos e já teremos um choque cultural, quem dirá três mil anos. Outros motivos que poderiam explicar a beleza de Sarai seriam “um dom especial de Deus”,9 conforme João Calvino supunha, além da vida prolongada singular que a família dos patriarcas tinha, o que deixava Sarai na metade de sua vida naquele momento – ela morreu com 127 anos (23.1).10 O texto não nos informa qual foi a reação de Sarai, então é melhor não especular sobre isso.

O motivo por trás do engano de Abrão poderia muito bem ser legítimo. O egiptólogo Kenneth A. Kitchen afirma que textos dos reinos egípcios médio (c. 2040-1640 a.C.) e novo (c. 1550-1070 a.C.) apresentam faraós com atração por mulheres estrangeiras.11

Contudo, a passagem também mostra que Abrão não confiava totalmente na promessa de que Deus o protegeria e daria a terra como herança aos seus descendentes. Afinal, para que Abrão tivesse descendentes, ele precisaria permanecer vivo pelo menos até conceber um filho.

Ademais, Abrão estava totalmente focado em sua própria vida – “para que me tratem bem por sua causa e, por amor a você, me conservem a vida” (v. 13). Ross acredita que o raciocínio de Abrão por trás disso consistia em fugir após ser avisado do interesse por Sarai (negociações matrimoniais eram importantes e demoradas no Antigo Oriente Próximo, como é possível ver nas histórias de Isaque e Jacó).12 Com o que ele não poderia contar era o interesse de alguém que estaria numa posição superior e desobrigado de seguir tais costumes: o homem mais poderoso do Egito (v. 14-15).

“Deus não tinha um plano apenas com Abrão, mas com Sarai também. Ela também se tornaria um dos heróis da fé mencionados em Hebreus 11.”

Um dos resultados disso foi Abrão ser bem-visto pelo faraó e sua corte e ganhar inúmeros bens por causa de Sarai (v. 16). Tais recursos, além de servirem como constante lembrete do que havia trocado por sua esposa, também trariam pelo menos dois grandes problemas ao patriarca: (1) a desavença entre seus pastores e os de Ló (Gn 13); e (2) o conflito familiar envolvendo Agar, escrava egípcia, provavelmente entre as “escravas” dadas pelo faraó (Gn 16).

Abrão saiu mais rico do Egito, mas isso não o fez um homem mais feliz, realizado ou fiel a Deus. Nunca devemos associar imediatamente riqueza com bênção; Abrão aprendeu essa lição e recusou receber quaisquer bens do rei de Sodoma (Gn 14.21-23), episódio que veremos na próxima edição.

Numa situação humanamente impossível, Deus agiu sobrenaturalmente para cumprir sua promessa. Com as “pragas” enviadas ao “Faraó e a sua casa” (v. 17) vemos a importância que Deus dá à fidelidade matrimonial. O texto não informa se o faraó dormiu com Sarai, mas só o fato de ela não estar mais morando com Abrão já violava o projeto original de Deus (Gn 2.24). Deus não tinha um plano apenas com Abrão, mas com Sarai também. Ela também se tornaria um dos heróis da fé mencionados em Hebreus 11, servindo de exemplo para os seguidores do Deus vivo milhares de anos após sua morte.

Abrão e Sarai são exemplos de fé para nós. Sua jornada da Mesopotâmia até Canaã, depois para o Egito e de volta para Canaã são inesgotáveis fontes de aprendizado. Fica claro que eles eram pessoas normais como você e eu, com talentos e falhas, forças e fraquezas, momentos de coragem, outros de medo e insegurança. O importante é que eles, “pela fé” (Hb 11.8-9,11), se deixaram ser usados pelo Senhor. Somos convidados a fazer o mesmo.

Notas

  1. Allen P. Ross, Creation & Blessing: A Guide to the Study and Exposition of Genesis (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 1996), p. 263.
  2. Bill T. Arnold, “The Genesis Narratives”, Ancient Israel’s History: An Introduction to Issues and Sources, ed. Bill T. Arnold e Richard S. Hess (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2014), p. 39.
  3. Elberfelder Studienbibel mit Sprachschlüssel und Handkonkordanz, 8. ed. (Holzgerlingen, Alemanha: SCM R.Brockhaus, 2001), p. 1538-1539.
  4. K. A. Mathews, Genesis 11:27–50:26, The New American Commentary (Nashville: B&H, 2005), p. 113.
  5. Ross, Creation & Blessing, p. 265.
  6. Merrill F. Unger e R. K. Harrison, Dicionário Bíblico Unger, trad. Vanderlei Ortigoza e Paulo Sérgio Gomes (Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017), p. 1218.
  7. Ross, Creation & Blessing, p. 267, ênfase no original.
  8. Kenneth A. Kitchen, On the Reliability of the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003), p. 318-319.
  9. João Calvino, Gênesis, vol. 1, trad. Valter Graciano Martins (Recife, PE: Editora CLIRE, 2018), p. 361.
  10. Andrew E. Steinmann, Genesis: An Introduction and Commentary, The Tyndale Commentary Series (Londres: Inter-Varsity Press, 2019), p. 149.
  11. Kitchen, On the Reliability of the Old Testament, p. 319.
  12. Ross, Creation & Blessing, p. 275.

Sebastian Steiger é Editor do Ministério Chamada.

sumário Revista Chamada Outubro 2023

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